Sandriely - A fiel

1216 Words
Acordei com uma réstia no meu rosto. As portas velhas desse barraco de merda não tapam o suficiente pra não entrar luz. Eles não cobriram a casa direito. Felizmente a cama do rei do morro é até decente (E cheirosa). Uma hora dessas era pra estar cuidando do meu apartamento, estudar um pouco e depois iria pra mais um plantão. Mas olha onde estou. Abri a janela e apoiei meus braços no batente. A vista mostra o contraste entre o morro e a parte nobre da cidade. Eu não sou da parte nobre. Sou da parte mais comercial. Moro na casa da minha avó com ela e minha mãe. Minha avó já é muito idosa e nem deve ter notado minha falta, mas minha mãe, essa deve estar desesperada. Ela ainda trabalha como secretaria do lar, só que não na casa do meu pai, mas em outras casas de rico. Ela já deve ter ligado pra polícia e é bem possível que meu rosto já esteja na TV. Na Record é claro. Limpei meus olhos e fui pro banheiro escovar e dar um jeito na minha cara. Vesti minha roupa decente de novo, que por sinal tá suja, tomei um banho de perfume e enrolei meu cabelo. — Bom dia, Doutora. — um rapaz me deu um susto ao aparecer atrás de mim com uma sacola de pães. — Pelo amor de Deus! Aqui vocês não precisam de arma pra matar ninguém. Credo! — botei a mão no peito. — p**a que pariu, meu coração! — Foi m*l. Aqui os pão. O Gringo disse pra tu dá um pulo lá no barraco da mãe dele. Por acaso virei Saci Pererê? — E quem diabos é Gringo? — peguei a sacola da mão dele. — O Ricky! Claro. Que apelido de merda. — Tá bom. — sentei na cadeira. Duvido ele ter arranjado os aparelhos da noite pro dia. Abri a sacola na mesa. — Só pão? Não tem nem um ovo?... — desanimei. Será que o carro do ovo sobe o morro? — Foi isso que ele mandou. Já fui. — ele saiu do barraco. Toda vez que aparece alguém é diferente. É outro cara. Nunca vi o mesmo "capanga" aparecer pra dar recado. Também não tinha nenhum bonitinho. Será que o rei do morro é rei porque é o único cara bonito aqui? Deve ser, porque ter um rei feio deve ser f**a. Depois de comer meus pães com 100% fermento, saí da casa feito uma doida varrida. Eu acho que lembro o caminho da casa da mãe dele, mas todos os barracos são iguais então tá f**a acertar. Encontrei a Beta, irmã do rei do morro, numa das escadarias conversando com um cara feio que dói. — Beta! Me ajuda a chegar na casa da sua mãe. — pedi desnorteada. — Sim, sim. — ela assentiu e se despediu do feiura com um selinho. Misericórdia, aqui nesse morro o que tem mais é falta de homem e desespero. [...] Quando chegamos no barraco levei um susto com o tanto de aparelhos que tinha na sala. Quem é La Casa de Papel perto desses traficantes? Isso não pode ser comprado fácil. — Não disse que conseguia Doutora? — o rei do morro apareceu com um sorriso convencido. Eu tenho medo dele depois disso. — Ok. — me dei por vencida. Agora eu posso estudar o caso da mãe dele. — Você já vai começar a tratar ela? — ele tá ansioso. — Existe muita coisa antes disso. Mas como ela já tá com os exames em dia, logo logo eu começo. — peguei o monte de exames que ela deixou perto da cama. — Mande um dos seus empregados ir buscar minha bolsa. Eu tenho umas fichas de avaliação lá dentro. — Rolinha! — ele assobiou. Misericórdia que apelido é esse?! — Vá lá no meu barraco buscá a bolsa da Doutora. Pelo menos vou ficar trabalhando aqui né. — E o que mais? — ele continua afobado. — Saia daqui. Você e todo mundo. Eu tenho que organizar esses aparelhos e os remédios. — Então bora cambada. — ele arrastou os outros companheiros e a irmã dele sem pestanejar. Caí a fundo nos aparelhos e arrumei tudo. Até que ficou parecendo um quarto de hospital... hospital psiquiátrico abandonado e provavelmente assombrado. A mãe dele acordou e parece melhor do que ontem. Ela sentou. — Oi. — sorri. — Oi. — olhou pra os aparelhos. — Você vai mesmo cuidar de mim? — parece esperançosa. — Sim. Com fé em Deus vai dar tudo certo. — terminei de organizar os medicamentos e o cara da rola pequena (rolinha) apareceu com minha bolsa. Peguei a ficha de avaliação e comecei a fazer a anamnese da mãe dele. No final das perguntas medi a pressão dela e fiz a ausculta cardíaca e pulmonar. Ela não tá tão r**m hoje. — Olha, eu sei que tu tá pensando que meu filho é r**m por ter te trazido pra cá, mas ele não é. Ele só tem medo de me perder. — Ele tem razão em ter medo. — dei um pequeno sorriso. Não quero imaginar perdendo a minha. — Ele é o melhor de todos os donos. Olha, aula de história do morro. Adorooo. — De quem ele tomou? Parece que as coisas funcionam assim aqui. — Ele não tomou. O tio dele quem deixou pra ele. Opa. Não parece as histórias que lia do w*****d. — Como assim? — Quando eu era mais nova, minha mãe me arranjou um trabalho numa casa de família. Era de rico. Eles tinha uns amigo gringo e eu era fogosa... O homem mais bunito que eu já vi na vida, Doutora. Eu fiquei com ele sem saber o que ele tava falano. Eu nunca nem soube falar brasileiro direito, piorou inglês. "Português" — A senhora deu uns pega no gringo? — sorri. — Foi. E ques pega. Mas descobri que tava grávida depois que ele foi embora. E depois perdi o trabalho. Meu irmão ficou brabo. Ele era o dono do morro. Queria matar o gringo. Gerald era o nome do cara. Mas o Gerald nunca voltou. Então o meu irmão me ajudou a criar o Ricky. Mas o apelido pegou porque ele num tem cara de ser do Brasil. — sorriu. — Verdade. Ele tem cara de Gringo. — admiti. Agora tudo faz sentido. — Mataram meu irmão num tiroteio e Ricky ficou no lugar. Ele é um rapaz bom. Não gosta de fazer m*l a ninguém. Ele só quer ver as coisas certas, do jeito que deve ser. Amém. [...] Depois que terminei tudo resolvi dar um medicamento pra ela ficar tomando todo dia e saí de barraco. Amanhã eu começo o tratamento depois que estudar o caso. Voltei pro barraco do Ricky (até que esse apelido é bonitinho. Melhor que Gringo) e logo que entrei dei de cara com uma garota na roupa mais a vácuo que já vi, e um aplique enorme nos cabelos. — Oi. — falei estranhando a presença dela. — Então é você a Doutora... — me encarou admirada com um sorriso de deboche e se balançando como a Beyoncé. — Sim. E quem é você? — Sandrielly. A fiel do dono do morro.
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