.. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. Julho de 2005
Em um desses fundos de campo, nos mais remotos interiores da campanha gaúcha, uma história é contada, perto do fogo, uma mulher fala baixinho com outra, os cabelos das duas são avermelhados e longos, entre elas há um abismo de distância, não são mais crianças, não têm mais os mesmos gostos, m*l conseguem encontrar entre elas alguma semelhança, então, dividem o vinho e algumas lembranças de um tempo que há muito se passou...
A campanha não costuma ser o cenário mais propenso, nem mesmo o mais bonito para uma história de amor dessas que a gente ouve falar, ao menos não dessas que existem nos livros, nos filmes e nas séries que têm por aí, na verdade, é um lugar estranho, meio descampado, poucas árvores, vegetação bem rasteira e grandes planícies, com uma ou outra elevação. Um lugar remoto que às vezes cheira a fumaça, gado e por vezes, cachaça e palheiros. Com um clima extremo, de invernos rigorosos, com ventos constantes e no verão, um calor escaldante com pouca sombra para se esconder.
Nesse cenário não tem nada glamour, vestidos caros e nem mesmo grandes eventos sociais, o interior é feito de gente que não tem muito tempo para essas coisas, mas que é cheio de histórias para contar, e sim, muitas histórias de amor começam e terminam com esse pano de fundo incomum, muitas coisas acontecem nos fundos de campo, nas antigas e nas novas estâncias, em grandes extensões de terras onde as criações de gado pontuam os verdes campos.
Mas desta vez, especificamente, vamos contar a mesma história que a mulher conta ao pé do fogo, vamos falar da história de um lugar ao qual duas pessoas sentiam pertencer, ao lugar que o destino colocou, através de suas artimanhas, duas almas que conseguiam ser inegavelmente opostas e que atraíam-se com um intenso e incomum magnetismo desde o primeiro momento em que cruzaram uma com a outra, independente de aquilo parecer certo ou errado.
- Achei que você nunca fosse voltar – Lóren dava outro gole em sua taça de vinho e esticava os pés para aproxima-los ainda mais do fogo de chão – sempre pensei que seguiria o seu rumo e passaria o resto da vida viajando...
- E eu nunca pensei que você fosse ficar – Sophie riu alto – nunca mesmo, eu sempre pensei que antes mesmo de terminar os estudos, você acabaria fugindo desse lugar.
- Eu gosto do lugar – ela responde – não sinto que seja o lugar onde eu deva passar o resto dos meus dias – ela deu ombros – por isso aluguei o kitnet na cidade.
- Papai deve estar uma fera por isso – Sophie riu, sabia que Richard Bones tinha uma extensa lista de contras quando se trava de “poleiros”, ou seja, apartamentos, e que quanto menores eles eram, maiores eram os incômodos.
- Sim – Lóren comentou – ele não fica lá dentro por mais de dois minutos – ela riu – mas a mamãe está tentando convencer ele a comprar uma cobertura no edifício novo que estão construindo perto da prefeitura.
- Ah – Sophie encarava a irmã incrédula – e ele parece que vai ceder?
- Pode ser que sim... Ele sabe que está ficando velho – Lóren suspira – aquela coisa de saber que um dia ou outro não poderá mais ficar aqui fora em tempo integral, isso deixa ele louco, mas ele sabe que infelizmente, é assim.
- Não imagino ele longe desse lugar – Sophie encara o ambiente ao seu redor – acho que eu não me imagino longe desse lugar também...
- Você pertence à esse lugar – responde Lóren – acho que mais do que qualquer outro de nós, desde sempre.
- E o que eu devo fazer? – pergunta Sophie com os olhos marejados.
- Em relação à que, irmã? – Lóren pergunta.
- Conheci uma pessoa – ela responde – mas ela nunca daria certo aqui.
- E você está disposta a deixar tudo para trás para ficar com ela? – Lóren não parece acreditar.
- Acho que eu estou – Sophie responde dando um longo gole em seu vinho, mas no fundo, ela não fazia a menor ideia se estava disposta ou não.
A Fazenda sempre fora o seu lugar e aquilo ela sabia. As melhores lembranças que ela tinha de sua vida inteira, eram naquele lugar, o cenário mais bonito: os amanheceres gelados, onde a geada branquinha cobria os campos e uma serração acinzentava o horizonte, os dias de chuva, quando se enxergava de longe a chuva de aproximando, com uma linha cinza escura que parecia dividir dois mundos, o pôr do sol nos campos, ora pontuado por nuvens que se tingiam em tons avermelhados, cor de laranja e rosados e ainda, os dias de verão com seus céus tão limpos e azuis sem nenhuma nuvem e as noites escuras pintadas de milhares de estrelas que ela nunca conseguira ver em nenhum outro lugar... Não havia outro lugar onde ela podia apenas apreciar a infinita existência do céu que não fosse aquele.
- Sophie? – Lóren tentou lhe chamar a atenção.
- O que foi? – a irmã questiona.
- Acha que está mesmo disposta? – ela insiste.
- Acho que eu estou – ela responde novamente – acho que estou disposta a tentar, acho que eu tenho tudo, Lóren, pais maravilhosos, uma irmã incrível, um ótimo emprego, excelente apartamento, carro, mas eu quero a minha família, entende?
- Eu até entendo – Lóren dá ombros – mas você ainda é jovem...
- E porque eu deveria esperar? – ela pergunta encarando a irmã.
- Quem sabe se ele é o cara certo? – pergunta Lóren.
- E quem sabe se não é? – Sophie insiste.
- Você sabe quem eu sempre achei que fosse o cara certo – Lóren riu.
- Não fala besteira – Sophie desconversa – nunca tivemos nada, e fazem anos...
- Nem tantos anos – a irmã corrigiu.
- Ele foi embora – Sophie encarou a taça vazia – você sabe, Lo, ele se foi... – ela suspira.
- Sim – a irmã ri – depois de você.
- Não importa – Sophie dá ombros – ele não vai voltar.
Sophie encara o lugar à sua volta, quase pode enxergar o vulto dele sentado à porta, com o seu cachimbo ou com a gaita de boca. Quantas vezes ela sonhara com o som da gaita de boca debaixo da sua janela? Até mesmo depois de anos, depois de estar com o seu casamento praticamente marcado, ela acordava subitamente e pensava ter ouvido uma nota ou outra na gaita ou o conhecido ronco de uma motocicleta vindo lenta pela estrada.
Aquele galpão onde ela e a Lóren estavam, era um dos seus lugares favoritos. Mesmo considerando que o pai construíra salas grandes com lareiras de pedras, Sophie gostava de sentar-se ao lado do fogo de chão, nos cepos de madeira, em meio aos arreios e bagunças normais das lidas do campo, desde quando haviam se mudado para a Fazenda, quando a Casa Grande ainda era só um projeto e ela vivia com o pai, a mãe e a irmã em uma casa de madeira pequena bem ao lado do galpão, a área de lazer, onde sentava-se perto do fogo no fim das tardes, era compartilhada com os peões, e sempre fora assim... Naquela noite, já era tarde quando ela e Lóren decidiram ir para lá, com suas taças de vinho e muitos assuntos para conversar.
Sophie não conseguiu dormir naquela noite, de alguma forma, aceitar o pedido de casamento era, de alguma forma, afastar-se do lugar que ela chamava de lar. O seu quarto ainda era o mesmo de quando ela havia saído de casa, anos antes... As cortinas em tom de rosa, os porta-retratos na parede, até mesmo os pôsteres de algumas de suas bandas favoritas estavam presos às paredes. Ela sentia-se nova demais para casar, mas não queria ser a pessoa que, quando teve a oportunidade de ter a única coisa que lhe faltava, deixou ir embora, e assim, quando o dia amanheceu, Sophie estava totalmente disposta a aceitar o pedido.
Vinte e quatro não é cedo demais para se casar... Ela repetiu para si mesma várias vezes até que aparentemente convenceu-se daquela afirmação. Saíra de casa aos dezessete, se formara aos vinte e um e desde então, construíra uma carreira brilhante em uma companhia de seguros na região central do estado. Não era bem o maior sonho dela, mas estava contente de ter estabilidade na vida e de ter encontrado uma pessoa especial.
Lóren revirou-se na cama por um tempo. Normalmente não conseguia dormir quase nada quando estava na Fazenda, adorava tanto o lugar que queria aproveitar cada segundo dele, porque no outro dia ela deixaria tudo para trás para voltar a sua vida normal da cidade. Aos vinte e um anos, terminava a faculdade à distância e trabalhava em uma confeitaria por meio turno, apenas porque era o que queria fazer com a sua vida quando terminasse o curso de Administração que a irmã a convencera a fazer além do curso de confeitaria.
Não conseguia pensar na irmã casando-se, era algo que parecia que iria contra o curso natural de todas as coisas, Sophie era a alma livre daquela família, imagina-la presa a um relacionamento tão jovem era como pensar em uma borboleta presa em um vidro: em um momento bateria as asas freneticamente, procurando saída, depois, apenas ficaria quietinha em um canto tentando poupar a pouca energia vital que lhe restava e por último, acabaria sufocada... Aquilo fez Lóren sobressaltar-se na cama: Sophie não podia estar certa de sua decisão.
- Bom dia – diz Sophie já vestindo suas tradicionais roupas de trabalho: jeans ajustado, saltos altos, camisa social preta com o emblema da empresa bordado, ela parecia muito adulta, ainda mais com os óculos de grau – sem tempo para café da manhã em família – ela serve uma quantidade de café recém coado em um copo térmico – vou sair agora, que eu chego com folga para começar o expediente...
- Bom dia – Lóren ainda está de pijamas – tem certeza disso?
- Claro – Sophie responde sorrindo – são duas horas de viagem...
- Não – Lóren boceja – não é a viagem, é o casamento.
- Sim – Sophie responde decidida.
- Tudo bem – Lóren guardou para si o seu pensamento da noite anterior, de repente a irmã parecia definitivamente feliz e bem resolvida.
- Vai ficar tudo bem – a mais velha caminhou até Lóren e beijou-lhe a testa – e eu vou precisar da sua ajuda, por que essa coisa de grandes eventos...
- Sim – Lóren a abraçou – é comigo mesmo. Vai com cuidado e me avise assim que chegar.
- Sim senhora – Sophie ironiza – deixa um beijo para a mamãe, do papai me despedi antes que ele descesse para o campo.
Sophie entrou no carro e encarou a estrada de chão por um tempo, andando em marcha lenta, antes de ter coragem de acelerar: ao olhar pelo retrovisor, de alguma forma, parecia que ela estava deixando para trás o lugar ao qual pertencia...