Capítulo 14

1410 Words
Miguel Um mês. Quem diria que em tão pouco tempo as coisas começariam a mudar? Eu não tinha parado de dirigir o táxi, mas os dias estavam mais leves. Consegui alguns clientes fixos, pessoas que precisavam de transporte diariamente e, por sorte, ainda davam boas gorjetas. Cada corrida era um avanço, e agora eu conseguia pelo menos garantir que Rafaela e eu não faltássemos nada essencial. Naquela manhã, porém, tudo mudou de novo. Rafaela me esperava na porta, com um sorriso que fazia o sol parecer menos brilhante. Seus olhos brilhavam de uma maneira que eu não via há tempos. Quando cheguei perto, ela segurou minhas mãos e disse, quase sem voz: — Miguel, vamos ser três. Fiquei paralisado. Não consegui dizer uma palavra, porque parecia que o mundo inteiro havia parado de repente. Meus olhos foram da barriga dela para o rosto, como se só então as peças começassem a se encaixar. — Você... — comecei, sem saber como reagir. — Rafaela, está mesmo grávida? Ela apenas assentiu, um sorriso hesitante brotando nos lábios. Eu me vi num redemoinho de pensamentos e emoções, entre o medo do futuro e a alegria intensa que sua notícia me trouxe. As lembranças daquela noite, em que fui impulsivo e pedi demais dela, voltaram com força, e eu senti uma mistura de culpa e felicidade indescritível. Abracei-a forte, quase em silêncio, mas sabia que agora eu tinha uma responsabilidade ainda maior. Meus sonhos de casar e de formar uma família com ela sempre estiveram lá, mas, agora, com a vida dela e da criança dependendo de mim, aquilo me parecia um desafio novo, e bem mais assustador. Foi nesse impulso que, naquela mesma tarde, fui até o centro da cidade e aluguei uma casa simples, mas acolhedora. Um lugar em que pudéssemos construir algo juntos e, mais importante, preparar nosso lar para a chegada do bebê. Mais tarde, no nosso novo lar Arrumei o último móvel e sentei no sofá, finalmente podendo observar Rafaela explorar a casa com um olhar de admiração. Ela já imaginava onde ficaria o berço, como poderia decorar o quarto do bebê, e o entusiasmo dela era contagiante. Mas eu sentia algo mais sombrio em mim, algo que não era apenas a pressão das finanças. Em meio ao silêncio, Rafaela se aproximou, percebendo meu olhar distante. — Miguel, você está bem? Não parece tão feliz quanto imaginei que estaria... — Ela olhou para mim com cuidado, mas com uma preocupação que eu sabia que ela já vinha alimentando. — Eu estou, Rafaela, de verdade... — comecei, tentando sorrir, mas minha voz saiu hesitante. — Só... é muita coisa, entende? Eu quero te dar o melhor, a melhor casa, um futuro seguro... e, às vezes, fico com medo de não conseguir. Ela se ajoelhou à minha frente, segurando meu rosto com as duas mãos, e vi em seus olhos toda a confiança que eu ainda tentava construir em mim. — Miguel, o que me importa é que estamos juntos. Eu escolhi isso. Vamos conseguir, um dia de cada vez. E agora que vamos ter uma família... temos ainda mais força. — Ela disse isso com uma serenidade que me tocou profundamente. Respirei fundo, aliviado e, talvez pela primeira vez em muito tempo, realmente confiante. Eu sabia que seria uma caminhada longa, cheia de desafios, mas enquanto tivesse Rafaela ao meu lado, nada parecia impossível. Naquela mesma noite, antes que o sono nos alcançasse, puxei-a para mais perto e sussurrei, com a certeza que só ela poderia me dar: — Rafaela, você aceita casar comigo? Dessa vez... logo? Ela sorriu, me abraçando ainda mais forte, e eu senti o mundo pesar um pouco menos. Era ela, o bebê, e eu contra o mundo. ***** Eu me despedi de Rafaela com um beijo rápido, tentando mascarar a ansiedade que já começava a corroer minha paz. Tentei passar segurança, colocando a chave da nossa nova casa em suas mãos. Seu sorriso inocente era como um anjo me abençoando. Quase me arrependi de sair dali, mas sabia que precisava organizar tudo antes do casamento. Tudo parecia finalmente entrar nos eixos. Depois de deixá-la na casa do pai, segui de volta para meu pequeno apartamento, ainda com a mente fixada na ideia de começar uma vida nova ao lado dela e do bebê. m*l entrei, fechando a porta atrás de mim, e senti o peso da realidade retornando como um soco. Beth estava lá, parada no meio da sala. O cabelo caía sobre seus ombros de uma forma quase desleixada, mas o olhar que me lançou não escondia o veneno. Por um segundo, pensei que fosse uma visão, uma sombra daquele sonho confuso da noite em que tudo tinha escapado do meu controle. Mas não. Ela estava ali, muito real. E com um sorriso amargo que gelou meu sangue. — Finalmente resolveu aparecer, Miguel. — Beth murmurou, com um tom carregado de ironia. — Beth… o que está fazendo aqui? — minha voz saiu tensa. Eu ainda tentava processar como ela entrara no meu apartamento, e por quê. A lembrança daquela noite voltou como um pesadelo m*l explicado, um borrão que eu tinha ignorado desde então. Ela se aproximou, e eu dei um passo para trás, tentando manter alguma distância. Meu coração batia mais rápido enquanto a observava. — Não foi um sonho, Miguel. — Beth declarou, com um meio sorriso, que parecia pesar mais em sarcasmo do que em tristeza. — Eu estive aqui com você. Foi bem real. E tenho algo mais para te mostrar. Ela tirou um envelope da bolsa e me entregou. Era um exame, e bastou um olhar para entender a gravidade da situação. — Isso é algum tipo de brincadeira? — minha voz saiu baixa, incrédula, enquanto a raiva e o horror tomavam conta de mim. — Como pode ser possível? Você… não sei o que esperava de mim, mas isso… isso é loucura. Ela me olhava com lágrimas nos olhos, e eu não senti nem uma ponta de compaixão. — Não sei nem se acredito nisso. Sua “pureza”? Beth, como espera que eu acredite que estava… esperando por mim? Eu nem queria isso! Beth pareceu quebrar ali mesmo. A expressão dela se desmanchou em dor, mas ela segurou o choro, a respiração entrecortada. — Eu estava. Miguel, você era o único… — ela disse, com uma voz tão frágil que quase me fez ceder. Mas o desprezo por tudo que aquilo significava apenas me endureceu ainda mais. — E o bebê? Como posso saber que é meu? — insisti, me odiando pelo cinismo, mas também incapaz de evitar o ataque. Eu sentia minha própria ruína pairando, e precisava atacar de volta. Beth, agora de joelhos, finalmente cedeu ao choro. Ela parecia perder a compostura, humilhada e machucada. — Por que faria isso com você? Por que mentiria? Eu te amo, Miguel, e tudo o que eu queria era te dar uma chance… uma chance de viver como você nunca viveu. — Ela limpou as lágrimas, respirando fundo e recobrando a força antes de prosseguir. — Vou te fazer uma proposta, então. Eu a encarei, ainda tomado por uma mistura de nojo e desconfiança. Mas Beth se ergueu e, com um ar calculado, esboçou um sorriso cheio de uma confiança que eu não compreendia. — Dinheiro, Miguel. Riqueza. Conforto, segurança, tudo que você nunca teve. — Ela inclinou a cabeça, os olhos brilhando como se, por trás daquela expressão de súplica, houvesse uma certa vantagem. Minha raiva foi dominada por outra coisa. Por um instante, tudo o que imaginei sobre a vida com Rafaela foi abafado. A ideia de uma vida onde dinheiro nunca mais fosse problema… parecia tentadora, quase surreal. — Se você aceitar, Miguel, posso te garantir tudo isso — continuou Beth, agora limpa de lágrimas, determinada. — Tudo que você sonha, e mais. Basta que… nos casemos logo. Que sejamos uma família. Você, eu, e nosso filho. Aquelas palavras caíram em mim como um golpe. Não só a oferta era arriscada, mas algo em mim, um desejo ganancioso e amargo, considerava a possibilidade. Vi o brilho nos olhos dela e soube que, de alguma forma, ela se aproveitava da minha fraqueza, da minha miséria. Olhei para Beth, minha mente repleta de pensamentos maliciosos e egoístas. Rafaela, a doce Rafaela, desapareceu por um momento da minha mente, substituída por uma visão de opulência, segurança… e liberdade financeira. Talvez fosse isso o que realmente importava.
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