Lia continuou no chão, a chuva passou e o frio tomou conta do seu corpo, não sabia o que era pior, se o frio intenso ou o homem que morava dentro daquela fortaleza, se sentia entre o precipício e a fera, ele parecia alheio a qualquer regra social, nem mesmo usava uma roupa dentro de casa.
Lia ficou ali, e em algum momento a exaustão a dominou, acordou com passos a rodando, dois rapazes a olhava.
_ Ela é bonita, deve estar fugindo de alguém ou é uma prostitut@.
Lia se obrigou a ficar em pé, se colou a grade, mas os sorrisos que encaravam eram assustadores, a casa as suas costas pareciam encantadora agora, e ela começou a gritar.
Nem sabia de onde tirar forças, mas gritou até que o portão se abriu e ela correu para dentro, os rapazes se olharam decidindo se entrava ou não, mas o portão se fechou com um baque assustador, era automático. E os homens, provavelmente eram fugitivos da polícia, a área era conhecida como reduto de marginais e até mesmo local de desova.
Ela se sentou no chão da área, fazia frio, a pequena bolsa tinha uma coberta e ela a puxou para fora, estava úmida, mas era melhor que nada, o silêncio da casa era constrangedor, a escuridão também, parecia que morcegos moravam naquele local, tamanho breu.
Klaus estava deitado na esteira, nu. Fazia anos que não dormia em uma cama, e nem mesmo usava cobertas, o seu cérebro não processava muito bem o frio, a Síndrome de Riley-Day tinha f0dido esse lado dele também.
Tinha aberto o portão porque a menina encolhida o fez se recordar dos @busos que presenciou nas clínicas psiquiátricas, os meninos sofriam naquele inferno, mas as meninas quase sempre sofriam @busos nas mãos dos enfermeiros e até mesmo dos médicos. Não a queria ali, não era sociável, na verdade qualquer pessoa corria perigo ao seu lado, uma mulher então, nem sabia se ela era mesmo uma mulher, parecia jovem demais para ter a maior idade, mas já havia notado que mulheres daquela etnia permaneciam mais tempo jovens.
O lugar que morava era bonito, uma propriedade com mais de 100 hectares, a casa não tinha muitos móveis, não tinha água quente, porque ele não conseguia regular a temperatura, podia queimar a pele e nem mesmo perceber, não sentia dor, absolutamente nenhuma, só veria o ferimento quanto infecionasse.
A comida era sempre fria, por isso sua alimentação estava baseada em carne assada e legumes cozidos, pedia marmitas a cada quinze dias, guardava no freezer, as tirava na noite anterior, sentia falta de uma comida de verdade, mas essa era a única opção.
Nas clínicas vivia a base macarrão frio, frutas, leite gelado e os seus derivados, não faziam questão que se alimentasse bem.
A última vez que Klaus comeu uma comida real, saborosa e feita na hora foi quando a mãe era viva. A sua mãe cozinhava, o sentava na mesa e deixava a comida na temperatura adequada, nem gelada e nem muito menos quente ao ponto dele se queimar, não podia sentir o quente, mas o sabor era delicioso.
Mas quando a mãe morreu em um acidente a vida ficou pesada demais, tentou acabar junto à mãe algumas vezes, era uma criança, não sentia dor, então usar uma faca nos próprios pulsos não era ruiim, mas o pai não o deixou morrer. Otto não o amava, mas não o deixava partir, foi assim que sua vida em manicômios se iniciou, quando sua consciência retornou e se tornou um homem, ele colocou um basta naquilo.
O pai ainda tentou mandá-lo de volta, mas Klaus não aguentava mais escutar gritos a noite, lamentos e choros, quando ele próprio não podia chorar, a síndrome não o deixava produzir lágrimas, era uma aberr@ção da natureza.
Dormiu na mesma esteira
Quando acordou, passou pelo banheiro e tomou um banho gelado, comeu uma fruta e tomou um copo de leite, sentia vontade de comer um ovo frito, mas podia queimar um dedo todo e não sentir. Provavelmente era a pessoa com a síndrome mais velha que já existiu, os outros morriam cedo, devido aos ferimentos, quem não sente dor, não aprende a se preservar, a evitar o fogo, a ter cuidado com uma faca, a deslizar o barbeador adequadamente, é a dor que ensina. A dor física e da alma era a melhor professora.
Enquanto comia a fruta se lembrou da mulher lá fora.
A queria longe dali.
Ao sair a encontrou encolhida, percebeu que ela não dormia, mas sim beirava a inconsciência, não sabia o que fazer, nunca tinha cuidado de alguém, mas incrivelmente sentiu vontade de cuidar dela, as pontas do dedo feminino estavam quase roxas de frio.
Se a colocasse embaixo do chuveiro frio, seria piior, se mudasse a água para quente corria risco de queimá-la. O pai sempre lhe causava problemas, sempre lhe impondo o que não queria. Por um momento sentiu vontade de deixá-la ali e depois mandar a foto do corpo para o pai, mas não conseguiu, a trouxe para a sua esteira, pegou as cobertas que tinha e a embrulhou. Colocou um copo de leite no micro-ondas, um minuto seria o suficiente para aquecer sem ficar extremamente quente. Depois a obrigou a abrir a boca e beber, ficou impressionado com a pressão do corpo dela no seu.
_ Estou com fome.
A voz era quase um sussurro.
_ Quer uma banana?
Balançou a cabeça que sim.
Klaus parou no meio do caminho, não serviria de babá, havia ficado sem refeições por diversas vezes e nem por isso ganhou algo na boca, não depois da mãe.
Entregou a fruta na mão dela e foi beber água e pingar colírio nos olhos, era a maneira de manter o órgão hidratado já que não produzia lágrimas. Já Lia fez um esforço para comer a fruta, o resto do leite estava no copo e bebeu também. De repente ficou consciente de onde estava e que um homem nu caminhava pela casa, e o medo dela voltou, tremeu não de frio, mas de medo de Klaus.
_ Volte para a sua casa.
_ Não tenho uma.
_ Não me importo, só a quero longe do meu lugar, não é bem-vinda.
_ Se eu não ficar seu pai me manda para cadeia.
_ Sabe o risco que corre no mesmo lugar que eu?
Ela se recusou a responder, sabia do humor inconstante dele, não queria servir de saco de pancadas. Estava perdida onde quer que fosse. O vazio dentro dela era enorme, havia crescido em uma casa alegre, cheia de vida, toda a sua família era evangélica e as pregações a fizeram acreditar que Deus nunca a abandonaria, mas se sentia abandonada nesse exato momento. O vírus levou cada um dos seus, primeiro foi o pai, depois o irmão, e finalmente a mãe, isso estraçalhou o coração e a felicidade de Lia. Orou aos céus para que tivesse o mesmo destino da sua família diversas vezes, mas Deus não a ouviu, não havia mais nada para ela na terra. Só queria dormir para o resto da sua vida.
Fechou os olhos, Klaus podia m@tá-la, seria um gesto misericordioso, era melhor do que aquela sensação de nada.
_ É uma das prostitut@s de Otto?
Ela abriu os olhos.
_ Não sou prostitut@ dele, nem de ninguém.
Mesmo fraca ela respondeu.
Klaus não a queria, ainda mais se ela tivesse se deitado com o pai dele.
Notou que ela ficava incomodada ao olhar para ele nu, mas ele não se incomodava, não conhecia o pudor.
Klaus saiu, costumava caminhar pela propriedade, tinha um jipe e dois cavalos. Uma piscina que ele mesmo limpava.
E não queria uma mulher no santuário s0mbrio dele.