Isso estava mesmo acontecendo? Eu não podia acreditar! Eu nem mesmo sabia se isso era permitido. Quis rir da cara chocada que a atendente fez quando o policial encostou a viatura.
— O que vai ser? - o olhar dele se encontrou com o meu brevemente.
— Pode ser um Whopper, sem tomate, por favor. - murmurei baixinho e ele assentiu passando meu pedido.
— Bebida? - seus olhos voltaram a se encontrar com os meus e eu pedi um guaraná. Minha voz quase não saia. Eu estava chocada. Quando na minha vida que eu iria imaginar que isso estaria acontecendo? Nunquinha! Mas ali estava eu, sentada no banco traseiro de uma viatura da Rota, prestes a comer um lanche do Burger King que foi p**o nada mais, nada menos, por um policial. Mais uma vez eu quis rir. — Qual a graça? - seus olhos me avaliaram atentamente e eu engasguei.
Não acredito que de.i uma dessas.
Balancei a cabeça negando e vi pelo espelho sua sobrancelha se arquear.
— É que isso é meio... estranho. - murmurei dando de ombros. — Perdão, senhor. Eu não quero ofender, nem nada. Mas eu cresci em uma favela. Não entrava muito policial lá e os que entravam, definitivamente não nos pagariam um lanche. - expliquei baixinho, me arrependendo logo depois. Seus olhos se cravaram em mim por um longo tempo. — Me desculpe, não quis ofender. Eu... eu só...
— Eu entendo o que quer dizer. - o carro voltou a se movimentar e paramos na próxima cabine, onde ele pegou nossos pedidos. Dois sacos grandes e com um cheiro maravilhoso. — Você disse que cresceu em uma favela? - seu corpo virou brevemente em minha direção e ele me entregou um dos sacos, antes de olhar ali dentro. Assenti, pegando-o de sua mão e abrindo. Tinha dois lanches, batatas fritas e refrigerante. — Vou dirigir devagar. Tente não sujar a viatura. - murmurei um “Okay”, enquanto abria o saco com a embalagem do Burger King. — A rua onde você encontrou o Cabo... Ali não era uma favela. - seu olhar se encontrou com o meu pelo espelho, enquanto ele dirigia devagar e pescava uma batata frita.
— Eu disse que eu cresci em uma favela, não disse que ainda morava lá. - murmurei dando uma mordida em meu lanche e sustentando seu olhar. — Não sou ban.dida, nem devo nada a justiça, se é isso que quer saber. - completei sugando o meu refrigerante pelo canudo.
Suspirei em contentamento quando o gosto de refrigerante inundou minha boca. Era raro as vezes que eu me permitia comer esses tipos de besteiras.
— Então... - sua voz tinha um leve tom de interesse. — Qual a sua história? - nossos olhares se encontraram brevemente, antes dele desviar para prestar atenção.
— Eu não tenho uma. - menti com um pequeno sorriso. — Sou só uma garota normal, com uma vida normal, casa normal... - dei de ombros e falei meu endereço para ele. Freitas me fitou atentamente pelo espelho ao ouvir meu endereço. Percebi que ele não estava acreditando muito nesse papo de normal. Afinal, o bairro onde eu morava era um bairro considerado nobre. — Tenho vinte e cinco anos e moro em São Paulo a três.
— Todos temos uma história. - comentou evitando de passar pelo local onde eu tinha encontrado Cabo Anthony Carvalho. — E não sei porque, mas a sua me parece ser interessante. - embora eu notasse seu tom desconfiado, pude perceber em sua expressão e em seu tom de voz, uma certa ma.licia.
Quis rir ao perceber o flerte implícito. Aquilo estava mesmo acontecendo? Uma olhadela para o policial a minha frente e eu soube que se eu fosse um homem a conversa seria totalmente diferente.
— Quem sabe um dia. - respondi calmamente, enquanto sustentava seu olhar. Eu não iria ter nada com ele, mas isso não me impedia de entrar no seu joguinho por um breve momento. Ele riu com a minha resposta e eu indiquei a rua onde ele deveria entrar. Avistei o portão da minha casa e sai da viatura pegando meus lanches e minha bolsa. Eu não queria chamar atenção. Olhei para cima e encontrei as sirenes da viatura apagada. Parece que eu não era a única que não queria chamar atenção. — Obrigada por me trazer em segurança. E pelo lanche.
Seus olhos me avaliaram por alguns minutos, antes dele balançar a cabeça.
— Tem certeza de que está bem? Eu posso entrar e ficar até você dormir. - segurei a risada com seu tom descarado. Aquilo estava divertido e por um momento fiquei tentada a aceitar. Definitivamente eu precisava esquecer todo aquele sangue... — Podemos tomar um banho. - ele riu apontando para minhas roupas e eu rolei os olhos, mas ri baixinho.
— Quem sabe um outro dia. - respondi e vi ele dar um aceno de cabeça, confirmando. Ambos sabíamos que não rolaria um outro dia. — Tchau, policial Freitas.
— Tchau. - ele murmurou e deu partida na viatura. Fiquei parada, observando-o desaparecer ao virar a avenida e suspirei sacando as chaves da casa.
Aquele dia ficaria para a história, com toda a certeza.
[...]
Aquela sexta feira estava um tédio só. Nem mesmo o trabalho me animava, prova disso era o notebook desligado. Eu estava de banho tomado e de lin.gerie, estava pronta para o trabalho, como sempre, mas eu não tinha animo nenhum. Essa era a verdade.
Um mês tinha se passado, desde o dia em que encontrei o policial baleado no chão. Minha curiosidade me fez vasculhar as redes sociais, até que eu o encontrei. Anthony Carvalho. Policial Militar da Rota.
Uma pena seu perfil do f*******: ser fechado, pois assim eu não conseguia ver suas fotos. Somente a de perfil estava disponível. E que foto...
Quando eu o encontrei pela primeira vez devido ao pânico que eu sentia no momento, não consegui reparar em como ele era bonito... e alto. Mas agora, eu não estava tomada pelo terror da possibilidade de ser baleada e podia reparar em seu corpo.
Eu já tinha babado em sua foto de perfil diversas vezes, mas a minha perdição foi continuar vasculhando suas redes sociais, até encontrar um vídeo postado na linha do tempo de sua mãe.
Anthony estava encostado em uma arvore. Seu corpo estava levemente curvado para frente, enquanto acariciava a cabeça de um pastor alemão. Um belo sorriso desenhava seu rosto. Provavelmente ele não tinha visto que a pessoa estava gravando, pois aquele sorriso não era um sorriso forçado, que damos quando queremos tirar uma foto. Era um lindo sorriso verdadeiro. Era como se passar a mãos naquele cachorro fosse a coisa mais importante do seu dia.
— Como está garotão? Estava com saudades de mim? - sua voz ecoava pelo vídeo e um sorriso ainda maior desenhava seu rosto. O cachorro pulava e balançava o r**o, enquanto esfregava sua cabeça na mão de Anthony. — Eu também estava com saudades de você, garoto. Você quer brincar, é? - o cachorro agora rolava no chão, enquanto tinha as mãos de seu dono lhe fazendo carinho na barriga. A voz de Anthony ficou mais rouca, enquanto ele murmurava as palavras “Bom garoto” e acariciava o pelo do cachorro. Não consegui evitar de pensar em como gostaria de escutar sua voz rouca falando coisas para mim. — Está bem! Vamos ver se ainda é rápido. - Anthony de repente ficou totalmente em pé e tirou sua blusa cinza pela cabeça, me dando a visão que ficaria eternamente gravada em minha mente.
Ele era um cara alto e musculoso. Seu peito era malhado e sua pele bronzeada tinha um ótimo contraste com a tatuagem que ele tinha em seu corpo. Era algum tipo de tribal, pintado em preto, que pegava todo o lado direito de seu corpo. Começava abaixo de seu pescoço e seguia descendo por ombros, peito, braço, uma parte da barriga e terminava em seu quadril, adentrando um pouco por dentro da calça que ele usava. Pu.ta que pa.riu!
Naquele momento desliguei o vídeo, pois Anthony se afastava correndo, enquanto o cachorro ia atrás dele. O vídeo continuou de longe, obviamente, mas eu preferi desligar. Nunca mais stalkeei as redes sociais de Anthony Carvalho. Precisava me manter longe, pelo bem da minha sanidade.
Meu celular tocou alto me fazendo tomar um susto e me tirando do torpor que eu estava ao pensar no Cabo Anthony.
— O que está fazendo? - a voz inconfundível de Jonas ecoou do outro lado da linha, assim que eu atendi.
— Olá para você também. - ironizei rolando os olhos e me jogando na cama. — Não estou fazendo nada no momento. Talvez eu vá assistir um filme, por que? - o ouvir bufar do outro lado da linha e falar com alguém. — Marcos está aí? - perguntei com um sorrisinho sacana no canto da boca.
— Está. - sua voz saiu contrariada e eu ri. — Cala a boca.
— Não sei porque não admitem logo. Vocês dois estão em um relaciona...
— Não estamos nada! Às vezes tran.samos. Só isso. - rolei os olhos ao escutar sua voz. — Isso não quer dizer que estamos em um relacionamento.
— Sei, sei...
— Nós três tran.samos também. Estamos em um relacionamento? - sua voz sarcástica ecoou do outro lado da linha e eu dei risada. — Pois é.
Éramos amigos a alguns anos já. Jonas e eu nos conhecemos desde sempre. Praticamente crescemos juntos e eu não pude deixar de apresentar esse meio de ganhar dinheiro para ele quando voltei da minha viagem dos EUA. Ainda mais ao ver o sufoco que ele estava passando em sua casa com a pandemia.
Meu negócio ainda era um segredo enquanto eu morava fora do país. Nem família, nem amigos sabiam. Mas ao voltar para o Brasil aos vinte e dois anos, e começar a ajudar meus pais, não consegui esconder por muito tempo. Eles começaram a querer saber de onde vinha tanto dinheiro para lhes comprar casa, carro, e abrir um negócio. Então eu tive que contar.
Imaginei que viria julgamentos, mas estava completamente errada. Meu pai pareceu não entender muito bem. Acho que parte disso era minha culpa, pois enfeitei a explicação o máximo que consegui, e no final ele acreditava que eu fazia vídeo em uma plataforma como o YouTube. Não tentei mudar sua opinião, só balancei a cabeça e deixei que ele continuasse a acreditar nisso.
Minha mãe já era mais esperta e entendeu perfeitamente o que eu estava dizendo. Depois de me obrigar a mostrar o meu site para ela e explicar detalhadamente como funcionava, ela estava com uma expressão chocada, mas engoliu em seco e se contentou somente em me alertar sobre os perigos da exposição. Lhe garanti que sabia de cada um deles.
Meus pais eram separados, cada um vivia sua vida como queria, e eu lhes lembrei que eu era uma mulher adulta, com minha própria casa e minha própria vida. Isso foi o suficiente para acabar com qualquer tipo de pergunta curiosa quanto ao meu trabalho.
Jonas já era um tópico diferente. Ele era meu amigo, melhor amigo, na verdade e apesar de eu não ter lhe contato desde o início, quando eu comecei com isso, eu sabia que ele nunca me julgaria. E dito e feito.
Quando a pandemia estourou no mundo todo, eu já estava no Brasil, mais precisamente em São Paulo e ainda não tínhamos nos visto. Ele estava atarefado com seu trabalho, que de repente perdeu, e com sua mãe idosa para cuidar. Infelizmente ela morreu ainda aquele ano, quando a doença ainda era um completo mistério para todos.
Eu já estava com minha casa estabelecida em São Paulo e ele morava em um bairro pequeno de Santos, uma cidade litorânea de São Paulo e ao perder sua mãe, estava sozinho no mundo. Ignorando a todos os avisos e recusa dele, dei um jeito de lhe trazer para minha casa. Foi perigoso? Sim. Não tinha vacina ainda, não tinha nada que nos protegesse da doença, mas eu precisava fazer algo para ajudá-lo.
Depois de vedar com plástico o interior do meu carro, separando os bancos traseiros dos dianteiros, parti para Santos em uma viagem rápida. As estradas estavam cheia de policiais. A ordem era que ninguém entrasse ou saísse pelas pistas de São Paulo, mas depois de explicar, implorar e no final chorar na frente deles, eles me deixaram passar.
Ninguém além de Jonas sabia que eu estava indo, e quando o peguei e chegamos em casa, tomamos um banho extremamente quente, praticamente passamos álcool em gel no corpo todo e depois queimamos nossas roupas na pequena área que tinha na minha casa.
Deixei que Jonas descansasse como eu sabia que a muito tempo ele não fazia e quando ele acordou lhe contei tudo. Oferecendo-lhe um emprego no final. Não foi espanto algum quando ele aceitou sem pensar duas vezes.
E aqui estávamos nós. Três anos depois. Vacinados, vivos e com dinheiro.