Celleney Peny.
Caminhar do quarto até a sala de jantar, foi um sacrilégio.
Vontade de estar a ter um pesadelo, e acordar na minha casa, com o meu avô vivíssimo da silva, com roupas confortáveis, com pessoas menos preconceituosas, mais respeitosas, e sem medo de que alguma coisa mais grave aconteça comigo.
Como sei lá, ser apedrejada, ou escravizada, até mesmo queimada.
- Pode entrar, senhorita. - a dama de companhia da Cora diz assim que nos aproximamos da porta e eu a encaro.
- E você? - eu questiono-a e ela ruboriza subtilmente.
- Eu retornarei aos meus afazeres, senhorita. - ela diz e eu assinto.
Pela forma como ela estava-me apressando, com certeza tem mais o que fazer.
Eu me limito em assentir, ela se vai e eu suspiro fundo, para me manter educada.
Pensar no que posso fazer para safar a minha pele, ter alguém que me ajude com isso.
Mas eles não têm nem relógios de pulso, o que vão saber de viagem no tempo?
E outra ainda tem aquele filho da mãe do Virgil, eu não vou dormir novamente sem ter dado ao menos um banho de consciência naquele i****a ou eu não me chamo Celleney.
Eu adentro escutando a Cora falando de mim, me defendendo aparentemente, e é quando eu entro.
Acho que a mãe do Virgil está aqui.
Assim que entro, todos os nossos olhares cruzam-se.
Mas o poder e a exuberância da mulher de uns quarenta e poucos para cinquenta anos, me chama atenção.
Ela é extremamente bonita, tem olhos extremamente azuis, e cabelos pretos.
Sendo ela irmã da mãe, do Henrik, do Charles, da Lyra e da Cora, suponho eu que a rainha, mãe delas também tivesse cabelos pretos.
Tal como a Cora e o Charles.
O Virgil tem olhos azuis, porém, meio esverdeados.
Suponho que ele seja ruivo, por conta do seu pai.
O surreal, é a beleza de todos eles. Parece que eu estou literalmente vivendo numa série de conto de fadas aonde a realeza é simplesmente perfeita, ao menos fisicamente.
O olhar da senhora, me analisa minuciosamente, de cima a baixo, e eu deixo.
Eu estou habituada à isso, normalmente nas festas e galas organizadas pela minha família e famílias amigas, as pessoas mais idosas principalmente tem a mania de observar as moças de cima a baixo, algumas moças também, mas maioritariamente, são pessoas mais velhas que assim o fazem.
Não digo que gosto, eu detesto, mas eu estou habituada a isso, e se eu estivesse em posição favorável, eu colocaria quem deve no seu lugar.
Mas eu estou aqui de favor.
Jogada para a morte no século passado, eu preciso ser mais agradecida com quem não me deixou no meio da chuva, não?
Que por acaso, é bem mais atraente do que vi ontem, e eu achei que tinha visto o suficiente ontem, talvez, o choque de tudo, não me permitiu assimilar com clareza a beleza surreal desse homem.
O meu olhar retornou rapidamente para a senhora que me observa, antes que o meu simples olhar direcionado a alguém diferente seja deduzido como uma tentativa de sedução.
Enquanto ela me observa, eu também observo a forma linda que ela está vestida, os seus cabelos estão volumosos nesse penteado, e a mistura do seu cabelo preto com os cabelos grisalhos é realmente bonito.
Fiquei exausta de ser observada, que resolvi os saudar.
E a saúdo, e recebo um pequeno interrogatório em troca.
De onde eu vim?
Da minha casa, foi o que eu respondi educadamente.
De onde mais eu viria?
Eu m*l estou conseguindo respirar, eu sei que sou uma pequena intrusa aqui, mas podiam fazer um pequeno esforço para me rececionar.
Não?
Neste momento eu estou sentada sendo observada como se eu fosse um projeto falhado de laboratório.
Na verdade, eu sou, mas eles não sabem disso.
- Como descansou, senhorita? - o Henrik questiona-me e eu levo o meu olhar para ele sorrindo.
Senhorita, novamente.
- Bem, muito obrigada. - eu agradeço e ele sorri assentindo.
De repente o ar conseguiu se tornar mais inalcançável.
- Você está tão bela, o seu tom de pele conduziu perfeitamente com a cor do vestido. - a Cora comenta animada.
- Muito obrigada, a roupa é realmente muito bonita. - eu elogio.
É uma assassina disfarçada de tecido.
Céus, que sufoco.
- Não reparei nada demais. - a Lyra comenta fazendo pouco caso e eu suspiro levantando o meu olhar para frente e eu suspiro.
- É muito prazer conhecer a senhora. - eu falo procurando ser mais apreciada por quem mais parece que pode mudar o destino de qualquer pessoa com poucas palavras, tal como o Henrik e ela dá um sorriso, de quem diz "óbvio".
- Claro querida, é sempre um prazer me conhecer. - ora, como ela é humilde. - Quem não gostaria de me conhecer não é verdade? - ela questiona num tom sarcástico e sorrindo como se fosse divertido.
Um ataque passivo agressivo, entendido.
Ela não sabe quem eu sou, mas eu já notei de onde vem todo o sarcasmo do Virgil, que sorri, me observando atentamente.
Vontade de falar todos os insultos que eu não consegui lhe dizer ontem.
- Eu só soube da sua existência hoje, minha senhora. - eu falo cortando o seu sarcasmo e o seu olhar ameaça cortar a minha alma no mesmo instante. - Eu desconhecia a existência de todos vocês até ontem, sendo sincera. - eu acrescento, e vejo o Charles sorrir.
A Cora, ruboriza, o Henrik, observa-me minuciosamente, porém sem expressão decifrável, a Lyra e o Virgil, estão com o mesmo olhar da duquesa.
Eu estou os agraciando com a minha presença futurística e ela aqui achando que eu gostaria de ter vindo para esse fim do mundo para conhecer uma duquesa cujo eu desconhecia a existência até hoje.
Valha-me.
- Porque diria ser um prazer conhecê-la se não soubesse da sua existência, Celleney? - a Lyra questiona-me afrontosa e eu a encaro deixando os talheres no prato que me foi servido novamente para a encarar, calmamente.
- Foi assim que fui educada, você conhece alguém e você diz isso. - eu digo. - Falar isso tende a inflar o ego das pessoas. - eu acrescento, e a Lyra leva o seu olhar até a sua tia, que sorri, mas eu conheço esse sorriso, é de "eu quero enforcar essa garota".
Já recebi e já dei alguns.
- Está a sugerir que eu possuo ego inflável, minha jovem? - ela questiona sorrindo passiva agressiva.
- Claro que não. - eu a respondo no mesmo tom sorrindo, e agora eu vejo um pequeno sorriso no rosto do Henrik. - Realmente é um prazer conhecê-la, a dama de companhia da Cora, falou muito bem da senhora, e é sempre muito curioso puder conhecer uma duquesa. - eu acrescento, voltando a pegar os meus talheres.
No final das contas o único que eu devo satisfação é o Henrik que me trouxe para cá, e estou com tanta raiva só de estar aqui no século passado, que a minha paciência não é suficiente para aturar desrespeito de nenhum deles.
- Curioso, existir alguém que desconhece a realeza pertencente a um país e reino que é potência mundial. - ela diz e eu suspiro.
- Eu detesto história. - eu não acredito que comentei isso em voz alta.
Celleney, se contenha.
- Como? - ela questiona e eu dou apenas um sorrisinho e ela apenas me observa minuciosamente.
- A senhorita Celleney vem de um país democrático, é uma jovem moça estrangeira, provavelmente não deve ter tanto conhecimento sobre os membros de todos os reinos monárquicos. - o Charles diz, eu quero que acreditar que em minha "defesa".
Porque o que ele quis dizer com: 'ela é uma jovem moça estrangeira e provavelmente não deve ter tanto conhecimento', o que isso significa?
Ele não está me chamando de burra indiretamente, pois não?
Acho que não.
Prefiro achar que não.
- Deve ser isso. - a sua tia responde irónica, enquanto ela me observa. - Eu soube que foi encontrada na floresta. - ela está a ir para o ponto curioso.
- Sim. - eu afirmo assentindo positivamente com a cabeça.
- Como o Henrik a encontrou? - ela questiona e eu levo o meu olhar para ele por alguns segundos antes de voltar ao dela.
- Na verdade, o Henrik... - eu sou brutalmente interrompida por ela.
- Vossa alteza real, para você, minha jovem. - ela retifica e eu suspiro fundo.
O nome dele não é Henrik?
Céus.
Eu dou um sorriso para ela, ignorando o sorrisinho de uns e o clima tenso existente nessa mesa.
- A vossa alteza real, seu sobrinho, duquesa. - eu falo e ela sorri sarcasticamente enquanto eu falo. - Estava a passar com a carruagem na estrada em que eu estava caminhando, tentando sair daquela floresta. - eu digo. - Ele não me achou jogada lá. - eu conto.
- E o que fazia numa floresta inabitada? Sozinha? - ela questiona me observando minuciosamente.
- Sabe que eu estou tão curioso quanto a senhora? - o Virgil questiona ironicamente e eu me seguro para não revirar os olhos. - Ontem não ficou muito claro, tem como explicar melhor senhorita, Celleney? - ele questiona e que vontade de dar um soco no meio do rosto desse filho da mãe.
- Ninguém entendeu. - a Lyra acrescenta.
- Eu explicarei o mais detalhadamente que posso para a vossa retrasada percepção. - eu não consigo e digo, e agora o Charles e o Henrik sorriem com a Cora e eu nem dou espaço para mais uma repreensão sarcástica deles.
- Num momento, eu estava na minha casa. - eu falo parando de comer, voltando a deixar os talheres no prato. - Eu regressei de uma festa, porém, ao invés de me arrumar, eu fui estudar numa oficina existente na minha casa. - eu conto, já nem tão preocupada com eles e sim tentando relembrar minuciosamente tudo o que fiz para aparecer aqui ontem.
- Estudar? - a Lyra questiona curiosa com o que falei.
Não me diga que aqui mulheres ainda não estudam?
- Línguas? - a Cora questiona e quem me dera fosse isso.
- Não, o que eu estudava tem a ver com matemática, química, ciência no geral. - eu conto e eu vejo eles trocarem olhares.
- Então tem acesso à educação. - o Henrik afirma, me observando e eu assinto.
- Sim. - eu respondo e ele assente cautelosamente.
Eu não devia dizer isso?
Enfim...
- Depois disso, eu não sei exatamente o que aconteceu, eu simplesmente perdi a consciência. - eu digo.
- Não devia estudar coisas que não a convém, por isso perdeu a consciência. - a Lyra diz e eu suspiro a encarando.
- Uma coisa não tem nada a ver com a outra, devia saber disso. - eu a respondo me controlando para simplesmente não abusar as desigualdades que existem aqui.
Mas cara, o que isso tem a ver na cabeça dela?
Mulheres sempre sofreram esses tipos de desigualdades de homens, mas mulheres não são burras, por que ela pensa desse jeito?
- Provavelmente eu tenha desmaiado por... exaustão. - eu falo inventando.
- Exaustão por conta de uma festa, senhorita Celleney? - o Virgil questiona e eu suspiro frustrada levantando o meu olhar para ele.
- Virgil. - agora o Charles intervém, e eu suspiro.
- Eu estou apenas entender como uma moça pode desmaiar por voltar de uma festa, nos faça entender. - ele diz e, que filho da mãe.
- Eu perdi o meu avô. - eu falo e o sorrisinho dele some gradualmente, como gradualmente o vazio no meu peito aumenta e a vontade de chorar outra vez por aquele senhor ter-me abandonado nesse mundo sozinha, também.
- Ele morreu. - eu repito para que eles entendam. - Eu não sei se isso eu posso fazer-vos entender, mas ele era demasiado importante para mim, tem apenas duas semanas que isso aconteceu e parece que foi hoje e eu simples não consigo pregar o olho desde então. - eu falo, me contendo, sentindo a minha garganta latejar por eu estar a segurar o choro que ameaça a minha postura.
- Eu queria ter morrido no lugar dele, e ao invés disso, não. Eu estou aqui, e não sei como cheguei aqui, não sei como voltar e estou aqui sendo interrogada como se eu fosse uma ladra por desconhecidos. - explodi.
O meu coração está acelerado, eu estou nervosa, eu estou triste, eu estou frustrada e com medo.
E eu não sei o que fazer.
Eu não sei...
Eu estou perdida, completamente perdida.