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Se alguém perguntasse, ele diria “um homem velho, cansado e desiludido” e esta era a forma com que o forasteiro Richard Bones se descrevia, sempre que chegava em um novo lugar, sentindo de verdade não pertencer a lugar nenhum. Depois de muitas andanças, se viu disposto a fazer uma última grande viagem, dessa vez com destino certo, bem ao sul do Brasil, Richard vendera os últimos bens da família no norte da Argentina: algumas quadras de campo, algumas máquinas e uma casa velha.
Não fora uma vida fácil. Os pais haviam chegado de navio, da Irlanda, antes mesmo de ser 1900... O pai era um homem rígido, com maneiras grosseiras que nitidamente eram uma herança. A mãe morrera muito, muito jovem, tentando em vão dar à luz a mais uma criança, por resultado, mãe e filhos mortos no parto e assim, era somente ele e o pai no mundo, até o pai casar-se novamente e querer filhos e a nova mulher ser incapaz de gerá-los, por anos.
Quando estava com mais ou menos vinte anos, o pai falecera. Disseram que havia sido desgosto, por ter tentando tanto uma prole grande, com falha, que não resistira, mas Richard sabia bem o que fora: o ópio e a cocaína, o álcool e o imenso número de prostitutas que passaram a frequentar a propriedade quando a nova esposa de seu pai havia simplesmente feito as malas e ido embora.
E exatamente no mesmo dia que enterrara o seu pai, Richard Bones saíra a conhecer o mundo: não pretendia casar-se ou formar família, pretendia apenas viajar e conhecer, aproveitar toda a vida que tinha e cada centavo que o velho louco que era seu pai não havia gasto e por longos anos, fora assim: o homem conhecera tantos lugares quando pudera e perto de seus cinquenta anos, decidira que queria acomodar-se, mas longe daquela cidade e principalmente daquela casa, e então, lembrou-se de ouvir falar em grandes extensões de terras na região da campanha gaúcha, perto das fronteiras, no sul do Brasil.
E pouco mais de trinta dias, ele era um homem com dinheiro no bolso e sem onde cair morto, partiria em uma última longe e incrível jornada, compraria um pequeno lote de terras e se estabeleceria por lá. A viagem foi longa e com muitas paradas, quatro dias depois, ele chegava à um pequeno estabelecimento comercial em uma região praticamente desolada.
- Boa tarde – um homem de porte elegante entrando no estabelecimento, o bolicho, sejamos sinceros, por essas bandas, chamamos bolichos: balcão onde servem bebidas, vendas de itens de primeira necessidade, mantimentos e de tudo mais, um pouco.
- Boa tarde -uma mulher corpulenta, na casa dos trinta anos aparece atrás do balcão: cabelos negros, olhos esverdeados, ela encara o estranho em sua frente – e o senhor?
- Richard Bones – ele estica a mão para cumprimenta-la, mas ela ignora o gesto e continua encarando-o – e de onde vem?
- De longe, muito longe – ele sorri e senta-se em uma cadeira de madeira ao lado do balcão – o que tem para beber? – ele percebe alguns homens o encarando.
- Para forasteiros, nada – a mulher responde grosseiramente.
- Tudo bem – ele dá de ombros – permitam-me apresentar-me – o homem levanta-se da cadeira e se vira para os demais presentes – Richard Bones – ele diz com sotaque espanhol – venho da argentina, meu pai veio da Irlanda, muitos anos atrás, e eu estou buscando um lugar de paz – ele completa – um lugar onde eu possa comprar uma propriedade pequena para tocar minha vida, sem incomodar ninguém.
- Não vendemos à estrangeiros – um homem jovem perto da porta diz – pode dar meia volta.
- Tudo bem – responde o forasteiro – não tenho a intenção de causar confusão – ele diz e começa a caminhar em direção à porta.
- Sente-se comigo – um homem sozinho em uma mesa diz de repente com um sorriso debochado – esses homens que dizem não vender à estrangeiros não tem terra nem mesmo para cavar a própria cova quando Deus os levar.
- Obrigada – diz Bones encarando o desconhecido na mesa – cavalheiros – ele reverencia os homens incomodados com sua presença, antes de tomar assento em frente ao homem na mesa.
- Antônio Ottero – diz o homem num largo sorriso – desculpe os modos dessa gente.
- Sem problemas – responde Bones – estou acostumado – ele estende a mão ao desconhecido – Richard Bones.
- É um prazer Senhor Bones – Ottero encara a desgostosa Rosane, proprietária do estabelecimento – um vinho para mim e para o meu amigo Bones, mulher – ele grita.
- Sim, senhor – ela consente ainda relutante.
Assim começava uma estranha amizade: um homem que tinha pouco mais do aquilo que podia carregar nos bolsos e outro que nem mesmo sabia onde colocar tudo aquilo que tinha. Ottero convidou Bones para conhecer a Estância São Pedro, de sua propriedade e o forasteiro aceitou e por lá passou por uns tempos, até encontrar um pequeno lugar para arrendar nos arredores: tinha a intenção de adquirir vacas de leite, e com os dias se passando, a amizade entre eles cresceu e Ottero prometeu ajudar Bones a encontrar o gado que ele precisava.
- E sua família? – pergunta Ottero em uma noite, á beira do fogo.
- Mortos – responde Bones dando ombros – era meu pai e eu, há muitos anos já... Tem mais de vinte anos que o velho se foi e eu fiquei imbuído na missão de gastar cada vintém que ele acumulou em vida.
- Casou-se? – pergunta Ottero.
- Não tenho boas referências – o estrangeiro riu-se – acho que casamentos não são para mim, deve ser maldição, meu pai tentou por duas vezes, matou uma mulher e espantou a outra coitada...
- Vou me casar – disse-lhe Ottero – desde sempre, isso estava planejado – ele riu – desde antes da pobre moça nascer.
- Casamentos arranjados – o estrangeiro estranhou – pensei que isso já era antiquado.
- Não por estas bandas – responde Ottero e tira uma fotografia em preto e branco amarelada da carteira, uma moça na casa dos dezesseis anos, jovem e inegavelmente linda – enviou-me a fotografia semana passada...
- Então nem se conhecem – riu-se Bones – como pode aceitar?
- Acordos devem ser honrados – responde Ottero – ela perdeu os pais muito jovem, e meu pai havia prometido ao pai dela, em vida, que cuidaria dela, que forma melhor de cuidar?
- Verdade – Bones pensava em sua mãe, morta, sob os cuidados do pai.
- Mas você tem tempo – riu Ottero – ainda tem alguns anos, quem sabe encontre alguém...
- Acho que não tenho mais idade ara isso... – disse Bones.
Os dois ainda conversaram por horas, os assuntos eram os mais variados: lidas de campo à costumes e modismos. Uma amizade verdadeira surgira entre aqueles que há pouco eram totalmente desconhecidos.
Encarando o horizonte estrelado, deitado na rede na varanda da casinha singela da propriedade que arrendara, Richard Bones sentiu-se pertencer a algum lugar pela primeira vez na vida, e por mais estranho que pudesse parecer, esse lugar era a paisagem descampada do pampa gaúcho.