Anna Camorra
Ele ainda não apareceu hoje.
Olhei pela janela da minha prisão, que chamavam de quarto, e olhei cada homem que estava de guarda por toda a extensão do nosso jardim. Ele não estava ali. Um medo irracional tomou o meu estômago e me obriguei a respirar.
O exercício que a Dona Gertrudes tinha me ensinado fazia muitos anos me ajudava a colocar os meus sentimentos dentro de uma caixinha, no meu coração.
“Respire e segure o ar, até sentir a sua garganta queimar, depois inspire com calma, até esvaziar.”
Ela dizia que eu não poderia me dar ao luxo de ter uma crise de raiva. Isso nunca foi bem visto para uma mulher.
Nós tínhamos que ser delicadas, doces e amáveis o tempo todo.
Caso contrário, não teríamos nenhuma serventia para a família. Seriam rejeitadas e morreríamos sozinhas.
Dona Gertrudes foi alguém assim. Uma rejeitada. Ela fazia parte de uma das famílias de baixo escalão e nunca conseguiu um bom casamento. E depois de alguns anos, ela se tornou amante de um homem poderoso e foi abrigada aqui, como uma empregada. O meu avô sempre gostou da Gertrudes, mesmo que ele não pareça gostar de muita gente, para ela, ele sempre sorri.
Senti os meus nervos relaxarem e o meu estômago acalmar depois de respirar algumas vezes.
Ele está bem. Ele conseguirá apoio da Clara e podemos ter uma chance de ficarmos juntos.
Eu senti os meus olhos arderem com esse pensamento.
Será que poderíamos ficar juntos de alguma forma?
O ar estava pesado ao meu redor, quando concentrei os meus olhos no jardim de novo. Exatamente onde eu o vi pela primeira vez. Permiti que um sorriso dominasse o meu rosto, lembrando a forma que ele caminhava confiante, como se fosse o dono do mundo. E ele se tornou, o dono do meu mundo.
Respirei fundo de novo, agora sem tentar conter as emoções doces que me envolviam. Nós tínhamos trocado um beijo. E aquele beijo foi tudo para mim.
Eu nunca tinha sido tocada antes, por conta das malditas regras da máfia. Eu deveria ser intocada, vista apenas em eventos específicos, até completar 20 anos, que era a idade que a minha família aceitaria ofertas pela minha mão.
Uma batida na porta me tirou dos meus pensamentos.
- Sim? - A porta abriu silenciosa e a Perlla estava parada ali. Poucas pessoas sabiam que ela não era a minha mãe, mas ela agia como se fosse. Quando ela casou com o meu pai, eu tinha alguns meses de vida, fruto de um caso que ele teve com uma das empregadas da nossa casa. A minha mãe partiu assim que eu nasci, e eu nunca soube nem mesmo o nome dela.
- Vejo que está pronta. - Assenti, me virando para mostrar o vestido que escolhi. Ele era creme, com renda, e cobria boa parte da minha pele. Justo em cima, até as mangas compridas e solto da cintura para baixo, que ia até os meus pés. Prendi parte do cabelo e passei apenas um brilho nos lábios.
- Qual exatamente é o compromisso que vamos, Perlla? - Perguntei seguindo ela pelo corredor. A nossa relação nunca foi amorosa e piorou quando a Gio nasceu.
- Não me chame assim. - Ela me repreendeu. Usei todo o meu controle para não virar os olhos para ela. - Vamos a um evento no clube. Você precisa ser vista, para quando chegar a hora… - Ela parou de falar, e eu sabia que ela tinha cuidado para dizer que eu era um objeto, para ser usado como um meio de negociação. Para resolver algum conflito ou potencializar a nossa riqueza.
Faltavam 4 meses para os meus 20 anos e eu sabia que eu tinha pouco tempo até um pretendente aparecer. Suspirei e a segui escada abaixo, a caminho do estacionamento.
A comitiva de acompanhamento era composta por 10 homens, armados.
A Giorgia estava nos esperando na entrada da garagem.
- Olá Anna. - Desde que passei a ser vista como adulta a forma com que a Gio me tratava mudou. Ela sempre foi uma companheira de aventuras e eu sempre busquei protegê-la. Mas ela era filha da Perlla, eu não. Nunca soube muito bem o que provocou o nosso afastamento, mas eu sabia que doía muito.
- Olá Gio, como está? - Sorri discretamente para ela.
- Estou bem. - Como todas as vezes, ela não perguntou se eu estava bem também.
Entrei no carro e fiquei aliviada por estar sozinha. As duas iam em outro carro, para não precisarem ficar no mesmo espaço fechado que eu. O Ton assumiu o volante e começou a dirigir em silêncio.
O Tom sempre foi educado comigo, desde que eu me lembrava. Ele era o meu segurança particular e se tornou o meu amigo, depois de alguns anos, quando eu implorei que ele me ensinasse a atirar, o que era proibido para as mulheres.
- Como está essa manhã, senhorita? - Ele me perguntou e eu suspirei.
- Não quero me casar com nenhum dos babacas do clube. - Ela me deu um sorriso pelo retrovisor.
- É a sua missão. - Ele sempre tratou aquele tema com certa distância, ele acreditava que o formato das famílias funcionavam. Eu não respondi mais nada, observei o caminho, tentando não pensar no meu lindo Bambino, que tinha ido pedir ajuda para mafiosos desconhecidos.
Ninguém sabia do que tinha entre nós dois. Mesmo que ele não fosse um Bambino, ele não estava à minha altura, segundo os costumes arcaicos da nossa família. Eu era do mais alto escalão da máfia de Nápoles, uma princesa Camorra, e apenas as famílias de um escalão abaixo poderiam se relacionar comigo. Aqui ele era apenas um segurança, um soldado… Mesmo que na Sicília ele fosse alguém, e lá ele era…
- Por onde anda os seus pensamentos? - O Tom perguntou, me tirando do estupor.
- Estou pensando, será que o meu pretendente vai ser violento? - Esse era um outro problema que eu precisava começar a me preocupar. Os homens da máfia eram na sua maioria, um bando de traumatizados e malucos. Os casos de feminicídios eram assustadores.
- Você sabe se defender. - O Tom falou para me acalmar. Ele tinha me ensinado a atirar, depois de 2 anos insistindo e também tinha me ensinado a lutar corpo a corpo. Era pouco, mas era melhor que nada.
- Mesmo assim. - Eu respondi. - Tomara que seja alguém bom. - Pensei no Nicolas de novo. Eu faria qualquer coisa para que pudesse ser ele.