Ninguém pode dizer com completa convicção o exato momento em que uma lenda nasce.
No geral, pessoas que realizam um grande feito em suas vidas são lembradas. Mas existem outras, aquelas que se escondem atrás de uma imagem individualista e egoísta, para que ninguém saiba de que são as únicas na linha de frente contra o verdadeiro mäl. Estas pessoas costumam usar um codinome, um disfarce, e uma vida dupla, para proteger aqueles que amam enquanto todas as noites saem pelas ruas afim de salvar vidas. Alguns os conhecem como heróis, mas eles, na realidade, são lendas cujos nomes jamais serão esquecidos.
E era pensando em que ponto sua própria história lendária havia chegado, que a mulher se apressava numa corrida insana para os degraus acima da estreita escada, escutando a todo tempo que o seu perseguidor estava quase alcançando-a. Ela se precipitou por uma porta de ferro pesado que empurrou com os ombros para chegar ao terraço. O sol daquela manhã fria tocou seus olhos, e ela colocou uma das mãos em forma de sombra acima da testa para continuar correndo, chegou até a beirada do terraço e olhou para baixo.
A queda seria extremamente feiä, ela pensou. A caçamba de lixo lá embaixo estava fechada, e se ela tivesse sorte de cair ali, quebraria pelo menos alguns ossos, já que se encontrava no décimo andar. No entanto, se caísse contra o asfalto daquele beco sem saída, ainda umedecido pela chuva da noite anterior, sabia que teriam de recolher os restos do seu corpo em pedaços. Não tinha qualquer chance de escapar por ali. O jeito mais fácil seria voando, só que ela não sabia onde é que seus comparsas estariam naquele momento.
— Esse é fim, Devlin — anunciou seu perseguidor em algum canto de suas costas. Sua voz soando baixa e áspera. Ele nunca precisou gritar para ser respeitado. — Não precisa mais dificultar o meu trabalho com suas fugas.
Sentindo o medo golpear tão profundamente quanto um verdadeiro golpe, Devlin se virou lentamente na direção da voz. Era ridículo como ele ainda parecia bonito mesmo com aquela armadura de aço revestida com dois tecidos sintéticos, que se modelava em torno do seu grande e musculoso corpo, protegendo-o de balas, facas, e até mesmo explosões. O rosto era apenas um par de olhos verdes, já que uma máscara lhe cobria da testa até o queixo. Ao redor da cabeça estava um capuz que se erguia tal como a própria armadura do seu traje, engolindo-o em todo o material preto. Durante a noite, a visão daquele homem teria feito com que Devlin rezasse por todos os santos. Durante o dia, a visão ainda era perturbadora, mas ele não tinha o recurso das sombras ao seu favor, e parecia muito menos aterrorizante ao apontar uma espécie de arma em sua direção.
Devlin ergueu as mãos, sorrindo com atrevimento. Naquela altura ela já havia passado por muitas situações para ser orgulhosa o suficiente de não aparentar medo. Ainda assim, não pôde evitar o modo como seus joelhos tremeram ao observar o cinto de utilidades daquele homem. Ao imaginar tudo o que ele poderia esconder ali, e que aparentaria ser uma coisa, apenas para surpreender o rival com um efeito diferente. Até o momento, apenas aquela arma que ele apontava para ela havia sido usada diante dos seus olhos.
Ela sabia que a ponta em garra da arma poderia se abrir ao ter o seu gatilho disparado, e que era através daquilo que ele conseguia se pendurar em qualquer superfície, até mesmo se o local fosse um avião em movimento. Agora imaginava se aquele mesmo objeto não teria o poder de imobilizar um inimigo, além de poder içar o seu dono para o alto.
— Ah, vigilante... Dificultar o seu trabalho é a minha ideia favorita de diversão — disse ela com uma voz ronronada. Ela percebeu que o homem ficou desconfortável, mesmo que não pudesse ver suas feições. Deu uma gargalha insana, praticando todos os ensinamentos com os piores criminosos daquela cidade em ruínas. — Olhe ao seu redor, vigilante... Você quer me parar por considerar que essas pessoas não merecem o sofrimento que minhas ações lhe causam, mas não percebe que essa cidade já está destruída, e que eu estou apenas me divertindo antes que tudo acabe.
— Apesar de saber que os seus ideais não permitem que entendam, talvez você possa perceber que a sua diversão não é uma das atitudes que mais estimo — disse ele naquele tom de voz alterado para que sua identidade não fosse revelada.
Devlin deu mais uma risadinha, soando com menos atrevimento e mais sinceridade. Ela conhecia o homem por baixo da capa de herói. Ela sabia que ele deveria estar com os lábios apertados naquele momento, numa expressão de pura concentração. E ela amava aquela expressão no seu belo rosto. Devlin amava a forma como suas mãos fortes e largas haviam tomado tudo dela em poucas horas antes daquele momento. No entanto, ela também sabia que eles estavam sendo observados. Ela sabia que o pequeno drone que voava ao redor do prédio, erguendo-se cada vez mais alto de sua cabeça, era equipado pelas armas da polícia. Ela sabia que o vigilante noturno estava ali em plena luz do dia para que ela tivesse uma chance. Para que ela não morresse sozinha.
Eram o que a sociedade acreditava de inimigos mortais. Ele era o mascarado que deveria estar protegendo a cidade em todas as noites de sua vida, enquanto durante o dia era o empresário de rosto impassível e muitas histórias amorosas para contar. Enquanto ela... O vento que passou por seus cabelos de vermelho intenso sussurrou-lhe que ela não era merecedora de um homem como aquele. Porque ela não era boa. Não era digna, e nem uma heroínä. Aquela era a Rainha de Copas de Detroit; a mulher do arqui-inimigo do vigilante noturno. E, pior do que isso, a mulher que matava e atacava sem a menor prudência, sempre com um sorriso largo no rosto.
Ela era feita de tudo o que aquele homem desprezava. Ela se tornou uma história no momento em que se apoiou num homem, mas transformou-se numa lenda no momento em que descobriu que poderia ser muito mais sozinha. O sangue daquele que as pessoas no geral achavam que fosse o seu companheiro ainda lhe manchava as mãos. O vermelho do sangue se mesclava perfeitamente com o tom bordô de seu próprio traje de combate, e ela estava limpando aquele sangue no momento em que o drone parou no ar, e ela entendeu que eles estavam apenas esperando pelo sinal do vigilante para atacar.
— Como foi que chegamos a este ponto, meu bem? — perguntou ela, dando um sorriso triste.
— Você cavou sua própria cova, Rainha de Copas — respondeu ele, insolente. Com um ruído cantado pelo vento, sua arma disparou, e a garra se abriu para acomodar o corpo de Devlin contra o metal, esticando-se num cabo que ela sabia ser de um aço tão firme que não poderia ser cortado. Ela imediatamente sentiu seus braços muito colados ao corpo, e o próprio material de seu traje produziu sons abafados por terem sido feitos para evitar contatos perigosos. — E é assim que tudo termina.
— Não, vigilante... — murmurou ela, observando com uma certa preguiça para a garra em torno dos seus braços. — É aqui que tudo começa.
Com um rodopio que tirou seus pés do chão momentaneamente, ela girou e se abaixou, querendo provocar o efeito de chicote em torno da corda que prendia a garra. O vigilante soltou a arma, sentindo a reverberação do golpe. Ele tirou de seu cinto de utilidades um pequeno bumerangue com pontas afiadas e num formato de V. O objeto saiu zumbindo pelo ar quando ele o arremessou contra Devlin, no que ela graciosamente girou mais uma vez, ondulando seu corpo para erguer a garra contra o bumerangue. O objeto cumpriu o papel que ela queria, partindo a garra que lhe prendia, no entanto... O bumerangue não parou apenas naquele contato inicial, e foi se alojar contra a sua barriga. Devlin conteve um grito.
Ela tentou puxar o objeto, mas ele parecia estar se movendo como um ferrão venenoso. O couro de sua vestimenta não tinha sido projetado contra objetos pontiagudos e perfurantes. Ela não era capaz de sobreviver a um tiro ou um corte bem sério. Poderia, sim, cair num tanque tóxico, mas o mais básico a sua vestimenta não poderia lhe ser útil.
Notando que Devlin não estava conseguindo tirar o objeto de sua barriga, o Vigilante ergueu sua mão e a arma saiu zumbindo com gotículas do sangue de Devlin para a mão dele. Ela desejou ter aceitado os pequenos dispositivos de cura que sua equipe sempre lhe insistia para usar. Ela sempre achou que era um peso demasiado desnecessário, até sentir que sua barriga estava ardendo e queimando com mais rapidez e potência do que um corte simples normalmente faria.
Ela sabia que a maioria das armas do Vigilante eram envenenadas. Ele tinha uma questão muito pessoal para não fazer o uso de armas de fogo, embora não fosse indiferente a qualquer objeto que fosse mortal, e aproveitava muito bem de sua inteligência para estar sempre elaborando armas com usos inimagináveis. Devlin sempre amou aquilo nele. A sua inteligência e poder.
Enquanto o seu próprio sangue se manchava em suas mãos, enquanto ela tentava estancar seu ferimento, ela pensava que talvez em outro mundo os dois pudessem ficar juntos. Ela pensava que talvez eles um dia se encontrariam numa praia qualquer e começariam o romance que tanto acreditavam ser merecedores.
Naquele momento de torpor por ver o seu sangue escorrendo pelas vestes, ela ergueu seus olhos para os do Vigilante, e neles ela viu todos os momentos em que ambos compartilharam. Toda a história que começou da maneira mais inesperada possível. Inimigos que se tornaram amantes, e de volta para inimigos, porque a sociedade jamais entenderia que o bem poderia se apaixonar pelo mäl. Que a morte poderia se apaixonar pela vida. A verdade é que nem mesmo eles poderiam dizer com clareza o que é que tinha acontecido. Como é que tinham cruzado o destino um do outro sem qualquer intenção.
Como todos os romances trágicos, Devlin soube no momento em que descobriu a identidade do vigilante de que não haveria um lugar para eles naquele mundo. Por mais que eles quisessem. Por mais que já estivessem tão envolvidos, tão mesclados um no outro, que já não poderiam mais se esquecer. O Vigilante se tornou uma lenda para Devlin Knox, e a Rainha de Copas se tornou uma lenda para o homem chamado de Richy Wees.
O drone acima de suas cabeças não era apenas uma arma pronta para matá-la, era também um sensor de transmissão, enviando imagens em tempo real daquilo que ambos estavam fazendo. Porque o mundo esperava que eles fossem inimigos, mas eles já não eram nada além de um casal. Pensando nisso, naquilo que a sociedade esperava que eles fizessem — que lutassem até que um dos dois caísse —, Devlin se endireitou, sentindo a todo momento que o seu sangue não parava de escorrer. Ela se endireitou e entrou em posição de luta.
Aquela cidade era desprezível. Houve uma época de glória para Detroit, mas agora, com a criminalidade comandando cada rua, era impossível dizer que todo aquele lixo algum dia havia sido algo glorioso. Detroit era formada por pontes, rios, e muita gente imbëcil. Devlin se formou ao redor destas pessoas. Ela esteve muito tempo enclausurada numa instituição para doentes mentais, e quando saiu ao mundo, já não sabia dizer se a cidade que pensava viver era a mesma que agora seus olhos enxergavam. Detroit continha uma nuvem espeça e de cor acinzentada que lhe cobria os céus. Uma marca constante da poluição. As pessoas estavam caindo em desgraça naquela cidade, e ela havia contribuído para tornar tudo ainda pior.
Não se orgulhava do que tinha se tornado. Teria voltado atrás, se tivesse escolha. Porém, se assim não fosse, ela jamais teria conhecido Richy. Jamais teria se entregado tão abertamente para um amor. Apesar de eles serem rivais. Apesar de muitas vezes terem tentado provocar a morte um do outro. Ele ainda era a única versão de felicidade que Devlin conhecia. Mesmo assim, ali estavam os dois, aproximando-se com punhos erguidos e uma aura de quem poderia arrancar a cabeça do outro fora com um único golpe.
O drone no alto se moveu para ficar na direção dela, tomando aquele início de briga como indicativo suficiente de que era hora de intervir. O vigilante correu até ela, desferindo alguns golpes que ela facilmente se esquivou. Enquanto ele estivesse lutando, eles não poderiam atirar. Por mais que o objeto de inteligência voasse a todos os lados, procurando um espaço para que uma bala fosse disparada contra a cabeça de Devlin, o vigilante estava conseguindo cobri-la de todas as direções. Ele era um homem muito grande, principalmente quando estava tão perto daquela maneira, e toda a vez em que seus braços se abriram para que ele desferisse golpes que nunca a acertavam, sua capa escura lhe cobria, e por um rápido momento, ela sorria para ele em agradecimento.
A luta perdurou no que Devlin foi capaz de acertar alguns socos e chutes contra o peito da armadura do vigilante, mesmo sabendo que ele não estava sentindo nada por baixo da vestimenta. Ele tinha a decência de não acertar nenhum golpe contra ela, principalmente porque o rosto dela estava coberto apenas nos olhos por uma máscara arredondada. Ele facilmente a derrubaria e desmaiaria se quisesse. No entanto, ele não queria. Ele apenas queria atrasá-la por tempo suficiente para que os seus comparsas chegassem, para que ela pudesse escapar da mira dele e da polícia, porque todos queriam a cabeça de Devlin, A Rainha de Copas, menos ele, o Vigilante Noturno.
Houve uma trepidação estranha no ar de repente, e o terraço que lhes servia como ringue estremeceu ao ponto de que ambos perderam o equilíbrio. Devlin se ergueu num ímpeto, pegando um dos bumerangues do Vigilante antes que ele pudesse fazer mais do que observar. Com um giro no ar, ela arremessou o objeto contra o drone, fazendo com que ele caísse num estrépito. No momento em que o Vigilante soltou a arma de garra, ela caiu e foi esquecida no chão, então Devlin a recuperou e levou alguns poucos segundos para entender como o objeto funcionava, fazendo a corda recuar e novamente disparando-a, dessa vez na direção do vigilante.
Ela sabia que ele poderia ter se erguido, ter se esgueirado de alguma forma. No entanto, ele apenas deixou que ela o imobilizasse. Fosse a sua armadura grande demais para ser totalmente envolvida pela corda, ou por ela não ter sabido usar a arma, de alguma maneira ele continuou com os braços numa distância considerável do corpo. Se ele abrisse os braços de uma só vez, talvez quebrasse a corda, ou talvez apenas a esticasse o suficiente para deslizar pelo resto do corpo. Ele, porém, continuou imóvel.
Aproximando-se com uma rapidez surpreendente, um veículo aéreo surgiu entre os prédios decadentes de Detroit. Antes que chegasse perto o bastante para que os olhos se acostumassem com o tamanho e o formato, o veículo mais se parecia com um grande pássaro vermelho, que ardia em chamas enquanto voava ao socorro de sua dona. Devlin sabia que era apenas um pequeno avião para situações drásticas, e aquela era uma delas. Ela lançou um olhar para o Vigilante, e ele permaneceu no chão, apoiado num cotovelo enquanto a observava. Ela quis rir. Quantas vezes já não o tinha visto daquela forma em sua cama?
— É aqui que nos despedimos, Vigilante — disse ela, fazendo um gesto militar para saudações. — Foi um prazer compartilhar uma história com você.
Os olhos verdes do Vigilante escrutinaram o corpo dela, como se quisessem gravar a imagem em sinal de despedida. Ele acenou com a cabeça de modo muito imperceptível. E ela se lembrou dos bons momentos. Devlin assoprou um beijo na direção dele, erguendo o braço quando o pequeno avião pairou sobre suas cabeças, e uma corda em forma de escada deslizou para capturá-la.
Ela segurou com firmeza no que seria o primeiro degrau, e observou com olhos atentos enquanto era puxada para cima e observava o mundo abaixo. Centenas de viaturas estavam paradas no prédio em que ela esteve, e a porta do terraço estava se abrindo com violência enquanto o detetive da cidade surgia com seu bigodão e sua expressão de desagrado no rosto. Ela gargalhou alto o suficiente para que o som ecoasse, imitando quase que perfeitamente o homem que todos acreditavam ser o seu amante. A corda ainda subia enquanto ela era içada, e o prédio já estava se distanciando, embora ela ainda olhasse para o mesmo ponto onde sabia que o Vigilante ainda estava.
Devlin foi erguida, puxada pelas axilas por mãos firmes e macias, que tomaram cuidado para puxá-la por completo para a aeronave. Não havia mais do que dois bancos, de modo que ela foi muito bem presa num cinto e se viu ao lado de uma das muitas mulheres que comandavam junto dela aquela organização criminosa, embora o mundo se enganasse acreditando que elas fossem apenas marionetes para os homens.
Ninguém imaginava que Devlin era a pessoa que dava a palavra final, deixando que os homens se expusessem e as mantivesse sob sigilo. O sol bateu contra os vidros do pequeno avião, refletindo luz amarelada por toda a cabine, e manchando os cabelos escuros da piloto que agora esticava a cabeça para inspecionar Devlin pelos bancos de direção. A mulher lançou um olhar de inspeção pelo corpo de Devlin, franzindo o rosto ao notar todo o sangue em suas mãos.
— Para onde agora, senhorita? — perguntou ela naquele seu sotaque estrangeiro.
— Para o lugar onde tudo isso começou — respondeu Devlin em voz rouca, deitando a cabeça contra o banco, apenas para poder observar o sol.