– A Doutora Nora já está te aguardando no consultório dela – papai diz abrindo a porta do carro para que eu entre.
Do outro lado da rua, João acena para mim com um sorriso no rosto.
– Quem é o garoto? – meu pai arqueia as sobrancelhas desconfiado.
– Um amigo, – entro no carro – Se chama João, ele é brasileiro.
– Então não foi um primeiro dia de aula tão r**m – ele da os ombros – Fico feliz por isso.
– Eu diria que sim, se não tivesse conhecido Styles – penso alto.
– Quem é esse?
– Esquece – digo e o silêncio predomina no carro até chegarmos em casa.
Abro a porta de entrada encontro mamãe na cozinha fazendo o almoço.
– Como foi a aula na nova faculdade? – ela pergunta secando as mãos no pano de prato enquanto caminha em minha direção.
– Foi bom – digo e no mesmo instante me lembro de Styles me prensando no armário.
– Sua consulta é hoje – mamãe relembra.
– É eu não esqueci – pego uma pera da fruteira e dou uma mordida enquanto caminho para a sala.
– Então almoce para ir.
– Vou tomar um banho primeiro e depois venho devorar as panelas – Subo as escadas correndo e assim que chego ao meu quarto jogo meu casaco em cima da cama e me direciono para o banheiro.
Assim que termino o banho, visto a calça jeans , uma blusa qualquer e a jaqueta de couro vinho. Solto o cabelo, passo um batom nude e visto meu par de tênis.
– Será que eu poderia ir sozinha hoje? – pergunto enquanto meu pai lê o jornal.
– Temos um carro, eu posso muito bem te levar – ele diz concentrado na matéria de Esportes.
– Não faz nenhum sentido você ir sozinha Clhöe – mamãe complementa – Até porque você não conhece Brighton direito, nem as pessoas – reviro os olhos dando uma garfada na comida.
– É impossível eu me perder aqui em Brighton – resmungo – Como você quer que eu conheça novas pessoas? – ela me repreende por eu estar falando de boca cheia e mais uma vez eu reviro os olhos.
– Filha, eu só quero te proteger – ela retruca – Vai saber o que você pode encontrar pela rua?
Desde que fui diagnosticada com Onomatofobia, meus pais me veem como uma garota fraca, querem me deixar trancada dentro de casa, tem medo que eu saia na rua sozinha, acham que não sou mais capaz de enfrentar o mundo como fazia antes. E a única coisa que posso fazer é aceitar os fatos. Aceitar que fiquei doente, e que agora, não suporto ouvir uma palavra insignificante que destrói á quem a escuta – Ou pelo menos destrói a mim – Tenho que aceitar que sou uma jovem que tem medo do mundo, aceitar que sou indefesa, que sou frágil aceitar que sou diferente.
Eu deveria ficar feliz por ter vindo para Brighton. Um lugar novo para recomeçar. E eu odeio ter que me lembrar disso, das cicatrizes que me fizeram vir para cá, eu odeio ter que assumir que aquilo me fez fugir como uma verdadeira covarde, odeio ter que tentar esquecer disso, mesmo sabendo que nunca vou conseguir esquecer. E mesmo que eu esqueça, a onomatofobia vai sempre estar aqui para me fazer lembrar.
Sei que querem o meu bem. Mas uma hora eu terei que enfrentar isso, agora ou depois.
O vento gelado entra pelo vidro da porta do carro, assim que papai dá partida. Fecho o vidro e permanecemos em silêncio.
– Gosto daqui – papai quebra o silêncio entusiasmado – E o que você está achando? – ele puxa assunto.
– É cedo demais para dizer – digo observando a paisagem.
Brighton é uma cidadezinha um tanto pequena. As vezes me parece simpática e um verdadeiro cenário de filme dos anos 80. Construções antigas, e todas as ruas ligam á praça principal aonde de noite, a maioria das pessoas vão para lá ver os músicos tocarem Blues, iluminados pelas luzes amareladas dos postes antigos.
E as vezes, me parece um cenário de filme de terror. Aonde á noite, iluminadas pela luz da lua, as construções parecem mais com um cenário de filme de lobisomem. Aonde a praça é o lugar mais movimentado, e as ruas são desertas demais para sair sozinho por ai, como se houvesse uma fera a solta e as pessoas se escondessem dela em suas casas.
E talvez seja cedo demais para tirar qualquer uma das duas conclusões. Talvez, seja apenas uma cidade de pessoas ocupadas demais para sair nas ruas. Talvez, fosse essa a idéia dos meus pais, desde o princípio. Me esconder depois de tudo o que houve comigo. Me trazer para um lugar tão deserto a ponto de me deixar segura. Me trazer para um lugar tão longe, a ponto de eu nunca mais poder voltar para lá.
– Clhöe, você vai arrumar amigos aqui também – meu pai sorri me despertando de meus pensamentos – É só uma questão de tempo até eles se acostumarem com você.
– Falando assim parece até que sou uma aberração – penso alto.
– Você entende o que quero dizer, eu só estou falando que é bom ter uma pessoa como você por perto, assim as pessoas até param de dizer essas palavras que na verdade nem deveria ser ditas – ele fala cheio de convicção.
– Você sabe que não é tão fácil assim. – digo bloqueando o celular e guardando o mesmo na bolso da blusa.
Saio do carro, me desejando Boa sorte subo as estreitas escadas e batendo em uma o porta com o número 20 pendurado na mesma.
– Oh entre – é uma voz feminina um tanto desgastada.
Abro a porta lentamente e uma senhora, aparenta ter 40 anos. Usa óculos e estava sentada por trás de uma mesa.
– Sente-se querida – ela me olha por cima das lentes do óculos azul marinho – Como você está? – ela diz enquanto preenche uma ficha com meu nome em negrito no alto da folha.
– Bem.
– Primeiro dia de aula na nova faculdade? – ela se inclina para mim.
– Sim.
– E como foi? Fez amigos? – ela retira o óculos que ficam pendurado no pescoço por uma cordinha presa no mesmo.
– Alguns.
– Já deve ter muitos pretendentes lá, você é muito bonita.
– Obrigada Doutora.
– Você é sempre quis cursar psicologia?
– Sim, e depois do que aconteceu comigo, só fez com que eu quisesse saber mais sobre essas patologias.
– Muito bem, – ela assente – Vamos ao que interessa. Por que você não gosta destas palavrinhas?
– São cruéis.
– Você tem tido crises fortes? – ela diz como se isso fosse fácil.
– Sim, desde que começou. E, não estou tendo melhoras.
– Está tomando os remédios?
– Dois por dia – olho ao meu redor inquieta.
– Vem comigo – ela se levanta e sai andando fundo a sala – sente-se.
Me sento em uma cadeira muito confortável, e ela senta na minha frente.
– O que aconteceu antes do seu diagnóstico ser esse? – ela põe novamente os óculos e espera minha resposta – Foi a poucos meses certo? – assinto.
Uma lágrima escorre pelo meu rosto e eu a limpo rapidamente.
– Foi tudo de repente – comento.
– O que você sentiu na primeira vez?
– Eu estava transtornada. E... eu gritei e pedi para parar, mas a minha mente gritava aquelas palavras, como um eco, – a minha visão fica embaçada e eu pisco fazendo com que um lágrima role pelo meu rosto – É h******l quando acontece – cubro o rosto com as mãos.
– Hey garota, – ela se aproxima de mim – Não chore, você vai se recuperar...
– Não doutora, isso nunca vai acabar, nunca vou conseguir – agora pequenos choramingos se tornam soluços – A dois meses atrás, eu usava elas e não sabia o quanto eram cruéis para quem as escutava, e agora, olhe o meu estado.
– Clhöe, você é forte – ela limpa minhas lágrimas e me entrega um copo de água – Quando você menos esperar... Tcharam! ... Você estará ouvindo todas essas palavras e nem vai se importar – ela tenta me animar.
– Por que comigo? Por que estão causando esse efeito destruidor em mim. Agora?
– Clhöe, são só Palavras.
Só agora percebo que desabei na frente de uma desconhecida e ai impo as lágrimas e me recomponho.
Há quanto tempo estavam guardadas essas lágrimas? Há quanto tempo eu terei que segurá-las novamente?
– Eu acho melhor pararmos por aqui Doutora Nora – me levanto da cadeira, pego minha bolsa e saio correndo escada a baixo, indo ao encontro de meu pai que me aguarda.