Celleney Peny.
Eu a encaro desentendida, sentindo o meu coração acelerar mais rápido ainda, olhando para os seus olhos que me olham fixamente confirmando que não é uma brincadeira.
Isso não é uma brincadeira.
Nada disso é uma brincadeira, eu viajei no tempo, eu estou num lugar completamente desconhecido, sem saber como voltar, longe de casa, sem ter para onde fugir ou a quem recorrer.
Eu estou perdida.
Isso não é uma simulação, uma brincadeira de mau gosto e ela está a falar sério, isso está acabando com os meus neurónios.
- Eu não posso participar. - eu falo para ela.
- Não foi um pedido, Celleney. - ela deixa claro.
- Eu não posso participar, senhora. - eu repito. - Eu não tenho tempo para isso, cabeça para isso, e se for pensar, o que acontece se alguém se interessar por mim e eu finalmente conseguir voltar para casa, o que irá fazer? - eu questiono tentando reverter esse pensamento sem sentido dela, mas aparentemente ela está nem aí.
- Não foi para isso que veio para aqui? - ela me questiona séria e sugestiva.
- Eu achei que tivesse deixado claro que não quero e nem preciso de homem nenhum, príncipe, duque, cavaleiro ou camponês, a única coisa que eu quero, é entender o que aconteceu e voltar para a minha casa, a senhora não tem o direito de me obrigar a fazer absolutamente nada que eu não queira, eu estou aqui porque o seu sobrinho assim o quis. - eu me oponho a ela.
- Aqui você não tem escolha. - ela pontua ditadora e eu puxo o ar para o meu pulmão tentando conter o misto de emoções dentro de mim agora.
- Ore, para que não chame a atenção de ninguém, antes de se ir embora, ou que recupere a sua memória antes do baile e se vá. - ela diz e eu simplesmente não estou a conseguir acreditar numa coisa dessas.
- E eu vou relembrar-lá. - ela diz levantando o dedo. - Você é uma simples plebeia aqui nesse reino, que chegou causando caos e eu não irei permitir que seja a causa de uma macha inextinguível numa linhagem soberana e com reputação intacta como a nossa. - ela fala como se eu tivesse vindo para destruir a família dela.
Que mulher... apavorante.
- Enquanto aqui estiver os meus interesses são os seus, você não tem um dizer e tem apenas que obedecer. - ela diz e arrepios tomam o meu corpo, segurando a vontade de chorar, de desespero e de medo.
Tudo o que eu queria era estar na p***a da minha casa.
- Entendido? - ela questiona e eu mordo com força a parte interna da minha bochecha, querendo responder completamente o oposto do que ela quer ouvir, mas eu não posso.
Eu não tenho como desafiar ninguém aqui, eu estou completamente dependente da caridade de um príncipe do século pretérito.
Assinto positivamente na força do ódio a encarando.
- Entendido. - eu respondo e ela sorri, assentindo.
- Ótimo. - ela diz se afastando, e eu fecho os olhos repensando a minha vida.
Quem devia ter tido um ataque cardíaco era eu.
Olha só o que esses velhos de hoje em dia fazem?
Ficava me zangando dia e noite porque eu voltava tarde para casa, exigindo que eu fosse mais responsável, e olha o evento catastrófico que ele causou sendo um velho tão "responsável"?
- Cora, minha querida. - ela fala se dirigindo a Cora que assente. - Explique como tudo funciona para a senhorita Celleney, e a conceda uma dama de companhia que a possa guiar, ao menos... minimamente, até ao baile. - ela fala e o que ela quis dizer com o, "ao menos minimamente"?
Ela está me subestimando?
- Eu estou demasiado ocupada para isso. - ela conclui caminhando pelo salão observando tudo, e eu juro que raramente eu fico com raiva, mas como eles estão me tratando, está me tirando do meu estado ‘zen’.
- Eu farei isso, tia. - a Cora responde e eu suspiro. - Com a vossa licença. - ela diz para a tia que assente sorrindo para ela como se não me tivesse destratado a pouco, e a Cora sorri amena para mim, a única coisa que eu faço é a seguir para fora daqui.
As portas são fechadas atrás de nós assim que saímos e o seu olhar dócil me observa, enquanto eu suspiro fundo.
- Ela é um pouco rígida as vezes, mas ela é uma ótima pessoa, eu garanto para você. - ela diz para mim.
E eu não posso falar m*l da tia dela justamente para ela, né?
Porque é isso que me apetece fazer.
- Eu vou para o meu quarto, Cora. - eu digo-lhe.
- Mas nós temos que… - eu a interrompo.
- Pode ser mais tarde? - eu a questiono e ela expira, me encarando e assentindo positivamente com a cabeça.
- Então, nós começamos depois do almoço. - ela diz e eu simplesmente assinto e saio dali para o meu quarto.
Com um misto de sensações, pensando e emoções que eu nunca senti em toda a minha vida.
Caminho observando o relógio no meu pulso que simplesmente não funciona, desacreditada com o que isso fez e de onde ele conseguiu me meter.
Para terem noção, eu estou tão enfadada nesse misto de pensamentos, que o sussurrar fofoqueiro das moças que passavam ou viam-me pelos corredores não me importaram.
Eu entro e fecho a porta desse quarto atrás de mim.
- AH! - eu grito, mas grito mesmo, que até os passarinhos que estavam na janela de frente para a cama voam, assustados.
Devem ter sentido a minha aflição, coitados.
Caso eu não tenha deixado claro, eu estou aflita.
Lágrimas vertem sobre o meu rosto, a minha cabeça está a doer, estou com um frio de medo na barriga.
Medo de ficar aqui para sempre e nunca mais puder voltar.
Medo do que pode me acontecer aqui, porque tenho certeza nada de bom deve acontecer aqui comigo.
Com uma plebeia, como eles insistem em me chamar, como se eu não tivesse a fortuna que eles têm, também.
Não aqui, claro. No meu tempo.
E do meu avô, não a minha.
Embora, adivinhem?
Ele deixou boa parte da herança no meu nome.
- O que eu faço? - eu me questiono completamente perdida retirando os sapatos, desistindo de me manter encima de deles por mais tempo.
Batem na porta no instante em que fico descalça.
- Espero que não me chamem para mais coisa nenhuma. - eu murmuro limpando o meu rosto, quando abrem a porta revelando uma moça aleatória.
Essa não é uma das damas de companhia da Cora.
- Senhorita. - ela diz fazendo baixando a cabeça como se fizesse uma reverência por breves segundos, e eu reparo as minhas roupas nas suas mãos.
- Oi! - eu respondo dando um sorrisinho para ela, e ela entra.
- A senhorita Cora ordenou que eu trouxesse para cá as roupas com que chegou. - ela diz e eu assinto pegando.
- Obrigada. - eu agradeço-a e ela ruboriza.
- Não quer que eu a guarde? - ela questiona.
- Não é preciso, obrigada. - eu agradeço-a novamente e ela assente.
- Como preferir, com a sua licença. - ela diz e então sai.
E eu só consigo abanar a minha cabeça negativamente, enlouquecida cada vez mais com tudo isso.
Eu estou num palácio, no início do mundo que mais parece fim, com damas de companhia, príncipes e corpetes asfixiantes.
Que loucura!
Eu deixo a minha roupa na cama, e começo a retirar essa roupa do meu corpo.
Depois de uma hora, eu livro-me completamente desses laços amarrados nas minhas costas, do ferro por dentro da enorme saia, que saiu do meu corpo também finalmente.
Eu estou tonelada mais leve.
Visto a minha roupa, bem mais leve, mais fresca, bem mais estilosa que a roupa de qualquer um deles, e me sento no chão, retirando o relógio do meu pulso.
- Você vai ter que funcionar. - eu falo com o relógio, o deixando no chão, como se ele me ouvisse.
Como eu vou mexer nesse relógio sem nenhuma ferramenta?
Até Deus, gostaria de saber.
Tic-Tac.
Tic-Tac.
Tic-Tac.
Esse foi o som que escutei pelas seguintes horas, mas não do relógio que eu queria e sim do relógio de parede que tem aqui, enquanto eu tentava acertar a hora no meu, porque foi assim que tudo aconteceu.
Mas nada.
Eu estou a suar frio, girando essa coroa para frente e para trás, sem obter resultado algum, literalmente deitada no chão, à espera que esse evento h******l se repita, e me leve de volta para casa.
Mas pelos vistos não será tão fácil assim.
Com certeza eu devo ter… sei lá, caído naquele chão lamacento e talvez tenha deslocado alguma coisa por dentro.
Mas o que eu posso fazer sem nenhuma ferramenta? Todo o esquema desse relógio está naquela oficina que eu entrei ao invés de ir para a p***a do meu quarto.
O meu rosto está encharcado, eu estou desesperada, estou literalmente soluçando fazendo esses ponteiros girarem para frente e para trás, o meu coração está acelerado e eu não sei mais o que fazer.
O que eu faço?
Batidas na porta soam, e a contragosto eu levanto-me do chão pegando no relógio com a minha mão direita e com a esquerda limpo o meu rosto que deve estar uma lástima, quando as portas são abertas.
É a Cora e as suas damas de companhia.
- Ce… - a sua animação vai abaixo assim que os seus olhos verdes encaram o meu rosto.
- Meu Deus, está chorando novamente?! - ela exclama vindo na minha direção, se baixando na minha frente, enquanto fecham a porta e um monte de damas de companhia circulam pelo quarto.
- Eu não estou a chorar, Cora. - claro que não, ela aparenta ser uma menina muito ingénua, mas burra não é, Celleney.
Eu limito-me em fechar o relógio no meu pulso novamente.
O seu olhar de pena só consegue me deixar mais irritada, então eu suspiro, me obrigando a mudar de humor.
- Vieram pelo almoço? - eu a questiono, voltando a limpar as minhas lágrimas.
- Sim. - ela responde se levantando. - Nós podíamos voltar mais tarde, mas temos de a preparar para o almoço. - ela diz e eu franzo o cenho, a observando melhor agora
- Você trocou de roupa? - eu questiono a observando.
- Sim, para o almoço. - ela responde e hamn?
- Tem alguma festa? - eu questiono-a e ela olha para a dama de companhia que responde.
- Não, não há senhorita. - ela responde.
- E por que você trocou de roupa, então? - eu questiono, me levantando, indo para a casa de banho, lavar o meu rosto e ela me segue.
- Porque é a hora de almoço. - ela simplesmente responde, enquanto eu carto a água do balde com a caneca e vou até a pia para lavar o meu rosto.
Tem uma torneira aqui, mas não sei se funciona, se tem baldes aqui.
- Então vocês simplesmente mudam de roupa para cada refeição que tem? - eu questiono tentando esconder a minha inconformação.
- Basicamente, sim. - ela respondo, e eu suspiro. - Porquê? No seu reino não é assim? - ela me questiona, e eu vou até ela saindo do banheiro.
- Dependendo do evento, talvez. Mas não para um simples almoço, ou pequeno-almoço, para ficar em casa. - eu respondo-a vendo as damas de companhia concentradas no closet.
- Quê? - eu as questiono e todas elas ruborizam ainda mais me encarando.
- A sua roupa. - a Cora comenta baixinho do meu lado.
Ah, vá.
- Aquela estava me sufocando. - eu respondo. - E vocês assistem pessoas tomando banho, nuas, porque estão assim? - eu as questiono entrando no closet.
- É que as suas roupas são… diferentes. - a Cora fala e eu me limito em apenas assentir com as sobrancelhas, mental e emocionalmente esgotada.
- Presumo que eu tenho que me mudar agora. - eu falo e elas assentem.
- Exato. - a Cora diz sorrindo. - Essa cor ficará linda em você. - ela fala observando o vestido que irá me sufocar pelas próximas horas com o meu desespero.
Socorro!
- Não irei trocar de penteado. - eu digo assim que uma delas toca no meu cabelo. - Minha cabeça está a doer. - eu falo e elas assentem, e passo o resto do tempo sendo vestida, apertada, amassada, embrulhada como uma boneca por elas.
Eu só quero ir embora, eu só quero que tudo isso seja um pesadelo e eu acorde na minha casa.
É só o que eu quero.