TRÊS MESES ANTES
Isso pode soar estranho, como uma referência à crença infantil de sempre enxergar a bondade nos outros, mas, de algum modo, Devlin nunca duvidou da humanidade de alguém quando este era capaz de olhar nos seus olhos.
Somos programados desde o nascimento para saber que a maldade é como um gato que se esfrega nas pernas de seu amo em sinal de confiança; gentil, carinhoso, mas nem sempre tão bem intencionado.
Quando crescemos, adquirimos uma extensa lista de conselhos para não nos deixar escorregar para o lado mau do mundo. Em nosso íntimo, sabemos com clareza que se a maldade fosse tão fácil de se perceber, talvez não houvesse tanta brutalidade e coisas ruins acontecendo a cada porta fechada. Mesmo assim, nós acreditamos. Talvez por pura insistência coletiva, ou por nos cansarmos de debater em vão.
Acreditamos que podemos diferenciar um homem que sente prazer em machucar, simplesmente por querer se igualar a algum Deus, de um garotinho torturado em uma família disfuncional, cuja escapatória para o seu drama familiar é agir com os outros da mesma maneira com que foi criado.
Maldade e loucura friccionam-se como trovões cortando um céu nebuloso. Estudiosos encontram maneiras para separar tais classificações, julgando através de respostas cuidadosamente planejadas se algum indivíduo pode receber uma segunda chance perante um tribunal impiedoso. Não há qualquer escapatória, de qualquer maneira. Um louco está condenado para sempre na infinidade de memórias que devoram a sua parca consciência humana. Uma pessoa maldosa está com os dois pés diante de uma cadeira elétrica, pronto para pagar por seus crimes do outro lado desta vida.
Hoje em dia, Devlin ainda se pergunta qual a necessidade de tais métodos para a percepção de um problema real, quando o fim sempre será o mesmo. Loucura ou maldade; você sempre terminará com seus neurônios aquecidos por um tratamento de choque, dado por aqueles que se consideram normais. Seja durante um tratamento de terapia eletroconvulsiva, ou numa cadeira elétrica.
A jovem mulher acredita de que não há nada mais c***l do que nossas próprias memórias. Ainda aquelas que podem ser ligadas aos bons momentos, sempre deixam uma sensação esquisita de irrealismo ao ser relembradas. Ela não gosta de pensar que muita gente vive uma vida inteira em um julgamento íntimo sobre as suas escolhas passadas. Mas, infelizmente, nosso cérebro sempre teve o papel de absorver e acumular lembranças, embora existam aqueles que, assim como Devlin, podem facilmente desligar a chave que lhe permite estar totalmente consciente de seus atos.
Somos assombrados por pensamentos homicidas desde os nossos primeiros anos, quando nos zangamos com a falta de afeto de nossos entes queridos. Quando percebemos que nossos esforços para chamar a atenção de quem amamos não está obtendo resultado. Nós criamos uma ilusão em que podemos m***r e sair impunes. Desde cedo, somos facilmente irritados pela atitude de outro alguém, e mesmo assim, não somos condenados por isso. Como poderíamos, afinal? Os resmungos de uma criança com raiva não passam de palavras jogadas ao vento. Elas se esquecem com o tempo.
O tempo é, na verdade, colaborativo para a crueldade de nossas memórias. É impossível esconder-se de um pequeno monstrinho que aperta as suas garras contra o seu cérebro, impulsionando memórias dolorosas que passam diante de seus impotentes olhos abertos. Este é o tempo. Um monstro que pode nos enganar com sua falsa cronologia. Uma criatura que não responde a ninguém além de si mesma, e nos condenada com a sua complexidade funcional.
Devlin sempre acreditou que o tempo, as memórias dolorosas, e a loucura que hoje em dia se apossa da minha mente sempre foram um futuro da família disfuncional que esteve me educando ao longo dos anos. Apesar de não ter muita certeza sobre as próprias escolhas que tomei na vida, apenas tenho a mais completa convicção de que algo já estava errado mais cedo do que se pode suspeitar.
A impressão que Devlin sempre teve é a de que ninguém nunca imagina que uma criança pode estar sofrendo em casa, ainda mais quando o lar é formado por um pai e uma mãe que exibem uma imagem perfeita aos olhos da sociedade no geral. Quando estas crianças se tornam adultos, a ciência tenta explicar e entender o que a negligência e pequenos acidentes na infância poderiam ter feito para enraizar o problema de seus comportamentos.
No caso da mulher chamada Devlin Knox, os problemas começaram quando seus pais decidiram se casar, ainda que o relacionamento desde o começo fosse tóxico e imoral para qualquer um que visse de fora.
A senhora Knox era uma mulher jovem e energética. Tinha constante desapego a qualquer demonstração afetiva. Devlin nem mesmo consegue me lembrar quando elas se abraçaram pela última vez em que se viram. Era uma mulher que não se deixava adoecer por nada neste mundo; dizia que a dor do parto vencia qualquer outra enfermidade, e por isso, jamais se deixava a****r por um resfriado ou doença similar. Ela fixava os cachos dourados em seus cabelos com o fixador capilar, e preenchia os lábios com um tom avermelhado tão profundo que quase alcançava o n***o, antes de partir para o trabalho no centro da cidade.
Trabalhava como atendente em uma loja de roupas, e sempre que voltava para casa, enchia as paredes frias do lugar com seus comentários sobre cada cliente soberba que havia sido obrigada a atender. Mesmo com tanta aspereza em suas palavras, Devlin notava como os olhos da mãe brilhavam com a simples menção de seu trabalho. Ironicamente, este brilho se perdia quando ela estava servindo ao seu marido e filha durante o jantar. Era como se aquela casa – a presença deles – apagasse o brilho que definia quem era aquela mulher.
O senhor Knox era o contrário. Um homem robusto e de pestanas grossas, cabelos extremamente curtos e lábios cheios. Ele era um motorista particular desde que a empresa em que trabalhava ruiu em desgraça. Quando a esposa chegava em casa bem mais tarde do que o seu horário de trabalho exigia, lançava para eles um rápido beijo e se enfurnava na cozinha, de onde apenas saia com o jantar pronto. E o senhor Knox nunca incomodava a esposa com os relatos da sua jornada de trabalho diária. Ele sempre se empenhava para esquecer as chateações do seu dia quando cruzava a soleira da porta. Devlin o amava por isso, porém, sempre se preocupava quando a mãe aparentava estar calada.
Nestes momentos, a sua vontade era correr até ela e perguntar sobre cada cliente que cruzou o seu caminho, ou pelo menos saber se ela precisava de alguma ajuda. Mas o seu pai sempre a mantinha ocupada com sua brincadeira favorita: ele a segurava com força em seu colo, e afrouxava os braços aos poucos, incentivando-a a correr. Quando fazia, a puxava de volta com força, arrancando todos os seus risos e resmungos. Deste modo, Devlin acabava se distraindo, e a sua relação com sua mãe ia se tornando uma convivência do tipo que se espera entre desconhecidos.
Os Knox eram, na maioria das vezes, uma família normal. A mãe sentava-se ao lado do pai para assistir à novela, ambos fixavam seus olhos na televisão antiga e deixavam Devlin brincando com qualquer coisa que seus dedos curiosos achassem interessante. Quando a mãe se afastava para fazer a sua ligação habitual depois das oito horas, o pai brincava de beliscar a pequena menina, fazendo com que ela agitasse seus cabelos de um vermelho tão intenso que pareciam falsos — embora o pai também ostentasse aquela mesma juba de cabelos vermelhos escuros. Tentando distrair Devlin da ausência da mãe, o homem beliscava as coxas e os braços de Devlin, retesando-se quando alcançava o seu tronco. Ali ele não beliscava, apenas deslizava as mãos, sempre olhando para o seu rosto, averiguando se ela ainda esboçava aquele seu sorriso de criança inocente.
— Olha só quem está aqui! — ele dizia, mostrando-a o seu dedo indicador.
Ele dobrava o dedo lentamente, produzindo sons estalados com os lábios, como se aquele fosse algum tipo de bicho. Os olhos de Devlin brilhavam com a brincadeira, talvez por ser sempre a mesma desde que ela conseguia se lembrar. Ele esticava o dedo e batia em seus lábios, no momento em que ela os entreabria, seu dedo tomava o espaço acima de minha língua. Ele a pedia para c****r, ela fazia, ainda que não entendesse. E quando ele a colocava em seu colo novamente, o dedo ainda em sua boca, sua outra mão descansava em minhas coxas inchadas precocemente para uma criança de dez anos. Devlin era jovem demais para entender. E mesmo que pudesse saber o que acontecia, jamais poderia compreender o que é que se passa na cabeça de um pedófilo.
Ela assistia aos seus desenhos com tranquilidade, satisfeita com a atenção que recebia do seu pai. Ele era seu herói, e a mãe era como uma madrasta malvada. Ela não brincava com a filha durante o banho igual o pai. Ela não a levava para o puxadinho nos fundos do quintal e a colocava em cima da mesa, acendia um isqueiro e aproximava-o da sua pele, apenas para provocar um calor confortável e para me entreter com a magia das chamas alaranjadas. O seu fazia isso. Devlin era a garotinha do papai.
Durante a noite, quando a mãe seguia para o quarto que dividia com o pai, ela dizia em alto e bom som que estava com dor de cabeça e que preferia que ele não tentasse fazer nada. Essa enxaqueca parecia durar uma eternidade e isso preocupava Devlin. Não havia nada mais que a atormentasse do que o pensamento de perder os seus pais. Como toda criança, ela dependia deles, e os amava profundamente, independentemente de suas atitudes suspeitas. Devlin daria a sua vida de boa vontade para mantê-los vivos e juntos. Porém, nem com todas as preces que era capaz de fazer não conseguia resultado quanto às reclamações de sua mãe. O pai não parecia se importar de qualquer maneira, havia muito tempo ele desistira de mandá-la ao médico, por outro lado, sua preocupação era completamente voltada para Devlin.
Hoje em dia ela pode se lembrar com toda a clareza do som da porta do seu quarto sendo aberta durante a madrugada. Ela consegue sentir as cobertas deslizando para longe do seu corpo e as mãos tão conhecidas subindo no lugar, queimando-a com o calor do pecado. Apesar do escuro, ela não tinha medo. Ouvia o sibilar de uma voz familiar que era dado para manter silêncio, e escutava o rangido da sua cama quando um corpo robusto se aproximava completamente dela. A mãe não sabia o que acontecia no quarto da família durante todas as noites da sua vida desde os seus primeiros anos. Ela tampouco sabia de verdade naquela época.
A falta de educação s****l nas escolas, a falta de orientação por parte da sua mãe, e o contato quase nulo com qualquer presença familiar além daqueles dois com quem Devlin foi acostumada a viver, impediam que ela tivesse total ciência do que passava e que pudesse ter qualquer chance de evitar. Ela não podia contar a verdade. Ela não conseguia engolir a verdade. Então a sua mente se encarregava de fazer com que tudo aquilo se apagasse, como se tudo aquilo se tornasse um filme que ela não desejava mais se lembrar do enredo. A infância de Devlin sempre foi tomada por cenas daquele mesmo tipo. O homem que chamava de pai nunca pareceu se encabular ao encará-la nos olhos, porém ela passou a evitar fazer contato visual. Ela se sentia suja, e não tinha nem mesmo idade para entender o que acontecia de fato.
Naqueles momentos de tortura silenciosa, o ar crepitava e a levava para longe. Parte do que Devlin era se desligava, e ela apenas olhava para o teto, onde podia contar as setenta e duas estrelas plásticas que o iluminavam para longe da escuridão. O seu corpo mexia contra os lençóis, mas os seus olhos permaneciam estáticos. Era r**m e doía, mas ela não queria magoar o seu pai ao acabar dando com a língua nos dentes para a sua mãe, então, ela se calava. E esperava. Esperava até que ele lhe desse um beijo de boa noite e a cobrisse novamente. No dia seguinte, ele agia como se nunca estivesse estado em seu quarto, e ela fazia o mesmo. Ela amava o seu pai, e nunca recebeu instruções do quão errado e sujo aquilo tudo era, o que mais poderia fazer?
Estas lembranças são apenas fragmentos do que Devlin tem recolhido desde os seus quatorze anos, quando sua mãe desistiu de lutar por um lar destruído, e surgiu com a papelada do divórcio em uma manhã fria de Outono. O pai não resistiu; ele não se importou, mas ele pediu a Devlin para ficar, dizendo que não poderia viver sem ela. A mãe teimou em levar a menina junto, e Devlin m*l pôde reconhecer a sua voz quando implorou para que ela a tirasse dali., quando esteve munida de coragem suficiente para tomar a atitude que já deveria ter tomado há anos.
Com quatorze anos, Devlin entendeu que as garotas da sua idade faziam certas coisas com os garotos que possuíam algum tipo de amor, e entendeu que as noites em seu quarto não eram apenas cenas de um filme que ela poderia ignorar. Devlin teve coragem de parar aquilo apenas no momento em que entendeu o que realmente acontecia. O dano já havia sido feito. O seu corpo já não era mais o de uma menina. A sua cabeça já não era mais saudável. E a sua alma estava ferida para todo o sempre.
Hoje, olhando para trás, Devlin não sabe dizer se a mãe havia enxergado alguma coisa em seu desespero, ou se fora apenas o seu instinto materno que tinha custado a se despertar, mas assim que seus olhos se moveram de Devlin para o seu pai, ela caminhou até ele e o estapeou no rosto com toda a força que os anéis espalhados em seus dedos permitiam. O homem pareceu chocado, mas ficou calado, de olhos arregalados.
— Se você aparecer no meu caminho novamente, eu juro que mato você — ela disse, puxando Devlin com força para fora de casa. — E se tocar na minha filha de novo... Eu capo você!
A mãe de Devlin não sabia que já era tarde demais. Ela não entendia que aquilo durou por tanto tempo que a filha já não sabia dizer como é que teve consciência para entender que era errado. Mesmo assim, ela não fez maiores perguntas, não tentou se aproximar dos sentimentos da filha para entender o quão prejudicial aquela criação negligente havia chego, ela apenas tentou remediar a situação ao sumir no mundo. Elas se mudaram para a casa de uma tia paterna, aparentemente a única pessoa da família que mantinha algum contato com todos eles, porque o restante — até onde Devlin sabia — estavam mortos ou presos. A mãe de Devlin era filha única e órfã, perdera o contato com sua família justamente por serem parentes demais. O pai havia sido rico um dia, mas perdera sua fortuna por um motivo que nunca as contou. Ninguém jamais ousou perguntar.
Devlin nunca havia visto a mulher que se apresentou como sua única tia, sabendo da sua existência apenas através de poucas fotos. Fotos estas sempre tão extravagantes que qualquer detalhe físico era nulo. Apenas parecia alguém com toda a fortuna do mundo, e a mesada que mandava para minha mãe comprovava isso, e o dinheiro escondia o fato de que Devlin nunca conheceu a mulher pessoalmente. A casa em que elas moravam era simples e padrão, nada muito luxuoso, mas ela sabia que a mulher deveria ser incrivelmente rica. A sua mãe não deixou de trabalhar, era orgulhosa demais para aceitar o dinheiro de qualquer um, e garantia de presentear Devlin com as melhores roupas que uma adolescente poderia ter, como se roupas novas pudessem compensar os anos de a***o.
O pai de Devlin não se preocupou em nos procurar nos dois anos que se seguiram, e ela soube vagamente da morte dele quando havia completo dezesseis anos. Devlin tinha apagado a existência do pai muito facilmente naqueles dois anos de uma vida normal, e quando o assunto da morte veio a tona, ela não conseguia mais fingir que não se lembrava. Ela não conseguia mais desejar que tudo não passasse de um filme. Ao contrário de todas as suas amigas da época de colégio, ela estava mais do que grata da morte do seu pai, e as vezes chorava de alívio, sabendo que nunca mais teria de vê-lo. Na frente dos outros, Devlin fingia alguma apatia ou um luto pouco convincente, mas em seu íntimo ela agradecia à quem quer que estivesse olhando por ela. Porque sabia que nunca mais passaria por aquilo de novo.
Até onde Devlin soube, o pai morreu num incêndio acidental. Houve boatos por parte dos vizinhos de que haviam escutado um carro fugindo em alta velocidade alguns momentos antes do incêndio começar, e que acharam bizarro o fato do homem não ter nem tentado escapar das chamas e que ele tenha se entregado a densa fumaça que o sufocou e assou seus órgãos. No entanto, a polícia de Manhattan sempre foi facilmente calada para mortes estranhas, e deram um jeito de abafar todas as suspeitas por parte dos vizinhos. Algum tempo depois, era como se o senhor Knox nunca houvesse existido naquele mundo. Ninguém mais se lembrava dele. E não haviam flores colocadas em seu túmulo. Ele se tornou um nada.
O alívio de Devlin não impedia que seus sonhos fossem recheados de cortes repugnantes. Ela sempre pensou em contar para a mãe sobre isso. Nunca havia tempo, embora. Ela estava sempre atrasada para o trabalho, atendendo alguma ligação, ou encontrando-se com um homem que parecia educado nas poucas vezes em que compartilhou os jantares com a filha. Ela estava feliz, e Devlin não queria estragar isso com suas lembranças dolorosas.
Devlin revirava na cama em todas as noites, evitando dormir para não ter nenhuma visão. Acordava com bolsas abaixo dos olhos esmaecidos, com a cabeça dolorida, e sem humor para qualquer coisa. Entrava em uma rotina de ir para a escola e preparar o jantar enquanto a mãe não chegava, mas isso não era o bastante para afastar as lágrimas. Chorava por qualquer coisa. E às vezes tinha a sensação de que poderia se virar e encontrar alguém espreitando sobre os meus ombros. Devlin entrou num estado de paranoia que sempre lhe dava a sensação de que poderia explodir e sair correndo a qualquer momento pelas menores coisas.
Ter um dia r**m era o bastante para ela sentir estranha. Pensar no pai, nos sonhos, ou no que faria do seu futuro, transformava um dia bom em uma penitência. Devlin tentava controlar o estremecimento quando abraçava o seu corpo após um pesadelo e ignorar, sem sucesso, uma voz que soava em minha cabeça:
— Não posso deixar que me toque. Não posso deixar. Não posso deixar. Não me toque.
Quando os pesadelos não a assombravam, este era o papel da sua própria cabeça. Escutava passos, e se pegava caminhando para um lugar que não queria. Dava meia-volta e novamente se pegava refazendo o trajeto. Sofria de apagões. Acordava em plena madrugada sentindo seu sangue ferver pelo desespero, e corria para onde os seus cadernos estavam, arrancando a última tarefa do dia. Encontrava tudo feito, mas com letras ilegíveis, outros com respostas estúpidas, e se perguntava quando tinha arrumado tempo para fazer tanta coisa.
O tempo caçoava de Devlin. Girando e girando ao seu redor. As pessoas passavam por ela com um sorriso no rosto, e ela não podia retribuir porque estava ocupada demais com a vibração dentro da sua cabeça, com a onda de ódio que subia pelo seu estômago e ameaçava sair pela sua boca com palavras ofensivas. Era como asas dentro do crânio, mas o som não existia. A sua cabeça latejava com todo o peso que havia dentro dela, e constantemente ela se jogava no chão com uma dor nauseante em seu cérebro, sentindo o ódio querendo consumir cada ferida que ainda estava aberta em seu coração. Devlin se lembrava do pai, das noites naquela casa e ao lado daquela família desestruturada, e se encolhia num canto afim de engolia o grito de ódio que queria sair da sua boca.
Quando concluiu o colegial, todos os seus amigos sabiam qual passo seguir, menos ela. Algumas garotas tinham namorados e espelhavam seus futuros juntos. As pessoas a achavam esquisita demais para se aproximar, isso a protegeu dos valentões, mas afastou qualquer um que pudesse a ajudar. Devlin estava presa em um caleidoscópio macabro, assistindo enquanto pessoas tomavam decisões por ela, e ela apenas deveria acatar.
Devlin descobriu durante alguns meses de tempo livre que a dor intencional aliviava aquela que a incomodava internamente. Ela percebeu que quando se beliscava ou quando mordia os lábios com muita força, conseguia conter aquela onda de fúria que se elevava sobre o seu corpo, e assim podia agir de maneira quase normal diante de situações estressantes. Os seus braços eram os alvos de seus maiores ataques. Mordidas, cortes e queimaduras. O seu corpo estava sendo preenchido com ranhuras, como se pudesse substituir o vácuo que a assombrava, ou anular todos os impulsos que faziam qualquer situação mínima se tornar uma bomba para o seu emocional. Em uma das vezes que buscava alívio com uso de entorpecentes e algumas feridas que provocou em seus pulsos, Devlin acabou desmaiando durante o ato. Ela não se lembra do que aconteceu em seguida, apenas de acordar no hospital.
Pela primeira vez em dezessete anos de vida, a sua mãe estava preocupada. Pela primeira vez na vida pareceu se dar conta de que tinha uma filha. O homem que agora era seu namorado acabou se mudando para a casa que pertencia a uma tia que ela nunca viu, e iniciou uma vigília quase insuportável com ela. Ele era um militar aposentado, e se ofereceu para a ajudar através de alguns exercícios. Ele a ensinou como machucar uma pessoa, ocupou a sua cabeça com as suas aulas, e deu a ela aquela injeção de animação novamente. Devlin conseguia sorrir novamente. Todos os dias ela se exercitava no pequeno quartinho que seu padrasto montara como uma academia. Ela conseguia extravasar seus momentos de fúria num boneco para treino, e seu corpo de menina-mulher foi se modelando com músculos nos braços e pernas.
Devlin vez ou outra se olhava no espelho e não se reconhecia. Ela sempre teve aquela visão de que ainda estava em sua adolescência, mas quanto mais o tempo passava, mais aquele corpo se tornava volumoso e chamativo demais para os outros homens. Devlin passou a se envolver com tipos duvidosos de homens. Ela arranjou um emprego só para que sua mãe não tivesse direito de impedi-la de sair com pessoas que se vestiam de maneira espalhafatosa ou tivessem piercings espalhados pelo corpo. Ela deixava aqueles homens tomarem o seu corpo da maneira que quisessem.
Devlin nunca alcançava o seu próprio prazer, não importava quem escolhesse para satisfazê-la, ou quantos — houve uma ocasião em que tentou se relacionar sexualmente com três homens, e não conseguiu mais do que muito esforço para dar atenção a todos, e ainda assim não sentir mais do que cócegas em sua região íntima. Ela sempre fingia estar gostando, porque sabia que os homens não gostavam de sair com mulheres frígidas. Só que ela realmente odiava aquele tipo de contato. Devlin não sabia o que fazer na cama com um homem, e deixava que eles fizessem, apenas para que terminasse a noite se sentindo usada e decepcionada. Esta foi a sua vida por alguns meses.
Isso não durou muito. Outra crise, e ela foi parar no hospital novamente. Foram seis internações no período de poucos meses. A sua mãe começava a se desesperar. Eles nunca cogitaram que havia algo de errado com ela, mas um histórico autodestrutivo chama a atenção de outras pessoas, e o próprio hospital a encaminhou para uma psicóloga.
Devlin se desesperou quando avistou a mulher que entrava na sala. Ela não tinha um rosto. Não tinha uma boca, mas falava. Devlin saltou da cama e se aproximou da janela, gritando que pularia se ela se aproximasse, e ela parou. A porta se abriu e a sua mãe entrou, pelo menos, era a voz da sua mãe porque ela se viu incapaz de enxergar rostos. A mulher e o homem que vieram ao seu socorro também não tinham um rosto. Havia um borrão cobrindo suas faces, como se seus olhos se movessem rápido demais para uma superfície inerte. Devlin olhou para baixo e não reconhecia o seu próprio corpo.
A sua insanidade atingiu um nível que nunca imaginou. Já não sabia o que era real e um sonho. Já não sabia se estava num hospital ou dentro de uma boate. Não sabia se estava tentando conversar com as pessoas que tentavam acalmá-la, ou se estava se esfregando no corpo suado de um homem. Devlin se sentiu enlouquecer de uma hora para a outra. Só que tudo foi acontecendo de modo gradual. Ela apenas não percebeu até ser tarde demais.
Devlin se ajoelhou abaixo da janela e cobriu os seus ouvidos com as duas mãos, balançando-se no mesmo lugar. Pessoas se aproximaram, seus olhos se fecharam, e tudo se tornou um breu. Se ela resistiu quando a levantaram? Talvez, já que estava com marcas nos braços depois de uma boa luta. Se tentou manter a calma como qualquer pessoa sensata faria? Tentou, mas não conseguia afastar a voz delicada e maliciosa que gritava em sua cabeça:
Você enlouqueceu, meu bem. Você enlouqueceu.
Devlin estava rouca ao acordar em outro hospital. A sua mãe estava por perto, cobrindo a boca com uma das mãos. Ela disse que Devlin precisava ficar naquele lugar por um tempo. Disse que precisavam descobrir o que havia de errado comigo, e não podiam arriscar que ela tentasse tirar a sua vida novamente; e que ela estava se destruindo ao sair com tantos homens e beber além da conta, que ela já não era mais a filha que a senhora Knox pensava ter tido, que ela não sabia aonde tinha errado em sua criação e que agora estava tentando fazer o melhor para Devlin, que precisava se tornar a sua tutora porque Devlin ainda não era capaz de se manter viva por conta própria. Devlin achava ter assentido com mais entusiasmo do que deveria, pois os olhos de sua mãe se encheram de lágrimas, e aquela foi a primeira e última vez em que a observou chorar por ela.
Cinco anos se passaram desde então; desde que Devlin Knox foi internada contra a sua vontade numa clínica para doentes mentais, e que a sua rotina se tornou acordar para tomar seus remédios e dormir em salas acolchoadas para não correr o risco de encontrar uma forma de tirar sua vida. As lembranças de Devlin a corroeram como o fogo do incêndio que levou o seu pai para o inferno, e quando ela tinha um pesadelo, precisava tomar um banho e se esfregar exatas setenta e duas vezes. Apenas quando a sua pele assumia a espessura de uma queimadura, ela se sentia bem. Apenas quando a dor era capaz de camuflar o vazio em sua cabeça, ela se sentia bem.
Não é por este motivo que uma certa noite ela se encaminhou aos tropeços pelo corredor escuro da clínica que esteve internada por tanto tempo, muito menos a razão para que ela tenha subido por uma estreita escada de ferro com passos que tentavam ser silenciosos. Não, ela não queria causar dor para ter um alívio, ela apenas queria se encontrar com aquele que se tornou uma fonte de esperança em sua vida monótona. Devlin estava caminhando sorrateiramente para o último andar do prédio porque sabia que era neste lugar que iria encontrar a única pessoa que oferecia qualquer esperança de uma vida melhor. E assim que seus olhos se acostumaram à luz que a lua amarelada oferecia, ela o escutou rindo baixinho, parado, perto do parapeito de concreto.
— Você demorou essa noite, diabinha.
Os dreads de seus cabelos foram arremessados contra o seu rosto por uma lufada de ar, e ele esperou pacientemente enquanto ela se aproximou e o abraçou. Como ele havia feito em todas as vezes, ele a afastou antes que o abraço se tornasse mais sentimental do que deveria e segurou em seus ombros. O seu corpo bloqueou a visão de Devlin, mas ela tinha certeza de que ele estaria sorrindo. Ele sempre esteve sorrindo, desde o dia em que surgiu em sua vida e se tornou a fonte de inspiração para os seus melhores desenhos.