Chuva Fina

1748 Words
Acordei com um susto, senti o corpo a ser puxado por algo e quando abri os olhos Sete-Sóis miava descontrolado, fazia caras estranhas e saltava sobre a cama. Parecia preocupado com algo, mas não saía de junto da cama, finalmente parou e sentou-se perto de mim, deixando a cabeça pender sobre o meu braço. Eu tentava respirar fundo depois do susto, o n***o do quarto não me apavorava, a companhia do meu bichano ajudava a controlar a situação. Tinha finalmente as minhas respostas quanto aos sonhos, não eram sonhos e isso poderia confirmar com as notícias matinais. Eram seis da manhã quando o primeiro jornal começa e a primeira matéria foi o ataque junto à ponte. Duas jovens foram mutiladas junto da ponte que liga Macinhata a Serém, os corpos foram arrastados até ao pegão depois de chacinados, a polícia já decretou que as vítimas foram atacadas pelo Sombra. Não foram dadas mais declarações pelas autoridades. Fod*u, num nível que nem eu compreendo pela primeira vez. Sofia estava com insónia, sempre teve problemas para adormecer, contudo, depois de o fazer dormia profundamente. Esta não era a noite perfeita, como não tinha esperanças de conseguir ter uma réstia de sono acabou por ligar o pc e ficar a escrever um pouco, pelo menos ainda tinha imaginação. Morava agora numa zona perigosa e talvez fosse isso que a fazia ficar até altas horas, acordada. Tentava descrever a paisagem que tinha da sua casa, porém parecia muito genérico, queria mais detalhe e todos os dias via aquelas árvores ao longe, a estrada a subir até serem e o verde incrível que mistura natureza e casas. — Dar uma vista de olhos… Decide ver a paisagem noturna, talvez ajude a escrever o que realmente quer, abre o estore devagar para não acordar os pais e desliza a porta sacada. Está frio de rachar, veste o seu casaco azul e sai, fechando um pouco da sacada por conta das melgas. A paisagem era lindíssima pela noite, a estrada é iluminada pelos postes durante toda a subida, vê-se as casas minimamente. O silêncio é reconfortante naquele momento. — Devia ter trazido o pc comigo. – Porém as melgas só a iam ver mais rápido. Estranhamente o cão do vizinho está calado, pensando bem, não o ouço desde que começou a anoitecer. Fica encostada ao gradeamento, fitando as luzes, que graças ao estigmatismo parecem alongadas que nem o reluzir da faca que viu no areal. — Por quanto mais tempo vamos ficar com medo de andar na rua? – Olha o telemóvel, são 3 da manhã. A chuva miudinha dava uma impressão depressiva da noite, afinal com as noites já ninguém pedia por ela, quem iria desejar que chovesse e mais um corpo fosse encontrado. Parece que mais uma noite calma, … é uma noite calma, mais vale colocar os fones, escolher uma seleção musical e escrever. Volta-se para a sua janela caminhando lentamente, gritos ecoam. Rapidamente se vira em direção à escuridão. Mais um grito agudo e silêncio profundo. — Merda… - É o primeiro pensamento. – Não pode. Telefonar, tinha de fazer algo. Marca os números, do outro lado da linha alguém atende, não deixa sequer apresentar. — Alguém acabou de gritar da ponte, Macinhata, alguém está na ponte de Macinhata e acabou de gritar. — Senhora vou pedir que se acalme, por favor diga o seu no… — O que interessa a p***a do meu nome, alguém está naquela ponte, eu ouvi dois gritos, eu vivo perto, MANDEM ALGUÉM PARA AQUI JÁ… Na universidade nem uma palavra Sofia estava quieta, Sónia e Margarida nem se davam conta, Gael parecia interessado, mas acabou por desviar o rosto, ninguém lhe perguntou nada do novo incidente, apesar de todas terem visto as notícias. Eu queria falar com ela, mas nem a mim me parecia confortável naquele momento, no meio de muitos outros estudantes. Alguns comentavam o ataque, outros apenas acenavam levemente. Desta vez nenhuma vida era estudante da ESTGA, mas isso não tirava o medo das pessoas. Depois da aula saímos devagar, discutimos os trabalhos que tínhamos apresentado e comentamos possíveis notas, o costume. — Sofia vens comigo? Não obtive resposta imediata, mas ela respondeu. — O comboio é daqui a uma hora e cinquenta, fico pela biblioteca, obrigado. — Eu levo-te a casa, não à estação. – Ela precisava tirar algo do peito. — Obrigado, mas fica-te longe… — Não sou mão de vaca, ocasionalmente não morro se me desviar da rota. O seu olhar dizia sim, parecia frustrada e com raiva, chateada? — Okay então… — Vais levá-la? – Sónia discutia datas com os colegas para uma aula que teríamos de repor e vinha agora em direção ao carro. — Sim, ficar aqui tanto tempo num dia destes não é bom, todos queremos a nossa casa. — Verdade, até amanhã então. — Despede -se com um sorriso. — Que tal vermos o que roda nessa cabeça? Ela entra e fecha a porta. -Eu que telefonei… -Telefonaste a quem? — Há polícia, eu estava acordada e não consegui dormir, então decidi ver a paisagem de casa, porque escrevia e não encontrava as palavras que queria… aí ouvi os gritos. – Olha para mim de olhos molhados. – Das raparigas… Destino ou não, a vida prega-nos partidas que ficam marcadas para sempre. — Fizeste o certo, não havia mais nada que pudesse acontecer para ajudar… — Eu sei, ainda pensei em descer até a ponte depois de telefonar, mas… Intervenho. — Nunca o faças, intendes, aquele homem… aquele homem é um assassino. E foi uma sorte teres ouvidos os dois gritos, mesmo que elas não tinham sobrevivido, significa que terá sempre alguém alerta durante a noite… e que… — Dois? Sofia fica a olhar para mim de olhos arregalados, como se a morte tivesse na sua frente. — Sofia? — Como? — Como o quê? — Como… sabes que foram dois? Paralisei eu, de alguma forma deixei passar um erro, que pode tornar-me numa futura lunática aos olhos das pessoas. — Faz sentido não, elas eram duas e… Bem eram duas. – Não sei o que responder então apenas coloco o cinto e ligo o motor para aquecer. Sofia faz o mesmo e olha as gotas de chuva no vidro da porta. — Tu sonhaste hoje? Paralisei novamente. — Não. – Mentira que a irá proteger. Olha para mim, focada, analisa-me como faz com as outras pessoas. — Mentes m*l, Clara. — Eu não estou a mentir, aquilo dos sonhos passou… já era. — Estou a ver…, mas ainda assim mentes m*l. — Eu sei que não sou boa a mentir, mas… - Pensei em contar-lhe, contudo, nem eu mesma sei com aquilo que lidei, estou a lidar e poderei lidar. Tinha de começar a encontrar respostas quanto à identidade do Sombra. — Quando quiseres dizer, manda mensagem, talvez eu possa ajudar. – Sofia parecia sem vida, mostrava um sorriso para melhorar a escuridão da conversa, talvez tentar esconder o seu próprio medo. – Nenhuma delas perguntou nada hoje, mesmo eu tendo comentado com a Sónia de como estava acordada. — Acho que não te queriam maçar com o assunto… Mentira, apenas não se deram ao trabalho, isto porque durante a apresentação dos outros, elas conversavam no privado sobre ti. Eu queria dizer isso no mínimo, mas essa era a parte mais leve, depois tinha a gravidade das mensagens. Gael nem saiu de casa, já tinha na cabeça que ia desistir, frequentava as aulas a seu bom prazer. Com os incidentes que se davam não podia divertir-se, ficava depressivo, então nem se levantava. Recebia algumas mensagens de Margarida e Sónia, pequenos comentários sobre Sofia e também algumas queixas. Margo — Mesmo que elas tenham morrido no rio lá na terrinha não é caso para tanto, afinal ela mudou-se recentemente. Sónia — Estava bem depressiva, também não lhe disse nada. Gael — Qualquer um ficaria assim dada a situação. Talvez as amizades sejam falsas ou passageiras, ou simplesmente as pessoas falem o que querem sem pensar. Na minha mente, fico pela última, afinal ninguém é perfeito e todos acham ter a pior vida. A ponte foi encerrada, assim como fitas foram colocadas à entrada como forma de aviso. — Eles nem um sinal colocam… - Sofia olhava para a fita amarela e preta de maneira doentia. – A forma de nos proteger é com aquilo. Após chegarmos a casa dela, convidou-me a entrar e tomar um café, aceitei. Não sei porque, queria contar-lhe, contudo não a queria no meio da minha confusão. — Como tem andado as coisas por aqui? – Dou um gole e enrosco a minha mão na pequena chávena. — Melhores, a minha mãe parou com as suas birras e o trabalho do meu pai é mais calmo que o último. — Ainda bem… Alguns minutos de silêncio passaram, ela bebia o café dela com calma, tinha ligado o aquecedor do quarto por conta do frio, estávamos no quarto dela. — Estranho como a chuva fez o tempo mais frio, normalmente fica mais quente. — Sim, pelos vistos decidiu fustigar mais a nossa bela terra. – Bebo mais um gole. — Castigar é a palavra certa, o depoimento que dei… nem sei o que dei, na verdade. Foi um monte de pergunta i****a… — O mesmo homem da outra situação? – Fico interessada. — Sim, contudo que mais eles iam perguntar, eu liguei sob suspeita, não vi nada… — Sim…- Partilhar um pouquinho não mudaria nada. – Se os sonhos que te falei fossem verdade… Sofia desvia por fim o seu olhar da chávena para mim. — O do homem no pegão? — Sim, o homem do pegão… eu… - Vai-me achar louca. – Eu vi as duas jovens a serem mortas, por aquele homem! A minha convicção foi forte, Sofia arregala os olhos. — A faca que encontramos, eu já a tinha visto, no primeiro sonho, quando o Virgílio foi a vítima, contudo, ele não o atacou e sim a mim. — Clara, que raio estás a tentar… — Ele sente a minha presença, eu vi as duas a descer a ponte, eu… Sofia está mortificada, as mãos tremem ligeiramente. — Obrigado pelo café, fecha a porta m*l eu saia. Não me disse uma palavra, desci o mais rápido que pude e entrei no carro, passei pela ponte de propósito. As fitas flutuavam levemente, cheia de gotas da fina chuva que desceu a manhã inteira sem parar. A chuva trouxe mais frio.
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