Carros, mais carros e milhões de pessoas apressadas para seguir caminho para o trabalho, sendo verdadeira, nem sei porque pensei que o meio da semana seria ideal para vir aqui, mas a semana académica estava ao rubro em Aveiro e tínhamos cinco dias para aproveitar e rever os caminhos que fiz por anos junto ao Tejo.
O cheiro a maresia encontra um dos meus sentidos mais amados, infelizmente também o do esgoto está aqui presente. Não importa o quanto seja bela a vista e o cheiro salgado, aquele cheirete a fezes e sujidade estraga qualquer visita que aqui se faça. O Paço é o meu local favorito, cheio de vida e história, por este chão já passaram muitas pessoas, bons momentos, maus momentos, brigas, roubos, assassinatos, suicídios, amantes e até mesmo reis a dormir com o medo do palácio ruir mais uma vez.
Sabem aquela sensação de recordar algo, nostalgia de um tempo que não viveram, mas desejam acima de tudo ter o poder para ver, é assim que me sinto cada vez que visito o terreiro do Paço. O sangue português deu muita história, boa ou má estamos nós no presente a aprendê-la e retê-la, ou alguns pelo menos.
— Então, nostalgia? - Sofia estava em êxtase, viaja pouco e como amante de história era um sonho vir ao Terreiro do Paço.
— Algo assim, vamos ver a pessoa que te falei após comer algo. - Uma das pastelarias mais caras do Paço, mas um sítio que está no meu coração. Uma nata, café e brioche com manteiga. Depois de anos o meu pequeno-almoço era uma cópia do da minha avó.
Sofia tinha escolhido uma nata e um compal manga laranja. Olhava o movimento das pessoas na cidade grande, o som dos pedidos de bicas e finos, o coração de um país num simples espaço velho. Nenhuma figura preta e amarela, o homem de coco continuava a aterrar as minhas noites, porém começava a pensar que eu era o seu horror. A minha rejeição em aparecer mantinha-se, ele ficava cada dia pior com a situação, o que levava a pensar que talvez fosse hora de falar, nem que fosse por 5 minutos. As suas ameaças eram mais firmes. Relembro a noite passada.
Se continuar assim, vou ter de buscar alguém, minha gota de orvalho, não vais querer ser a culpada de outra morte.
Arrepiei-me do nada. Sofia olhava a passagem dos cidadãos, o ciclo que nunca terminava em Lisboa, a vida de uma bomba que nunca para.
— Quem é a nossa fonte de informação? - Desvia a atenção da praça.
— A minha primeira explicadora, ela era muito próxima da minha avó, ensinava-me matemática e ciências naturais.
— Ela dava explicações a tua amiga?
— Sim, ela tinha uma vez por semana eu duas. - Memórias doem mais aqui que em Aveiro.
O meu inconsciente realmente fez-me fugir desta cidade.
Bebo o resto do meu café, deixo o dinheiro sob o prato de cheque e a gorjeta normal de 5 euros da minha avó. Seguimos caminho até a casa da pessoa o qual penso que tenha avistado algo de diferente naquela altura.
— Como é bom ver-te Clara! - Fui recebida da forma mais calorosa possível.
— Senti a sua falta professora. - Retribuo o beijo na bochecha.
Antes de entrar dei uma rápida explicação a Sofia depois de ela me perguntar porque seria difícil retirar informações dela.
-Ouve, a Sra. Arturo é boa pessoa, mas ela deu sempre explicações em casa por ser muito neurótica, vais notar isso m*l entramos e ela pedir para retirar os sapatos e calçar umas proteções de plástico para os pés. Sujidade não é com ela e desde nova que tem medo de desconhecidos, coloca o olho a tudo. De acordo com ela, a melhor invenção foi às entregas a casa. Ela não saí, todos os alunos eram por contactos com amigos do seu tempo de escola. Sei que ainda dá explicações depois da reforma há um ano, mas é apenas a quem quer e por nada deste mundo espilres, se tiveres essa necessidade segue direta a casa de banho.
Sofia ficou com a boca um bocado aberta, mas rapidamente encolheu os ombros. Por parte de ela própria ter as suas próprias mesquinhices, como qualquer pessoa.
— Então, em que te posso ajudar, explicação para esta jovem?! - Olha Sofia de forma avaliadora. - Como te trato?
— Sofia, prazer em conhecê-la. - Ia dar-lhe um passo bem, mas parou no último minuto e apenas sorrio. Graças a deus que ela entendeu as minhas palavras, por muito superficiais que foram.
Esqueci de falar do contacto pessoal com estranhos! Suspiro baixo
— Na verdade, queria perguntar-lhe sobre outra coisa, Adeline, lembra-se dela?
A minha professora deixa de sorrir.
— Sim lembro, pobre alma, pelo menos os pais tiveram um final de história.
— Como assim?! - Fico confusa. - Ela nunca foi encontrada, o caso foi aberto novamente?
— Sofia, não te contaram? - Agora ela parece confusa. - Querida ela foi encontrada por deixado do aqueduto em…, nota de suicídio, o corpo estava já em... - Para de falar ao ver a minha cara. - Ela deixou-te uma carta, a polícia disse que ia enviar uma cópia, o original está como prova infelizmente.
— Clara. - Sofia toca no meu braço leve.
— Quando foi isso?
— Por volta de setembro, dois anos de fuga e depois aquilo… - Suspira alto.
Impossível, ela nunca faria algo assim.
— As peças batem. - Sofia fala baixo.
— Eu mudei mais cedo, e em setembro deixei a casa. - Lágrimas mancham a minha cara.
— Querida, sei que estás triste, mas pelo menos ela está em paz.
—Sra.Arturo. - Seco as lágrimas. - Quando vínhamos ter explicação, sempre nos esperava na porta, viu algo estranho quando chegávamos?
— Estranho? - Parecia surpresa.
— Alguém que marcava presença sempre! - Sofia fala com convicção. - Alguém que tivesse um mau pressentimento? Sabe como nós mulheres somos, o nosso sexto sentido.
— Entendo perfeitamente, ora bem, nunca dei conta de ninguém…
Não conseguimos nada, mas tenho uma carta de Adeline, teria de falar com os pais dela, eles devem ter contactado o fixo da casa da minha avó.
— Foi um prazer ter a vossa companhia, mas porque a pergunta do estranho?
Já estávamos de saída, calçamos os sapatos na entrada.
— Não acha estranho ela fugir do nada? - Pergunto com firmeza.
— Sim foi, ainda para mais com a vida boa da família. - Vejo os olhos subirem como se tentasse puxar pela cabeça.
Abrimos a porta da frente e começamos a descer a escadaria.
— Clara!
— Sim, Sra. Arturo. - Sorriu
— Não te metas em problemas, e não vás à tua vizinha, aquele filho dela é estranho está bem.
Fecha a porta m*l fala, ouvesse o som das trancas.
— Filho da tua vizinha? - Sofia é mais rápida que eu no raciocínio.
— A minha vizinha tinha um, sim, mas eu raramente o via. Na verdade, não tenho sequer ideia da cara dele, não me lembro da última vez que…
— Clara foca. - Sofia estala os dedos na frente dos meus olhos. — Que idade ele tem?
— Julgo que ele já tinha terminado o secundário quando eu entrei, então no mínimo três anos mais velho.
Sofia fica pensativa por uns momentos.
— Vamos à casa da tua avó, tens de ler a carta que Adeline te deixou.
— Sofia, acho que é melhor deixarmos isso para depois, eu… não me sinto pronta.
— Tens de te colocar pronta, ela deixou algo, se escreveu para ti é porque tem motivo. - Sofia coloca a mão no meu ombro. - Se for algo do que estou a pensar ela não te deixou uma carta, mas sim um bilhete, Clara, dois anos de prisão dão que pensar.
Dois anos de prisão.
Passamos na casa dos pais de Adeline, a mãe não fazia ideia que eu tinha ido para Aveiro, todas as chamadas foram realizadas para a residência Aidos. Dei as minhas desculpas, porém eles fizeram igual.
— Não tem porque se desculpar!
— Tenho sim Clara, tinhas razão na altura, quando defendes-te que ela não tinha fugido. A polícia falou que ela fugiu novamente, mas o corpo disse outra coisa, pedimos para abrir o caso novamente desde setembro.
Luz ao fim do túnel.
— Alguma coisa até agora?
— Não, apenas os bilhetes que ela deixou, eles disseram que é possível ela ter estado em cativeiro devido à magreza e marcas, o que era de esperar. - A mãe de Adeline dá um golo do chá que fumega na chávena. - Até eu consegui ver isso quando a fui reconhecer Clara.
Choro volta, ela controla-o o mais rápido possível.
— Eles pareciam que estavam a encobrir algo, pagamos ao estado para isto.
— Se me permitir, o bilhete que ela lhe deixou, dizia algo que ajudasse a encontrá-la?
— Não, apenas poemas, como sabias ela adorava poesia.
— Sim, ela adorava poesia, Camões talvez? - pergunto inconscientemente.
— Sim, como sabes? - Parece surpresa, poisa a chávena de chá.
— Ela adora Camões, tinha sempre boas notas nas provas com os seus sonetos e poemas. - Sorriu levemente, queria chorar.
A mãe continua a olhar-me surpreendida, sorri como eu, os olhos marejados como eu. Silêncio depois.
— Obrigada por seres amiga dela! Ela tinha uma admiração por ti, às vezes perguntava-me se era algo mais. - dá uma gargalhada.
— Duvido, eu admirava-a mais pela paciência que tinha e muita astúcia.
Sofia esperava com o pai de Adeline na cozinha, falavam algo baixo, mas quando entramos calaram-se de forma suspeita.
— Foi um prazer, obrigada pelo chá, Sr. João! - Sofia despede-se com um aceno. - Então, algo que ajude?
— Sim eu acho…
— CLARA!
A voz ribomba na estrada
O pai de Adeline corre na nossa direção.
— Faz bom uso. - Dá-me uma mica com um monte de folhas e volta a casa.
— São os bilhetes. - Sofia fala calma. - Ele perguntou porque viemos agora, eu falei que Aveiro está a sofrer com o mesmo homem de Lisboa, de alguma forma, ele conectou os pontos rápidos, acho que a polícia daqui não ajudou muito. Falou para termos cuidado.
Retomamos o caminho, não sei o que falar, olho as folhas, bilhetes, fotocópias, a escrita de Adeline era distinta. Longos traços na diagonal, tremidos, provavelmente do local onde escreveu.
— Ela sofreu Clara. - Sofia interrompe o silêncio. - A tua colega, deixou vários sonetos e poemas, o pai dela falou que o estado…
Vejo a cara a ficar branca.
— Não precisas de descrever, vamos voltar ao hotel.
— Não, eu estou bem,... igual ao Virgílio e as raparigas, mas muito pior, e a polícia acha que tinha mais bilhetes, ele falou que havia partes que não acabavam ou que tinha falhas no meio.
— Ele descobriu os bilhetes, não foi?! - A minha boca fica amarga.
— Setembro, bate com a tua ida, mas depois do que o pai dela relatou, acho que talvez… - Sofia olha para mim desgostosa.
— Ele matou-a por conta dos bilhetes, eu já cá não estava, não havia motivos para a manter e ela estava a encontrar forma de contactar alguém. - Inspiro fundo, algo não faz sentido aqui. - Mas se ela estava em cativeiro, porque iriam os bilhetes ser uma ameaça.
— Talvez porque ele a mudava de sítio? Única razão para usar tanta raiva nela.
Paro no meio da estrada, olho Sofia respirando pesadamente.
— O que ele lhe fez, conta-me tudo!?
Minutos depois vomitava o meu pequeno-almoço na calçada, Sofia branca com a pressão a cair numa escadaria próxima, colocava a cabeça mais baixa que o corpo. Os meus olhos focaram no amarelo do conteúdo do meu estômago, cabelos encaracolados amarelos.