CATALINA
- Conte-me sobre sua infância senhorita Cristal.
Essa era a minha décima sexta terapeuta que tive nesses três anos de reclusão, está, como as dezenas delas não conseguem me ajudar a recuperar parte da minha memória. A suspeita de um trauma fortíssimo no passado fez o meu, por assim dizer, tutor de ajuda, a pagar várias sessões desse tipo, porém nunca obtive resultado. O desconhecido que pagava todas as minhas despesas para me manter segura, mensalmente mandava uma carta para o endereço que resido em Madri, capital da Espanha.
Este era o único meio de comunicação que tínhamos, desde o dia que misteriosamente recebi a primeira carta na minha cama, no quarto da mansão. Quando fiz dezoito anos. O tal benfeitor sabia dos transmite do meu pai e queria desesperadamente me salvar, pois sabia que o meu futuro marido era um sádico da pior espécie.
Não hesitei e me aventurei nessa loucura de fugitiva. Recebi novos documentos, tudo meu foi perfeitamente alterado, minha nova identidade; Cristal. Além de ganhar as chaves de um apartamento de dois andares e um emprego modesto numa livraria infantil. Lá eu podia atender os clientes no salão sem chamar atenção, fora que o dono somente contratava mulheres simples. Dono esse que nunca aparecia, somente era gerenciada por uma das meninas, a chefa geral.
O desconhecido afirmava que não precisaria mudar de aparência, até senti uma certa exigência em suas palavras escritas, sua letra era perfeitamente regular. Ele não desejava que eu mudasse o tom aloirado dos meus cabelos. Resumindo, o cara, ou o velho misterioso que absolutamente cuidava de todas as minhas necessidades, sabia tudo de mim e eu nada dele. Isso me assustava um pouco, porém, viver num casamento forçado me dava um medo mil vez pior, então aprendi aceitar o meu destino.
- Vamos, estamos aqui há mais de meia hora e tudo o que consegue fazer é ficar deitada feito uma defunta olhando para cima. Cristal, a conversa entre terapeuta e o paciente precisa ser de mão dupla. Não pode me fazer gastar saliva sozinha, dê valor ao cheque que é depositado na minha conta todas as vezes que tem consulta. Não sou barata, e gosto de resultados.
Sua puxada de orelha trouxe alguma significância para o meu interior.
- Não posso, não me lembro de nada.
- Pode ser qualquer coisa, me dê algo para começarmos a puxar os gatinhos. Sabe perfeitamente que precisamos mergulhar neles.
- Eu sei.
Falei em castelhano, falado pela quase totalidade da população do país. A língua materna deles. Mas a doutora Kina era brasileira, e podíamos nos comunicar nos dois dialetos. Diferentemente quando saia porta a fora do consultório ou no trabalho, raramente via-se um conterrâneo, e isso inibia minhas chances de ter uma vida social. Mesmo que as pessoas ao meu redor tentem fazer amizade, chegar perto, ou me chamar para sair num final de semana. Podia ser até cisma minha, mas sempre tive a impressão de estar sendo observada. Isso estranhamente me excitava, ao ponto de olhar feito uma maluca para todos os lados, pelas extremidades das ruas. E no museu do Padro, onde vou uma vez a cada três meses.
Sabia que não era o meu patriarca, senão estaria sendo deportada feito um bicho para sanar sua dívida, por causa do acordo matrimonial ele ficou endividado até o pescoço, mas não me importava. O mais estranho era receber informações através das cartas do desconhecido que eu continuava como herdeira da família Avants, na certa que é uma armadilha. Não confio no meu pai.
Então sabia de antemão que só poderia ser “ele” me olhando e isso trazia alivio ao meu coração. Uma expectativa que um dia estaria cara a cara com o meu anjo de luz. Um homem que se presta a isso só pode ser bom, ter caráter.
- Cristal?
- Hã?
- Que bom, está acordada. Poderia me fazer o favor de começar a falar?
- Doutora. - Respirei fundo passando a mão nos cabelos de modo frustrante. - Tudo se apagou da minha memória. A única coisa que sei que tenho uma lacuna, nos meus quatro anos de idade até os seis. E mesmo assim, depois disso as lembranças daquela criança da qual havia me tornado são tristes demais, conseguinte, minha linha temporal dá um pulo para os meus oito anos. Consigo lembrar da minha mãe daquela época, morei com ela até os meus quinze anos. Minha guarda voltou para o meu pai, ele era um homem sério, carrancudo, autoritário, severo ao ponto de me por de castigo caso não tirasse nota dez em todas as matérias, mas quando fazia o que ele mandava deixava dar festas na mansão, assim fui vivendo normalmente.
Não iria em hipótese alguma comentar da minha fuga, por duas simples razões; eu era maior e segundo; meu protetor exigiu sigilo absoluto para continuar me protegendo, senão estaria por minha conta e risco.
- Deste modo temos dois anos vagos da qual é a fonte dos seus terríveis pesadelos, das crises de ansiedade e principalmente sua insônia crônica.
- Descreveu uma maluca de carteirinha. - Comentei e bufei sentindo aquela angustia costumeira.
- Não faça isso com você mesma senhorita. Estou aqui para desvendar esse mistério.
- Tudo bem.
- Agora, definitivamente feche os olhos, estou aqui e nada vai poder te pegar. Relaxe o corpo, libere os sentidos, algo vai surgir e fazer sentindo em sua mente.
- Ok, fechando os olhos... 3... 2...1!
Tentei cochilar por uns segundos, seria fácil pois o sono vinha sem aviso durante o dia, reclamando das intensas noites sendo ignorado.
Deve ter passado pouco tempo porque agora conseguia ver a neblina que sempre chegava nas horas curtas de descanso. Era como se eu flutuasse, tentando passar por toda essa densidade grossa, espessa, e dessa vez misteriosamente consigo pousar em algo duro, parecia o chão, o piso de alguma casa. Previamente os monstros viam me pegar antes de chegar numa fase desconhecida nos meus pesadelos. Avanço, andando quase deslisando, ao olhar para cima vejo que cheguei aqui pois, não havia teto na.... mansão?! O que essa residência tem a ver com os meus traumas? Eu vivi aqui durante a adolescência e nada sentia, por que isso agora?
- Olá! Como vai?
A voz infantil masculina vinha lá de fora. Então mesmo com a neblina atrapalhando densamente minha visão busquei correr achando que aquilo me daria algum tipo de resposta. Todavia quando aquela névoa se dissipou a figura de um garoto surgiu, ele sorria, mas não era para mim. Aquela garoa sumiu o suficiente para revelar que ele estava nos dois primeiros degraus da imensa escadaria na cor dourada, mostrando mais uma vez que todo o mistério sempre esteve na casa onde morei. Então eu vivi aqui antes, sim, claro, mas por que minha mãe nunca me falou nada?
O menino repetiu a mesma fala, ele agora parecia aquelas imagens falhadas de televisão, ou um fantasma, uma aparição. Quem era ele? E porque sentia meu peito sufocar quando enfim outra imagem feminina surgia do meu lado, vestida de rosa, torcendo as mãos pequeninas com tanta força para um ser tão miúdo que me fazia acreditar que ela tinha um problema sério. E de repente ela se virou na minha direção, exibindo muita indignação, gritando:
- VOCÊ NÃO FEZ NADAAAAAA!!!!!!
Me assustei e milhares de mãos em decomposição tentaram me tocar por detrás, sai correndo dando meia volta, para dentro da residência. Ao olhar para trás as figuras haviam desparecido, como se não tivesse estado lá. Mas o medo maior foi quando tropecei em alguém abruptamente, ao ponto de chocar meu rosto. Era bem mais alto que eu e imediatamente me encapuzou, agarrando-me para algum lugar, tentei me sacudir, não queria permanecer na escuridão.
Despertei daquele tormento aos berros, levantando e chorando.
- Acalme-se. - Falou da maneira mais suave possível.
Passei a mão no peito, secando o suor que descia sem parar. Respirei conforme havia-me orientado, e depois me deu um copo d'água, e claro, o meu calmante para os nervos. Para que eu não tivesse uma parada cardíaca devido aos meus problemas com esse fato decadente da minha vida.
- Sente-se e me conte o que a deixou assim.
Sentei, revelando o ocorrido.