Um bom momento para voltar

1829 Words
Longe daquele fundo de campo, em outras bandas do estado, Vicente Velasquez caminhava vagarosamente pela noite agradavelmente fria de um começo de primavera encarando um céu que parecia estar embaçado, pois m*l se viam as estrelas, não era aquele céu que ele gostava de ver... Haviam sido meses difíceis, desde que retornara para a Capital, para ficar junto de sua mãe, anos antes, ele nem mesmo imaginava que seria por tanto tempo, e agora ele estava ali, literalmente, enterrando a única família que havia lhe restado na vida, a sua velha mãe. Ele sentia uma certa culpa... Por ter saído de casa tão jovem tentando a sorte em lugares tão distantes, por ter convivido com ela tão pouco, mas a verdade, era que quando ele saíra de casa, a mãe estava casada com um homem que ele não conseguia acreditar ser bom para ela, e aquilo o incomodava, e assim um dia, ele pegou carona em um caminhão e foi tentar a sua vida em outros lados, longe daquela pequena casa nos subúrbios da Capital, longe do homem que ele detestava... Quando por fim Vicente, na época com quatorze anos, chegara ao destino, o caminhoneiro indicou-lhe um conhecido, um forasteiro que há pouco tinha se instalado por aqueles lados e que talvez precisasse de um rapaz jovem e com algumas habilidades – disso ele se orgulhava, havia aprendido muitas coisas nos livros durantes as incontáveis horas que ele passava escondido na biblioteca da escola para que os alunos mais velhos o esquecessem por um tempo. E quando deu por si, Vicente chegava em frente à uma propriedade rural estranha no fim do mundo: portões simples de madeira, um grande galpão e uma casinha modesta e pela primeira vez em toda a sua vida, ao encarar a fumaça saindo pela chaminé da casinha de madeira, Vicente sentiu-se em casa, de alguma maneira, com aquela estranha visão, ele sentiu pertencer àquele lugar tão distante e inusitado. Os dias arrastaram-se no início, aos poucos Richard Bones, o forasteiro, ensinou a Vicente muito sobre o campo, sobre as lidas e principalmente, sobre a vida. Era um homem bom, que viera de muito, muito longe, há muito tempo, e que buscara por um lugar para chamar de seu, para construir uma vida junto com a sua esposa Martha e suas filhas Sophie e Lóren, que na época tinham seis e quatro anos. - Oi moço – a mais velha aproximou-se primeiro, logo no fim da primeira semana, enquanto ele fazia os buracos para os palanques de uma nova cerca. - Oi mocinha – ele para o serviço e a encara – tá fazendo o que longe de casa? - Trouxe para você – ela abre a mão e entrega para ele um saquinho de balinhas de gengibre – são as minhas favoritas – ela sorri e sai correndo, não dando tempo ao rapaz de nem mesmo agradecer. Aquela era uma lembrança que constantemente lhe ocorria: os dois olhos azuis grandes e brilhantes de Sophie Bones, encarando-o, como quem questiona tudo o que ele faz ou pensa, como um fantasma que muitas vezes atormenta os seus pensamentos. Vicente fora “aquerenciando-se” como diziam por lá, por aqui, podemos apenas dizer que ele foi ficando, um serviço após o outro, primeiro nas cercas, depois nas mangueiras, depois ficara para ajudar com as obras da casa grande, e com o tempo, já não iria mais embora, com a contratação de um casal de caseiros, ele tornou-se hóspede de Dona Maria e seu Antônio, na casinha de madeira, antiga casa dos patrões, que agora viviam na casa grande. Vicente sentia-se em casa, o casal o tratava como um filho, Richard Bones era, sem dúvida, um dos melhores patrões que se poderia ter, e com cinco anos vivendo com eles na Fazenda, Vicente foi convencido de concluir seus estudos e incentivado a ler, tendo acesso liberado à biblioteca da Casa Grande. Sophie deixara de ser uma criança adoravelmente envergonhada tentando agrada-lo com balinhas de gengibre: ela agora era uma mocinha terrível, teimosa e briguenta, mas doce como no começo. Vicente dividia muito do seu tempo com ela, fazia questão de ensinar à ela tudo o que lhe parecia que poderia um dia lhe ser útil: encilha, montaria, caça, pesca, lançamento de facas. Ele ajudou-a inúmeras vezes com tarefas da escola e a carregou por mais tantas vezes quantas foram necessárias por causa de suas artes: tornozelos torcidos, pernas quebradas, tombos feios das árvores... Aquela noite não deveria ser o momento para lembrar-se daquela garota – ele pensou dando ombros e entrando em um bar qualquer – perdi minha mãe – ele dizia a si mesmo – não preciso pensar na garota que deu às costas à tudo o que dizia amar... - Oi – uma garota de pele morena e cabelos ondulados sorria para ele: ele sabia como as coisas funcionavam naquele tipo de lugar, naquela hora da noite: ele poderia apenas tirar uns trocados do bolso em troca de algumas horas de diversão com a garota inegavelmente atraente em sua frente – está sozinho, bonitão? – - Sim – ele sorri simpático – mas hoje, minha querida, eu vim apenas beber... Logo a garota o deixa e sai atrás de outro alvo solitário disposto à pagar por seus serviços. Vicente quase se sente arrependido quando a vê de costas, se afastando, mas logo lembra que acabara de enterrar sua mãezinha, que Deus tenha piedade de sua alma. - Irmão – o atendente aproxima-se dele, chama-se Pedro. Um homem de estatura mediana, braços fortes e semblante carrancudo, são amigos de longa data, de antes mesmo de Vicente deixar a Capital – sinto muito pela sua mãe, ficamos sabendo agora há pouco tempo... – o homem o abraça. - Obrigada – Vicente retribuiu o abraço – de coração. - Que coisa – o homem suspira e enche um copo de whisky, deslizando-o com destreza pelo balcão até a mão de Vicente enquanto enche seu próprio copo – que Dona Carmen encontre a paz – ele ergue o copo propondo um brinde. - Amém – responde Vicente. - E então – o amigo pergunta – sei que é tudo bem recente, mas você tem planos? - Ah, não – Vicente suspira – ainda não pensei em nada – ele mentia, tinha dias já que uma coisa não lhe saia da cabeça. - Certeza? – o homem agora esfregava o balcão. O bar estava quase vazio, aquele era o momento que ele mais gostava como dono de bar: quando o salão se esvaziava e alguém se sentava em seu balcão para uma conversa interessante. As conversas com Vicente sempre eram interessantes. - Tem um tempo – Vicente pigarreou – logo que a mãe ficou doente, sabe? Que eu pensei na Fazenda – ele deu outro gole no whisky, esvaziando o copo. - Acho que tem um tempo que não falamos disso – Pedro ri e enche novamente os copos. - Eu costumava amar aquele lugar – Vicente diz pensativo. - O lugar? – Pedro o encara rindo – Você não me engana, Vicente... - Os dois – Vicente riu – o lugar e a garota... - Entendo – Pedro começa a lavar copos – porque não tenta entrar em contato? - Não – Vicente responde – não é o tipo de coisa que se faça – ele riu – depois de tanto tempo, telefonar ou mandar uma carta dizendo “Oi, você ainda se lembra de mim?”. - Mas claro que se lembra – Pedro responde irritado – acho que você está apenas tentando se enganar. - Não entendi – Vicente o encara sério. - Chegou aqui de volta tem uns seis, sete anos... Estava desolado, coração partido... Ai foi atrás daquela louca – Pedro referia-se a uma namorada antiga de Vicente – quase foi pra cadeia por causa dela, usou o processo como desculpa para ficar, depois aquele emprego meia boca que conseguiu, a doença da sua mãe... Você nunca gostou desse lugar, acho que só está evitando o que realmente quer. - Claro – Vicente esmurra o balcão – e o que o sabichão aí acha que eu quero? - Voltar para o lugar onde pertence – responde Pedro largando os copos – voltar para a Fazenda e para a garota. - Ela deixou tudo para trás – Vicente grita – como se você não conhecesse a história. - Sim, eu conheço – Pedro deu ombros – mas isso tem sete anos... E se ela voltou? - E se ela simplesmente me esqueceu? – pergunta Vicente. - Você não volta, por que lá no fundo, morre de medo de descobrir a verdade sobre isso – Pedro diz como quem coloca o dedo na ferida alheia – está sendo covarde. - Eu? – Vicente debocha – Eu sou covarde? – ele esmurra novamente o balcão e enfia a mão no bolso, pegando algumas notas amassadas para pagar a bebida – Que se f**a, Pedro, você não sabe de nada. - Sim – Pedro ri alto – eu sei sim, sei muito e só está indo embora irritado porque você sabe que eu tenho razão – ele completa – e também porque sabe que é um bom momento para voltar. Vicente sai do bar furioso: quem ele pensa que é para dizer o que eu quero ou deixo de querer? Por isso era melhor não conversar com ninguém, ao menos assim as pessoas não ficavam tentando supor coisas sobre você. Caminhou lentamente até a casa onde a mãe vivera por anos, por quase toda a sua vida: ainda era possível sentir a presença dela ali, e Vicente carregaria o arrependimento de ter deixado ela tão cedo, para sempre... Ao menos fora um bom filho e estivera ao lado dela quando ela havia precisado, quem sabe isso pesaria a seu favor na hora de acertar as contas com Deus. Ele tinha muitos pecados e ele sabia, então, qualquer coisa que pudesse pender a balança para o outro lado era algo a ser considerado. Deitou-se no sofá da sala onde costumava dormir enquanto estava lá, a casa tinha dois quartos, mas ele preferia a sala do que seu quarto de criança, não tinha boas lembranças do ex padrasto, então, entrar em seu quarto e ficar lá por muito tempo, o fazia lembrar das vezes que ele ficara trancado por horas lá dentro, com fome e com sede, esperando o homem ir dormir para que, ao sair não apanhasse... Quem sabe ele devia vender aquela casa velha, e junto com elas todas as lembranças ruins. Mas para onde ele iria? O que ele faria? Passara o último ano e meio gastando o fim de duas economias para sobreviver ficando em casa ao lado da mãe com a saúde debilitada devido à um câncer super avançado... Ele encarou o vazio do ambiente por um longo tempo até suspirar derrotado: talvez Pedro tivesse um pouco de razão, talvez fosse um bom momento para voltar...
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