Final do primeiro semestre

1603 Words
A época de exames é o verdadeiro inferno, a porção da universidade que leva as pessoas à loucura se não soubermos organizar. É mais de metade dos estudantes não o fazem, é o tempo em que a depressão, ansiedade e o pânico se instala na mente dos fracos. Não tenho vergonha de o admitir, eu tive crises em matemática, umas 5 pelo menos, aquela matéria era o meu calcanhar de Aquiles, isso e tudo que envolvesse demasiado cálculo. A crise vem quando pensamos não estar mais ansiosos, as gotas vindas dos olhos apenas molham as folhas levemente, mas o nosso cérebro encontra-se a processar as nossas emoções num passo lento e monótono, e se não achar resposta ficamos ali. É necessário força e coragem, apenas mentalizar, contínua que consegues. Estudava fazia três dias e ainda assim errava exercícios por coisas que já tinha aprendido a meses e melhorado. Voltava a repetir e relembrava-me continuamente o motivo de ali estar. É apenas uma das muitas cadeiras, não desistas por uma. Era assim, no final do dia, parava e descansava o cérebro, estava mais cansada que agricultor no Alentejo num dia solarengo. O meu corpo parecia cimento de tão duro e dorido, liguei o esquentador e fiz um chá quente, os dias continuavam frios. Não houve mais notícias do serial killer, eu não sonhei mais depois da noite de Natal. Devia sentir-me feliz, o meu cérebro fez uma melhoria sozinho, porém sentia falta da minha avó e das suas palavras cheias de mistérios. Por outro lado, não sentia falta dos sonhos obscuros como a figura do homem de coco. Parecia que o meu desejo tinha sido concretizado, ele foi embora com o orvalho. Destino ou não, aquilo que me preocupava era Magali, não tínhamos notícias dela fazia uma semana desde que começaram as aulas e ela não compareceu aos testes feitos até a data. Em três dias seria o de matemática e não recebemos notícias dela por parte da mãe, a polícia continua a reter informação ao público, apenas mantinham o apelo à segurança e o povo revoltava-se com a pouca informação que passava toda a noite no telejornal. — A PJ pede aos cidadãos que se mantenha sempre em grupo, em especial os jovens e que assegurem bem as casas. Qualquer atividade suspeita, telefone 234… Desliguei a TV, era mais do mesmo, reinava a insegurança num distrito inteiro, a caça a apenas um homem mantinha-se a mais de dois meses. Ouço o barulho de uma notificação, tinha deixado o telemóvel na cama junto de Sete-Sóis. O gato era o meu porto seguro, em maus momentos de ansiedade sempre recebia carinhos e abraços. Caminho devagar para o quarto, não o queria acordar, mas de pouco serve, ao levantar o dispositivo ele abre o olho direito. Sorriu e abano o telemóvel, ele volta a fechar o olho e não se mexe. Sofia tinha mandado mensagem. Clara-boia — Amanhã posso estudar na tua casa, os meus pais estão impossíveis! — Por mim tudo bem, não vejo humanos a três dias… — Talvez possas trocar comigo, estes fazem perder o amor aos ouvidos. — Agradecida, mas prefiro manter os meus dias caso esse fosse o contexto. — Lá pelas 9 e tal? — Pode ser. Margarida estava no hospital, a mãe tinha uma consulta de rotina e acompanhou as instalações, enquanto esperava ia vendo pequenos reels no telemóvel e respondendo ao namorado. As pessoas entravam e saiam apressadamente, hospitais eram assim, contudo como não se encontrava na sala de espera e sim dentro da área dos pacientes ia ouvindo os comentários das enfermeiras e médicas. Ou se queixavam da carga horária ou simplesmente decidiam odiar o dia e por tal faziam horas e atrasavam pessoas, talvez o desejo fosse que alguns dos pacientes desistissem e voltassem para casa. — Depois do aparecimento do assassino não temos paz, já atendemos pessoas com ataques de pânico. – Um dos enfermeiros parecia descontente com a situação. — Nem me fales, a minha colega está dentro do caso, diz que o rapaz estava desfigurado. Margarida começava a sentir-se m*l com os pormenores. Isso não apareceu nas notícias. Muita coisa não apareceu nas notícias por acaso, os detalhes iriam criar muito mais que crises de pânico nas pessoas. O enfermeiro retirasse da sala com um comentário breve. — Eles falaram universitários e acertaram… – Para quando vê Margarida a fixá-lo de cara pálida e sossegada, não acaba a sua frase e retoma ao seu trabalho. A outra enfermeira sai também da saleta e olha Margarida, apenas comprime os lábios e dá um baixo bom dia. Sofia estava tão focada em matemática que comia o lápis sem dar conta por uns bons 20 minutos. — Presa em algum exercício? – Tinha-me levantado para fazer um chá de menta. Na verdade, o chá tinha-me sido apresentado por ela, ajuda no inchaço e intestinos. Gostei tanto que passei a beber um todas as manhãs. — Sim, estas malditas sucessões fazem-me perder a confiança, sempre erro na mesma parte do cálculo. — Não és a única, vai correr bem, qual o ditado afinal? — O curso faz-se no recurso. – Para de roer o lápis e deixa-se cair pelo tapete. Sete-Sóis está deitado perto então passa-lhe a mão, o peludo abre o olho e dá uma pata em sinal de afeto, miando baixinho. Nunca o tinha visto a socializar tanto, na verdade, nunca cheguei a compreender ao certo o que o fez abrir-se a mim, talvez seja mesmo por termos pontos em comum, vida parecidas, mas em corpos diferentes. — Como queria ter um felpudo assim! O meu pai não me deixa ter mais nada, em breve vamos voltar a Macinhata…. —Macinhata? — Sim. – Volta a levantar-se. – Não és a única a ter lá família, julgo que tinha partilhado, mas devo ter sido cortada na conversa por alguma das nossas colegas. Às vezes penso que somos demasiado animadas. — Quero a Sofia de volta, vai com o d***o depressão. – Riu tão alto que Sete-sóis mia em protesto, contudo Sofia ri igualmente alto. — Ele adora o silêncio já vi, a minha casa não seria um bom lugar para ti, meu fofo. – Faz-lhe festa no cachaço e este logo começa a ronronar de prazer. Eu limpo uma lágrima, e também lhe faço uma festa, contudo abaixo no queixo, ele adora ser coçado nesse lugar. — Mas vais voltar a viver lá? — Sim. Vou apanhar o comboio contrário, muito tempo sozinha à espera, mas o meu pai sente falta do campo. — Eu pensava que sempre tinhas vivido no campo… aproveita o ar mais limpo, e arranja um destes então. – Pego no Sete-sóis e deito-o no colo de barriga para cima. — Verei se tenho essa sorte, vivi uma parte da minha vida naquela aldeia, e fui muitas vezes aquele rio sabias, nunca pensei que algo assim pudesse acontecer numa terra tão pequena. Qual a tua ligação lá mesmo? — O meu avô era natural de lá, em jovem foi para Lisboa trabalhar e acabou por lá ficar a viver depois de conhecer e casar com a minha avó, depois da sua morte ia visitá-lo com a minha avó todos os dias dos mortos. — Estou a ver, ele faleceu mais cedo que ela, não foi? Aqui estava a capacidade de Sofia, ela podia achar que nunca decorava a matéria, mas nada lhe passava, eu tinha comentado isso no início do semestre entre todas. — Sim, cerca de 15 anos de diferença. O tema ficou sombrio de repente. – Comento com um sorriso fraco. — É melhor que a conversa na minha casa, de qualquer forma posso apenas ter empatia, ainda não tive ninguém a falecer do meu lado, apenas animais de estimação. —É igualmente sofrido e deixa marcas. — Mas mudando então de assunto. – Pega na chávena de chá que lhe trouxe. – Tens menos olheiras, como vão os sonhos. Eu tinha partilhado os sonhos estranhos com a minha avó e o misterioso homem de coco. — Não voltei a ter, mas não fico muito descansada sempre que lembro de sonhar com o rio e no dia seguinte o Virgílio aparece lá morto. – Aperto a chávena com força. — Pode ser coincidência, ou talvez o assassino tenha ligação a ti. – Sofia começa séria e desfaz-se numa gargalhada gigante e prolongada após ver a minha cara horrorizada. – Tenta acalmar-te, houve pessoas que tiveram crises de pânico, tu sonhaste. O nosso cérebro é um grande mistério. — Tenho certeza que foi isso, que mais eu teria, ligação emocional a um serial killer. Desta vez ambas rimos de tanta idiotice que falamos, era assim na universidade, as aulas podiam ser pesadas, caóticas e chatas, cada dia tinha o seu adjetivo. Contudo, não havia nada melhor que momentos assim para levantar a moral em tempos de ansiedade e baixa autoestima. O riso era um prato que ansiávamos a cada intervalo ou tempo livre. Ficamos ali por mais uns 10 minutos na risota e voltamos ao estudo, fizemos exercícios em grupo e desafiamos um a outra a realizar os mais difíceis para conseguirmos ver as falhas que persistem, foi um bom dia e no final ela acabou por cá dormir. Momentos assim eram raros, cada um tinha a sua vida, horários e atividades diferentes. Fizemos o teste no dia seguinte, o semestre acabou na semana seguinte, nenhuma de nós precisou de ir a recurso, mas não soubemos nada de Magali, mesmo tentando ligar à mãe ou a pedir informações na sede da PJ em Aveiro. Ninguém divulgava o mínimo detalhe.
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