Anatomia e estômago para a mesma

1402 Words
Magali estava numa cela por meses já, tudo o que fazia era ser interrogada, falar com o advogado e visitas muito espaçadas da mãe e padrasto. O seu pior medo era ser deportada de volta ao Brasil, depois de tanto trabalho voltar por algo dessa proporção era horrível. Sozinha, ali tinha, apenas direito a um dos seus livros favoritos, A hora da Estrela que a mãe lhe trouxera. Sabia que Margarida tinha estado em interrogatório, mas achou estranho apenas ela ser chamada, no dia seguinte o advogado falou que eles colheram informações no telemóvel das mensagens com a Margarida, que mostravam pensamento agressivo sobre o Virgílio. — Eu não matei ninguém! - Pela terceira vez responde o mesmo à polícia. Não decora nomes, todos fazem as mesmas perguntas. Onde estavas? Como conheceste o Virgílio? Fala-me desta mensagem? Mataste o coitado não foi? — Olha, estamos nisto a quase dois meses, continuar assim vamos ter de te passar para uma prisão normal, então vamos ajudar-nos mutuamente. — Eu quero falar com as minhas amigas. Eu sei que uma já veio, tudo que vocês tem em mim são mensagem de alguém que me usou para trair a namorada, além que depois eu ser presa, mais duas pessoas foram assassinadas naquele lugar. — Bem… duas das tuas colegas ajudaram a encontrar a arma do crime, mas isso não te iliba inteiramente do que aconteceu ao teu namorado. - Abre o portfólio onde estão as provas retiradas do local, do Virgílio. O homem tem outros dois, as duas jovens mais recentes. — Eu não quero ver isso novamente. - Magali começa a roer as unhas. - Quero o meu advogado. O agente feita novamente o portefólio, olha para Magali sério e coça a barba levemente, passando depois a mão pelo pescoço. — Magali, … — Advogado. - A fala estava tensa, voz calma, continua a roer as unhas. — Como desejares. - Saí da sala de interrogação tão rápido como entrou, ficou ali por mais de 1h até que alguém a fosse recolher, contudo, não passava de uma tática para ver se ela quebrava. Aposto que foi a Sofia e a Clara Em Lisboa entramos na casa da minha avó, os panos que tinha colocado com a sua morte estavam intactos, uma película fina de pó cobria tudo. A escadaria que levava ao primeiro andar ainda tinha dois dos jarros de flores que a avó nutria tanto. A casa tem dois andares e sótão, os quartos eram esparsos e cheios de luz, porém a partida para Aveiro deixou a casa no mais escuro possível. Mesmo que assim seja, o lugar já viu demasiadas mortes, destino ou não, todos os que aqui viviam. Falto eu. — Bem tens muito correio. - Sofia pega o monte de cartas. - A minha mãe não quer saber da casa, quando o notário disse que ela me deixou a propriedade a minha mãe não batalhou. — Os teus pais… eles são… — Podes falar, rato de biblioteca. - Riu baixo. — Únicos. - Sofia ri-se também. - Definitivamente únicos. — Os bilhetes da Adeline? — Aqui. - Sofia levanta um envelope castanho-claro. - Vou dar-te um bocado para leres. Encontramo-nos naquele café na esquina? Os meus olhos caem sobre o envelope, após anos sem saber dela, após noites a pisar e repisar sobre o caminho que ela fez naquele dia. Respostas por fim, vamos a mais um jogo Adeline. Subo para o segundo andar, entro no quarto onde vivi por dois séculos, sento-me na cama e abro o envelope, duas páginas aparecem, não consigo olhar. A descrição de Sofia volta a minha mente, a chacina. — Ela foi encontrada com marcas de resistência, cabelo e unhas fracas, este no escuro durante aqueles dois anos, porém apresentava cicatrizes, ele foi cortada várias vezes ao longo do tempo. A causa da morte foi esvaziamento de sangue por via da… — Continua! — Ele abriu os ovários dela, retiro-os, os exames dizem que ela estava viva enquanto isso. — Que mais? - Sinto o estômago a contorcer, fluído gástrico começa a subir a minha garganta. — Os órgãos nunca foram encontrados, e ela também… abusada, depois. Sofia abaixa a cabeça, os lábios roxos e pele branca da tensão baixa fazem com que ela se apoie na escada próxima. Enquanto eu deposito o meu pequeno-almoço na calçada portuguesa. Levanto a minha cabeça, Sofia tinha a dela tapada com o cabelo, mas eu podia claramente ver que chorava. O envelope está no chão, recortes de pequenas frases, poemas e um bilhete. Os meus olhos marejam, a visão dela em cativeiro, a força necessária para escrever, o sentimento que a manteve viva. Gelo ao ler o primeiro poema. Aquela triste e leda madrugada, cheia toda de mágoa e de piedade, enquanto houver no mundo saudade quero que seja sempre celebrada. Ela só, quando amena e marchetada saía, dando ao mundo claridade, viu apartar-se de üa outra vontade, que nunca poderá ver-se apartada. Ela só viu as lágrimas em fio, de que uns e outros olhos derivadas se acrescentaram em grande e largo rio. Ela viu as palavras magoadas que puderam tornar o fogo frio, e dar descanso às almas condenadas. Luís de Camões Clara, se algum dia leres isto, fica a saber que foste a minha madrugada. Sei que vais para Aveiro, desejo a maior sorte. Clara, espero que tenha corrido bem o exame nacional, ele falou que parecias entusiasmada. Não sei como o descrever, sempre esconde a cara, ajuda-me! Não consigo ler mais. Impossível ler sem chorar, a raiva que corre no meu sistema, não me permite raciocinar. Sofia pediu uma frizze no café, não consegui pensar em comida no momento. As palavras do pai de Adeline ribombavam na sua cabeça. Depois de tanta busca, encontrá-la assim, preferia que estivesse desaparecida. Aos menos, tínhamos esperança... — A tristeza de ter o seu bebé naquele estado, encontra-se numa escala superior a qualquer mágoa que alguma vez senti e compreendi totalmente. - Sussura. — Vai desejar mais alguma coisa, senhorita? - o empregado de mesa sorria. — Não obrigado, a rua aqui é bastante calma? - Deu conta que pela primeira vez desde a chegada a Lisboa conseguia ouvir os seus próprios pensamentos. De facto aqui é sempre mais calmo, a rua parece outra dimensão às vezes. - O rapaz ri-se e recolhe o cardápio de sobremesas que trazia debaixo do braço. — Uma dimensão bem diferente de Lisboa. - Olha em volta as poucas pessoas que passam na rua e como parece existir uma barreira de som com a rua paralela. - Chega a ser estranho o tão bom comportamento aqui. Lisboa é barulho, Lisboa é confusão, é o topo da pirâmide e o cristal mais limpo para os turistas, isso retirando o Algarve no verão, claro. Mas no fundo Lisboa é pútrida, arenosa, o novo é no interior decrépito, um local onde a vida é efémera devido à esperança de mudança. Deitada no chão, envolta de pedaços de madeira, lençóis brancos e poeira, deito as últimas lágrimas que o meu sistema consegue dar. Parti tudo a minha volta, a única sorte foi ter levado o meu espelho comigo para Aveiro. A raiva consumiu a minha energia, por isso estou no chão do quarto, no meio do arrombo que fiz, barriga para cima, cabeça na linha do tempo de Sofia e coração no bilhete final de Adeline. Clara, se me encontrarem, isto é para ti. Espero que me perdoes por tudo que tens passado, sei de fonte limpa que não acreditas que fugi, fiquei contente com essa notícia. Pelo menos, alguém que me conheça, ao longo destes anos aprendi que a voz é a chave para muito, que a expressão deve ser feita todos os dias, porque não sabemos qual o nosso amanhã. Espero que me perdoes por tudo que não consegui fazer para te apoiar, no fundo, não sei se foi uma boa amiga. Espero ter dado o meu melhor, como tu deste a mim, e que encontres uma nova aventura e amigas na universidade. Em breve vou deixar de ser necessária, sou descartável aqui e nem sei qual a minha posição nesta trança, na verdade. Sei apenas que a voz faz-nos reis nesta vida, usa a tua como uma carta num jogo de sueca ao sábado. — Devias ter jantado connosco naquele dia! - Sussurro enquanto as últimas lágrimas escorrem a caminho das orelhas.

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