Memórias de orvalho

2301 Words
O cemitério em Macinhata é pequeno comparado aos de Lisboa, mas um pouco mais assustador, não que esteja cheio de campas destruídas e tenha histórias de fantasmas. Penso que será por ir visitar o meu avô, a campa dele é vizinha de uma bebé que morreu com apenas 2 anos. Toda vez que aqui vinha com a minha avó ficava a olhar a fotografia da pequena menina que faleceu tão jovem. Além de ser triste pensar nas histórias das várias pessoas ali enterradas, afinal em Lisboa ninguém se conhecia, a minha avó está enterrada junto de um casal de jovens dos quais nunca ouvi falar. Aqui eu conheço a história de muitos, incluindo a menina que faz companhia ao meu avô. Atropelada pelo trator que o tio conduzia bêbado, de tanto que olhava a fotografia a minha avó partilhou a história, perto dali estavam os tios e primos deles, conhecia a vida de cada um, contudo relatos e contos vagos apenas, memórias que a minha avó partilhava comigo ocasionalmente. — Fazes tanta falta aqui… - Tinha comprado um ramo com margaridas na florista da aldeia. Ele amava margaridas, infelizmente o nosso vizinho em Lisboa adorava colocar herbicidas nos canteiros dele. Eu tive pouco tempo com ele, mas o suficiente para saber que desejava uma vida calma, cheia de flores e leitura. Apesar de ser a minha avó a ler-me na hora de deitar, ele vinha dar o beijo de boa noite. — Se me ouvires, tenta ajudar-me a compreender os sonhos porque a avó não deu muita ajuda. Vento começava a levantar-se, o cemitério estava vazio e o silêncio era aterrador, por alguns instantes pensei ter visto uma mulher a passar do outro lado. — Deve ser viúva, estava vestida de preto? - A minha mente tinha parado. – Eu virei-me rápido, foi apenas uma junção de sombras e por que raio estou a falar tão baixo. – Coloco as mãos dentro dos bolsos do casaco e encaminho-me para a saída. Dou uma última olhada após sair, uma mulher tinha realmente entrado, era mais alta do que tinha calculado primeiramente, estava totalmente vestida de preto desde o chapéu até aos sapatos. Voltei ao carro, sapatos…. — Ela usava sapatos de homem, como… - Olhei o portão de entrada, sapatos envernizados, totalmente novos e brilhantes. Sofia arrumava algumas das caixas que já tinha esvaziado, tinha finalmente colocado todos os seus livros nas suas prateleiras. — Sofia vem jantar! – A mãe não sobe as escadas, o berro foi tão alto que se assustou. — Já vou! – Retribui no mesmo tom. – Talvez deva ligar?! – Olha o telemóvel em cima da cama, decide descer, sabia que se não o fizesse iriam berrar com ela. O jantar foi calmo, todos estavam cansados com a mudança e ninguém parecia ter muito a partilhar. Sofia gostava de jantares assim, uma família normal estaria contente a falar sobre o seu dia ou os muitos problemas da sociedade, mas a dela não e assim ela gostava, pois, o silêncio era melhor que a discussão. Acaba de comer e permanece um bocado na mesa, sabe que iria ter problema se voltasse ao quarto m*l acabasse. Depois de 15 minutos a olhar a TV e não falar com ninguém, levanta-se com o seu prato, direciona-se para a pia e lava o prato de imediato. — Vou arrumar as minhas roupas nas gavetas. – Sai depois do pai acenar em afirmação, ainda comia então não lhe deu muita importância. Afinal, grande parte das discussões começavam com a mãe. Mal chega ao quarto telefona, toca por dois minutos. — Oi... – A minha voz sai fraca. — Chegaste a casa? — Sim, algum problema aí? — Não, vou arrumar mais umas roupas, mas não fiquei muito convencida com a tua cara com o que aconteceu, parecia que tinhas visto um fantasma na faca. — Fiquei apenas surpreendida com tudo, não estavas com a melhor expressão também. – Riu para quebrar a discussão. — Sim, em parte por conta daquele agente da treta. — Eu igual, mas é o sistema que temos. Esperemos que seja algo bom para ilibar Magali, porém não mantenho esperança Sofia, aquilo estava na água e nem mesmo sabemos o porquê de ela estar presa. — Pensei o mesmo, água limpa impressões e nem mesmo sabemos o que se passou ali no meio deles, achas realmente que ela é culpada? — Não, eles tinham problemas, em parte devido a ele já ser comprometido, mas não acredito que ela tenha chegado a tal estado mental para fazer aquilo. – A dúvida pairava nas 4, isso eu sabia de fonte limpa, mesmo que ninguém comentasse enquanto estamos em grupo. — Esperemos pelo melhor, tenho certeza de que ela voltará a sua vida normal, foi tudo um engano. As novas disciplinas matavam a paciência inicial, o suposto semestre começava com uma tortuosa carrada de matéria teórica e muito uso de computador, o que matava a retina de qualquer um. Tinha passado uma semana desde o incidente na aldeia, em plena sexta, orvalhava pelas 10 da manhã, o que me deixa com um tique nervoso na mente. Os dias tinham sido solarengos e quente, era primavera já e por algum motivo tinha-se aposentado um tempo n***o que colocava abaixo toda a vontade de vir as aulas. Os meus sonhos continuavam com a figura escura, o orvalho junto da ponte, o remexer dos ombros e a calma dos passos assustavam. A frase mantinha-se, ecoava na minha mente sempre que começava a dissociar, o plano em que via a figura nunca mudava, mas as suas ações sim. Voltas ou apenas pequenos passos, o homem mantinha o rio como o seu lugar de brincadeira e conforto, levava livros e amava deixar pegadas. Andava também no gramão, deixando alguns objetos pelas ervas, papéis de rebuçados e pacotes de bolachas. A face mantinha-se um mistério e a minha presença parecia não ser notada, mas também não me movia, mantinha a respiração controlada. Queria mover-me e tirar algumas suspeitas, mas algo em mim me dizia para não o fazer, pois da primeira vez foi assim que ele me viu e se for assim que ele me vê, se eu simplesmente ficar quieta posso ver todas as suas ações e continuar numa sombra criada por mim. — Clara! - Eu voava nos pensamentos e muitas vezes acontecia ficar a olhar para a parede branca da sala sem motivo, foi o último lugar que olhei antes de entrar na minha muito complicada rede de pensamento. – O que colocaste como características na alínea 3? A professora parecia estar a divertir-se com a minha ansiedade de olhar o exercício e tentar encontrar a resposta que tinha escrito a uns bons 10 minutos. — Coloquei o segundo parágrafo do texto dado e acrescentei algumas alíneas do parágrafo anterior que achei que podiam ser aqui aplicadas. Comunicação técnica, nome da disciplina mais fácil até aquele momento, era escrita técnica e resumo de texto importantes, na verdade, seleção de texto e aprendizagem de correção e redação de papéis técnicos. Os exercícios eram em parte simples então eu sempre me adiantava e passava ao seguinte, caso isso não acontecesse eu apenas ficava a olhar o fundo da parede e esperava que a Sofia me devesse um abanão para voltar à realidade. — Qualquer dia, ainda adormeces a olhar para aquela parede. – Sofia ria por debaixo da mão que usava para tapar a boca. — Vou nada, estava apenas a pensar no que fazer para o jantar, vivo sozinha tenho de planear. — Claro que sim, tão claro como o meu nome ser Sofia e o teu Clara, ou seja, clara mentira. — Chata! – Retomo a atenção ao quadro onde a professora tinha deixado alguns apontamentos de apoio aos exercícios corrigidos. — Não se esqueçam de fazer a ficha que deixei no e-learning, assim podemos corrigir na próxima aula, tenham um bom fim de semana. — Que horas são? – Fico espantada com a despedida. — Mulher já passa 10 minutos da 13h, estavas mesmo a dormir. – Sónia ri e dá um sorriso doce. — Ela devia estar a sonhar com alguém, não é?! – Margarida faz uma cara pervertida. – Algum amor no meio da vida? — Só se for o gato e até ele quer o seu espaço. – Todas se riem e arrumamos as coisas nas calmas. Sete-Sóis era a coisa mais fofa e assim como qualquer gato queria carinho e queria o seu espaço o bichano era família já, não havia dia em que não lhe desse a sua festa antes de sair para a universidade. O tempo tinha corrido tanto que ia fazer mais de 4 meses que o tinha. Saímos da sala e decidimos sentar no pequeno jardim central da universidade. Ficamos a fazer companhia a Sofia, mais tarde dar-lhe-ia boleia até à estação e rumar a casa. — Alguém comunicou-vos da judiciária? – Margarida interrompe o silêncio que estava depois de mais uma risada. — Não, por quê? – Sónia foi a primeira a perguntar. — Eu fui chamada, hoje tenho de me apresentar pelas três da tarde. Silêncio geral, tinham feito alguma descoberta. — Talvez tenham descoberto algo e queiram confirmar os fatos. – Sofia parecia ter ganhado luz nos olhos. – Deve ser sobre Magali, talvez a faca tenha ajudado em alguma parte da investigação deles. — Pode ser isso. – Falo o mais feliz possível, eu deveria estar, mas suspeitava de algo, uma ligação qualquer mexia com as minhas emoções no momento, o raciocínio não batia, assim como aquela faca ajudar Magali depois de tanto tentar compreender como eles nunca procuraram nada na água. Margarida era mais ligada a Magali que o resto, faria sentido ser chamada, contudo devia ter sido a mais tempo. -Clara… Quando dei conta tinha voltado a minha rede e todas me olhavam com surpresa. — Estava apenas a pensar… será que depois podes partilhar o que perguntaram? — Não sei, só se for entre nós, não quero problemas com autoridade. — Nada a temer, apenas queria tirar umas dúvidas…. O orvalho mantinha-se mesmo o meio-dia tendo passado, algo me dizia que hoje não seria boa noite para passear por Macinhata novamente. Mesmo tendo chovido ao fim da noite do dia em que encontramos a faca. O estômago começava a doer e uma nova dor de cabeça voltava. — É por conta dos sonhos…? - Sofia não perdeu tempo, m*l entrou no carro. — Eu não sei… apenas sinto que existe algo de errado comigo. — Eu começo a achar que tu não contas muita coisa, e que eu me mudei para um lugar mais perigoso do que parece. Parei depois de 10 minutos na estação, o trânsito por aquela hora era sempre caótico no centro de Águeda, mesmo a estação sendo perto da universidade. — Pedia-te apenas que não saias a noite e que não vás mais ao rio por uns tempos. Ficou paralisada com a porta aberta a olhar para mim. — Clara, o que se passa? — Eu não tenho certezas, hoje vou tirar umas conclusões, aproveita o fim de semana com o teu boy e na segunda falamos. Okay... – Dou um sorriso fraco, mas sincero. — Tu assustas as pessoas, sabes? Vê-lá o que vais aprontar, costumas salvar pessoas como o Gael, não te meter em alhadas e encruzilhadas. — Eu não farei tal coisa, apenas irei tirar umas dúvidas sobre uns problemas. — Até segunda, toma conta de ti. – Sofia despede-se e entra na estação. A cara de desconfiada era 100 % visível, mas eu teria de tirar as minhas conclusões, qual o motivo dos sonhos, a ligação ao assassino em série e a ligação à água. Tinha certezas de que ele me via ou no mínimo tinha noção da minha presença na sombra que eu criara na última semana. Mas não me atacara, deixava se rir pela corrente do rio e fazia troças sem dar uma palavra. O sono veio mais natural do que alguma vez me lembrei, a chuva miúda cobria o areal cheio de pequenas pedras corroídas pela água, o homem parecia correr pelo gramão ria-se, decidi mover-me. Ele parou de repente, estava de costas, mas rapidamente virou a cabeça na minha direção. Tinha notado a minha presença? Por momentos pensei que sim, até que vejo duas jovens a descer a estrada de terra que leva tanto ao pegão como ao outro lado do rio. Rapidamente o vi baixar e desaparecer no preto da sombra do gramão. Luz? Era lua nova. Corri até ao lugar onde ele estava, tinha esperança de ele notar a minha presença, mas parecia continuar a mirar as suas vítimas, a cara tapada pelo lenço preto não ajudava a entender muito a sua expressão. — Deixa-as ir. – A minha voz parecia ecoar pela corrente, mas ele não se moveu. As duas jovens, talvez estivessem interessadas no homicídio e pensaram que após tanto tempo não teria problema de dar uma olhada. — Não lhes faças m*l, elas… — Minha gota de orvalho não me atrapalhes. Corre desumanamente em direção a elas, do bolso do longo casaco preto retira uma faca igual à anterior encontrada por mim e Sofia. Impossível. — Para! – Corro igualmente. Elas nem o viram aproximar, o momento em que a primeira gritou já a outra jazia no chão com a barriga rasgada. — Se uma boa menina e não grites muito, pois a minha gotinha está a ver. – Ria de forma estridente enquanto lhe enfia a faca no útero e sobe lentamente. Acorda simplesmente, Clara acorda!! — Gotinha… - Eu é que iria fugir, nem dei conta da aproximação dele. – Estava a ver que nunca mais ias falar-me, por que não mostras a cara? -O quê?!
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