Onde começa a loucura do ser humano

1778 Words
— Não achas estranho eles não fazerem vigia ao local depois de 3 mortes? Estamos a meio da análise de Comunicação técnica, mortas de sono com um litro de café na barriga e uma tosta-mista. — Sim. - Sofia desvia o olhar do ecrã do pc. - Eles só fecham o local, e vão lá procurar seja o que for, pelo menos até à data de termos encontrado a faca. A minha avó não me falou mais nada também. — Será que ele pode ser um deles? - A ideia veio de forma tão rápida que me deixou com pele de galinha. — Pode ser uma hipótese, mas acho que lhe terias reconhecido a postura — Bem… julgo que poderia reconhecer algo, mas posso muito bem me enganar, como a mulher do cemitério. — Que mulher? — Não te falei ontem? - fico surpresa. — Não mencionaste nenhuma mulher! — Oh, quando te mudaste fui visitar o meu avô e jurei ter visto uma mulher com a mesma postura e tamanho que ele, quando saí do cemitério é que me veio à cabeça que ela usava sapatos de homem, envernizados como ele. Naquela hora fiquei fria, mas claramente o meu cérebro estava a fazer-me uma partida. Sofia olhava-me estática. — Que foi? - Toco-lhe no braço. — Meu deus, Clara, ele passou por ti… — Não era uma velhinha.. Sofia chegasse mais a mim, fala o mais baixo possível. — Clara, nenhuma idosa nesta terra usa sapatos envernizados de homem, eu posso garantir-te isso, basta ireis um domingo à missa e tiras essa questão a limpo. Os olhos estavam carregados de preocupação. — Então… ele… por que raio iria ele ao cemitério? - O cérebro começava a doer de tanto pensar. — Para onde ele foi? — Como assim, ele foi ao cemitério! - Piscos os olhos devido à sequidão. — Para que lado Clara, o mesmo que tu? Mais para Norte? Centro? — O meu avô está a leste do cemitério, ele passou a… ou ela… - Falo duvidosa. - Foi para norte, passou na rua central do mesmo. Quando saí estava em frente a capela onde fazem os funerais. — Credo… - Sofia esfrega a cara levemente. — Eu sei que é estranho, mas podia mesmo ser uma senhora mais alta e incorporada. Ou pelo menos era assim que eu tinha decidido ver a situação. — Clara, ouve o que te digo. - Sofia olha-me seria. - Aquela capela já não é usada para os funerais há dois anos, foi feita uma igreja funerária junto da igreja, o meu pai andou a construí-la. Ele estava a procura de algo, os nomes das campas principais estão lá colocados num mapa. Foi feito no início do ano devido a algumas campas terem sido movidas para aumentar o espaço. Ele estava a ler o mapa Clara, estava à procura de alguém ali. Fico em silêncio — Nós temos de fazer uma linha da tua família… -Porque? - Saio do transe. — Porque, ... Olha eu pensei muito ontem e a única coisa que supostamente têm em comum é Lisboa, mas… se a ligação for a tua família, a tua raiz, Clara, ele devia andar à procura da campa do teu avô! — Eu não… — Tu falaste dos sonhos com a tua avó, do nome que ele te dá, o mesmo que os teus avós te chamavam, o facto de ele comunicar-se contigo como já te conhecesse há anos. Eu acho que ele está a tentar encontrar-te. - Sofia para depois da afirmação. Ficamos iguais estatuetas, muito provável que nem ela tivesse chegado a tal conclusão ontem, mas com a história do cemitério fez-se luz na historiadora. — Vamos a Lisboa? — Diz por fim. — Nem pensar, muito menos tu. - Rebato na hora. — Ele não viu a tua cara, ele não sabe de nada e este é o melhor momento ele não saiu daqui, de alguma forma sabe que vives em Aveiro, sabe da tua vida familiar tenho certeza, mesmo que a forma de como se aproxima seja estranha, ele tem certeza que estás aqui no distrito. Se formos a Lisboa podemos tirar algumas dúvidas, deves ter alguém lá que confies. — Tenho uma, mas não acredito que ela goste muito que lhe vá tirar esse tipo de dúvidas… — Podemos tentar, de qualquer forma, ele continua a sentir a tua presença na noite, os sonhos que tens permitem que comuniques com ele de qualquer forma ou distância. — Vais com uma condição! - Falo severa. — Qual? — Se virmos que podes ficar visível de qualquer forma a ele voltamos a Aveiro logo. — Combinado! Finalizamos a análise no início da tarde, finalizamos o relatório e mandamos para o resto do grupo ver e analisar para estarmos todos no mesmo pé. Ao meio-dia tínhamos almoçado com os pais de Sofia, bacalhau com natas caseiro, azeitonas à parte e salada de alface e tomate bem temperada. Finalizamos com uma boa fatia de pão de ló e um café. Se havia algo que amava no meio daquela família era o café, coisa que já amava em Sofia. Todos bebiam café e no final do almoço, sentados a ver o jornal eram discutidos os mais variados assuntos. Política, comida, problemas na aldeia e claro que fofocas eram normais. Claramente sobressai os problemas da casa, o alcoolismo da mãe era evidente na pele e olhos, o pai estava habituado a ter tudo feito e em parte mimado a sua maneira. Porém, quando descemos para comer abriu um sol que não se via há muito tempo. Acabamos por ficar a brincar cá fora com um dos gatos da vizinha. Não saímos de casa o resto do dia e mais tarde é que subimos para finalizar o trabalho. — Vamos começar com a tua família então? - Pega num caderno A3 de capa azul. - Veremos como é Lisboa. — Não tinha nada de mais, além de ser abandonada pelos meus pais lá. — Clara, vamos começar do começo, primeira casa, vizinhos que te lembres, depois a casa dos teus avós e os teus vizinhos aí. Dou uma risada — O que tem de engraçado? - Sofia abre o caderno e puxa as pernas ficando com elas cruzadas. — Primeiro pareces uma psicóloga e segundo eu nunca vive numa casa que não fosse a dos meus avó. - Pauso para respirar, nem acredito que após tantos anos vou falar isto. - Os meus pais só tiveram comigo sozinhos na semana que nasci, a minha mãe viajou para a Alemanha na seguinte a trabalho, eu sempre vivi com a minha avó, não os vejo faz quase 4 anos Sofia. Eu não era muito fã de silêncio depois que os sonhos começaram, sabia diferenciar o silêncio aterrador, de um silêncio de confusão, contudo a cara da Sofia no momento era uma mistura que tentava decifrar. — Eles não gostam de ti ou…? - Tentava medir as palavras. — Eles falam que sim, mas eu nunca fui uma prioridade para ambos, a verdade é que a minha avó foi a principal a chatear a minha mãe a ter filhos. Daí vim eu, eles mandam o necessário e eu não me queixo, não vai valer de nada. — Nisso posso apoiar, os meus vivem comigo e sou ignorada na maioria das conversas. Mas não ao mesmo nível que tu. Comecei então por dizer onde nasci, onde vive os meus primeiros anos de vida, a escola, as minhas amigas e desportos que pratiquei. — A tua amiga desapareceu? - Sofia abandona os olhos do caderno onde escrevia a minha vida. — Sim, ela nunca foi encontrada, como havia problemas dentro de casa a polícia deu como fugida, mas nem assim a encontraram. A memória de Adeline era uma mágoa no meu coração, se a tivesse acompanhado a casa como costumava fazer… Chuva forte invade a minha memória, naquele dia Adeline andava inquieta, tínhamos inúmeras coisas para estudar e os professores não se importavam de dar mais. Eu deveria ter seguido com ela para casa, mas a minha avó ligou a falar que precisava de ajuda com o jantar, pois os meus pais voltaram naquele dia de Buenos Aires. A chuva era algo que ela não gostava, foi o único dia que não a acompanhei, parecia feliz, mas cansada com a carga horária que tínhamos. Tudo parecia normal, era só mais um dia de escola. — Chuva forte? - Sofia parecia focada na parede atrás de mim, do que em mim. — Sim, teve uma tempestade subida naquela semana, chovia imenso. — Achas que isso pode ter ligação? — Porque haveria de ser ela a vítima, se for assim quem é o alvo sou, não?! — Clara, ele não te vê e tu não o vês, mas isso tratasse ao breu nos sonos certo? - Retoma o seu olhar para mim. — Sim, ainda não lhe vi a face pelo escuro. — Mas isso não significa que ele não pudesse ver o teu quando falaste. - Roda a caneta entre os dedos. - Se voltarmos ao desaparecimento da tua colega, e vermos que foi o único dia que não a acompanhaste a casa, com o facto de ele não te ver é possível que ele não consiga de todo. As imagens dos vários pontos que falamos até agora correm, o seu comportamento junto da margem Macinhatense, cabeça baixa, ombros baixos, chapéu de coco e cabelo loiro encaracolado grande, olhos que refletem a margem, mas não lhe consigo decifrar a cor. — Ele é cego! — Sim, ou talvez parcialmente, Clara, a tua amiga… - Respira fundo. - Não quero falar mentiras, mas é possível que ele tenha colocado a mão nela, faz sentido até, ela desaparecer no ambiente favorito dele, na cidade dele. Ele conhece a tua voz e ficou puto quando o abandonaste sem dar uma palavra ou movimento. — Ele sente a minha presença pelo tato e audição. — Nem mais, minha cara. - Sofia sorri. - Daí termos de ir a Lisboa, mesmo que seja a cidade grande de Portugal, alguém o teve de ver no meio da multidão. Nem que sejam as suas próprias sombras. — Isto é demasiada loucura para um dia Sofia. - Esfrego o rosto. Ambos os telemóveis tocam, no chat todas deram ok para entregar. — A alma humana é uma linha fina entre sanidade e loucura. - As suas palavras estavam carregadas de desprezo e dor. Em parte eu dei a minha vida em apenas dois dias, mas dela eu sabia muito pouco, Sofia tinha um olhar cansado e pesado, refletiam bem mais que os seus 21 anos.
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