Memórias de um pai

1971 Words
Hellen se acomodou em um dos bancos de couro macio do jatinho particular, observando os outros passageiros embarcarem, um a um. Seu coração ainda batia rápido de excitação, mas agora, enquanto esperava, a adrenalina começava a se acalmar. Ela estava sozinha no seu assento, ocupada em seus pensamentos sobre Mateo e sobre a missão que a esperava em Veneza. Seria um grande evento, e ela sabia que não podia cometer erros. Enquanto isso, Cross, seu pai, foi o último a embarcar. Sua figura imponente passou pelos outros homens, cada um acenando respeitosamente. Ele era uma lenda viva. Mesmo Hugo, com todo seu tamanho e autoconfiança, ficava tenso na presença do homem que se sentou no fundo do jatinho, isolado de todos, como se carregasse o peso de um mundo inteiro sobre seus ombros. Cross se acomodou, mas a tensão estava estampada em seu rosto. Seus olhos escuros fitavam o horizonte pela pequena janela do avião, mas sua mente estava muito longe dali. Ele suspirou, sentindo o aperto no peito que raramente admitia. Essa viagem, essa volta para a Itália, mexia com ele de uma forma que nem mesmo seus mais fiéis amigos poderiam compreender. Era como abrir uma velha ferida, uma que nunca cicatrizou por completo. Cross não era um homem comum. Nascido na Itália, ele foi forjado no calor da máfia, crescendo de forma lenta, mas constante, em um submundo onde apenas os mais fortes sobreviviam. Ele começou sua carreira como um soldado simples, um jovem que fazia o trabalho sujo para homens muito mais poderosos. Mas Cross não era como os outros soldados. Dentro dele havia uma fúria, uma raiva incontrolável que ele transformou em força e foco. Cada missão que lhe davam, ele cumpria com uma precisão letal, uma frieza que fazia os outros hesitarem em cruzar seu caminho. Ele era metódico, calculista, e tinha uma sede por poder que o fazia se destacar entre os demais. Seu primeiro grande ato de brutalidade, o que realmente lhe deu a fama, aconteceu quando ele ainda era um jovem soldado. Uma pequena família rival tinha se atrevido a cruzar os negócios da máfia onde trabalhava. O Don ordenou uma retaliação, mas o que Cross fez foi mais do que retaliação. Ele invadiu a casa do chefe rival no meio da noite, sozinho, com uma faca em uma mão e um revólver na outra. Ele matou todos, do patriarca ao filho mais novo. Mas ele não apenas os matou. Ele deixou o corpo do chefe pendurado na sala da casa, como um sinal de aviso para qualquer outro que ousasse desafiar a máfia. A partir daquele momento, seu nome começou a circular com temor. Essa sede por sangue, no entanto, não era sem propósito. Ele sabia que o poder na máfia vinha não apenas da força, mas também do medo que inspirava. E Cross inspirava medo. Com o passar dos anos, ele subiu na hierarquia, tornando-se um dos melhores soldados da máfia. Ele estava em todas as missões importantes, executando com precisão cirúrgica qualquer um que fosse uma ameaça. Quando finalmente se tornou um Capo, as coisas mudaram de escala. Ele liderava uma equipe de homens com a mesma brutalidade e eficácia. Mas então surgiu o problema: o herdeiro do Don, um jovem fraco, sem a determinação ou o estômago para o mundo da máfia. Cross, por outro lado, se tornava cada vez mais forte, e os homens começaram a notar. Quando o Don morreu, muitos se recusaram a seguir o herdeiro. Eles viam em Cross o verdadeiro líder, alguém que poderia levar a máfia a uma nova era de poder. Cross sabia o que precisava ser feito. Ele desafiou o herdeiro publicamente, dizendo que ele não era apto para liderar. O herdeiro, com raiva, tentou colocar sua própria guarda pessoal contra Cross. O que se seguiu foi uma guerra interna. Cross, com um grupo de homens leais, enfrentou o herdeiro em uma batalha sangrenta pelas ruas da Itália. Eles lutaram como cães selvagens, e Cross, sem piedade, matou o herdeiro com suas próprias mãos, olhando em seus olhos enquanto o sufocava com o próprio cinto. Ele não parou por aí. Qualquer um que se declarou fiel ao herdeiro foi caçado e eliminado. O sangue manchou as ruas de Roma naquela noite, e o nome de Cross se tornou uma lenda. Foi nessa época que ele recebeu o apelido que carregaria pelo resto da vida: "Peste n***a". Onde quer que fosse, a morte o acompanhava, e ninguém ousava desafiá-lo. Mas o poder vinha com um preço. Com sua ascensão ao trono da máfia Didion, Cross acumulou inimigos rapidamente. Outras máfias italianas começaram a temer que ele as atacasse, tomando seus territórios, suas riquezas e suas vidas. A paranoia começou a crescer, e alianças secretas se formaram para orquestrar a morte de Cross. Ele sabia disso. Ele sentia a pressão de todas as direções. Foi então que ele tomou a decisão que mudaria tudo. Em busca de uma vida com menos ameaças imediatas, Cross transferiu toda a máfia Didion para os Estados Unidos, especificamente para Chicago. Ele sabia que a América era um novo campo de batalha, mas seria um onde ele poderia construir um império com mais controle, longe dos velhos inimigos da Itália. Por décadas, ele manteve sua distância, recusando todos os convites para eventos na Itália, consciente de que uma simples volta poderia selar seu destino. E assim, durante todos esses anos, ele não colocou os pés em sua terra natal. Agora, porém, ele estava voltando. Não por vontade própria, mas por Hellen. Sua filha, que, sem saber, o forçava a encarar fantasmas que ele havia deixado para trás. Cross suspirou novamente, mais tenso do que gostaria de admitir. Ele não temia por si mesmo, mas por ela. Ele sempre soube que o mundo da máfia exigia sacrifícios, e ele havia feito muitos. Mas Hellen... Hellen era diferente. Com os pensamentos perturbados, ele olhou pela janela, vendo as nuvens passarem rapidamente. Cross suspirou profundamente, afundando-se ainda mais no banco de couro do jatinho. "Maldita Karen", pensou, sentindo a tensão em seu peito crescer. A mulher tinha entrado na sua vida como um furacão, e sem que ele percebesse, havia plantado nele a ideia de ser um pai melhor, de cuidar dos filhos de uma forma que ele nunca imaginara antes. Cross, o temido “Peste n***a”, o homem que fez muitos tremerem com apenas um olhar, agora estava preso nesse dilema familiar. E essa tentativa de ser um pai melhor o estava levando diretamente para o olho do furacão. Por ele, Hellen nunca teria se envolvido com Mateo Castilho. Ele preferia que ela esquecesse o maldito Castilho, deixasse aquela história de amor proibido para trás e focasse no que realmente importava: a família Didion e a expansão do império que Marcos estava construindo. Hellen, em sua visão, tinha todo o potencial para ser muito mais do que estava tentando ser. Ela poderia crescer ao lado do irmão, tornar-se seu braço direito, uma verdadeira capo com o peso de uma liderança feminina na máfia. Marcos já estava fazendo história, unificando toda a América sob seu comando, transformando a máfia Didion na maior potência criminal do continente. Se Hellen seguisse esse caminho, ela poderia fazer história ao seu lado, comandando, ditando as regras, abrindo um precedente para algo nunca antes visto. Uma mulher no comando de uma das maiores máfias do mundo. Era uma visão grandiosa, e Cross sabia que sua filha tinha a força e a determinação para isso. Mas ali estavam eles, cruzando os céus rumo a Veneza, não para consolidar o império, mas para que Hellen pudesse viver seu romance proibido. Cross bufou, frustrado. Ele simplesmente não entendia essa coisa de amor romântico. Para ele, tudo era poder, controle, alianças. Ele havia tido apenas duas mulheres em sua vida que mexeram com ele, que despertaram algo mais do que uma simples conveniência. Helhena, mãe de Marcos e Hellen, tinha sido uma dessas mulheres. E agora, Karen. A maldita Karen, que o desestabilizava de uma maneira que nenhuma outra havia conseguido. Ao pensar em Karen, uma leve faísca de prazer brincou em seus pensamentos. Ele imaginou formas de puní-la assim que voltassem a Nova York, não só de forma c***l, mas de maneira que lhe trouxesse diversão. Ela tinha insistido para ir junto nessa viagem, e ele precisou ser firme ao deixá-la para trás. Ele não sabia o que encontrariam na Itália. Seus antigos inimigos poderiam ainda estar por lá, esperando uma oportunidade para se vingar. Ou talvez os Castilhos tentassem algo contra ele. Não havia espaço para distrações, e Karen, por mais que ele gostasse dela, seria uma distração. A única coisa que importava agora era garantir que Hellen ficasse segura. Ninguém tocaria em um fio de cabelo de sua filha, ou conheceriam a fúria do “Peste n***a”. Ele sorriu de forma quase imperceptível ao pensar nisso. Era raro que um sorriso cruzasse os lábios de Cross, mas ali, naquele momento, ele se permitiu relaxar por um segundo. Sua mente divagou até Nolan, o filho adotivo de Marcos. O pequeno garoto de apenas um ano não tinha o menor medo dele, o que era uma curiosidade em si mesma. Mesmo tão novo, Nolan corria em sua direção sempre que o via, jogando os pequenos braços para cima, pedindo colo. Cross, que já havia feito homens adultos chorarem só de olhar para ele, se via desconcertado com aquele garotinho que não se importava com sua reputação de assassino c***l. Com um leve riso, ele se lembrou das vezes em que segurava Nolan nos braços, sentindo uma estranha sensação de paz que raramente o visitava. E logo teria mais duas netas para mimar. Bruna, a esposa de Marcos, estava prestes a dar à luz gêmeas. Isabella e Isadora seriam os novos membros da família Didion, e Cross já podia se ver curtindo a aposentadoria rodeado pelos netos. Ele queria estar lá, queria ver aqueles pequenos crescerem, e queria deixar para trás a vida sangrenta da máfia. Mas sabia que, antes de poder se entregar a essa paz, havia ainda um último desafio pela frente. Esse desafio era Hellen. Ele precisava garantir que sua filha estivesse em um bom lugar antes de poder descansar de verdade. Toda a brutalidade que ela tinha enfrentado, toda a dor e sofrimento que havia passado, Cross sentia que devia a ela o equilíbrio que nunca conseguiu dar durante sua criação. Ele a havia preparado para a guerra, para a violência, mas não para a felicidade. Talvez por isso ela estivesse agora buscando algo que ele jamais poderia ter imaginado para ela: um romance, uma vida ao lado de Mateo Castilho. Ele, no fundo, não entendia essa necessidade de Hellen. Se fosse por ele, ela se concentraria em construir seu próprio império ao lado do irmão. Talvez até se tornasse Don por direito próprio, a primeira mulher a liderar a máfia Didion. O potencial estava ali, brilhando nela. Mas Cross sabia que esse tipo de decisão não era algo que ele podia forçar. Hellen sempre teve uma veia rebelde, uma que a fazia seguir seus próprios instintos, mesmo quando todos ao seu redor diziam o contrário. Por isso, ele a seguiria nessa jornada. Estaria ao lado dela, observando, protegendo. E quando tudo estivesse resolvido, quando ela estivesse segura, talvez ao lado de Mateo ou em outro destino qualquer, ele finalmente se aposentaria. Anunciaria formalmente sua saída da máfia e deixaria Marcos e Hellen tomarem as rédeas. Mas até lá, ele ainda era o “Peste n***a”, e estava pronto para derramar mais sangue se fosse necessário. Enquanto o jatinho atravessava o Atlântico, cruzando nuvens e cortando o céu, Cross voltou a olhar pela janela, suas mãos cerradas em punhos. Ele se preparava mentalmente para o que estava por vir.
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