Capítulo 08: Señora

2664 Words
Terra 1492 O frio da água, suas roupas molhadas subitamente e o conforto de Jared em seu sonho de belas mulheres, fez seu despertar completamente súbito e terrível. Ele tentou abrir os olhos, mas o sal da água o impediu. Respirou fundo, mas o ar não entrou em seus pulmões de uma vez; desesperado tentou outra vez, o ar entrou devagar, desesperando-o. Assim que ele foi capaz de respirar normalmente, ele viu três homens. Aquele que estava no meio, lançou um balde de madeira para o lado, enquanto outros dois, que fediam a peixe, mas fortes como touros espanhóis, pegaram Jared pelos braços e o arrastaram convés acima; suas pernas, sem vida, praticamente limpando o chão enquanto ele passava. Subiram alguns lances de escadas, até que o sol tocou em seu rosto. Ele franziu os olhos com a nova luz que feriu seus olhos. Vozes vinham de todas as direções; ele viu borrões de silhuetas em todo o seu redor, e, assim que se deram conta dele, o barulho parou. Jared percebeu que ele agora era o centro das atenções. Ele foi jogado contra o chão, mas felizmente, conseguiu virar-se de lado e impedir que sua cabeça não batesse na madeira maciça. Aos poucos, sua visão foi se acostumando a claridade. Tentou olhar em volta, mas não conseguiu distinguir qualquer um dos rostos; sombras escondiam-nos. O barulho pesado de botas veio na sua direção; ele olhou para cima e para frente, de onde elas vinham. Um homem de olhos escuros, barba farta e castanha, e uma espada na cintura encarava-o de cima. – Capitão, nós encontramos um clandestino. – Uma voz aguda e rouca, ao mesmo tempo, reportou. – Ele estava dormindo entre os suplementos. – Levantem-no. – O capitão ordenou; os dois brutamontes fedorentos levantaram-no; Jared teve certa dificuldade, a princípio, de ficar ereto, mas logo suas pernas firmaram-se. – Qual é o teu nome, rapaz? – Estranhou tanta gentileza daquele homem; marinheiros costumam jogar clandestinos para fora do barco imediatamente. – Blackwood, senhor. Jared Blackwood. – Um inglês, não? – Ele informou. – Diz-me, o que estás a fazer no meu navio? – Eu tive um problema na cidade, então meu amigo, Ouriço... Digo, Jensen, conseguiu-me uma passagem segura para Veneza nesse navio. – Contou a verdade, não tinha motivos para mentir. – Veneza? – O capitão disse, em voz alta para os marinheiros ouvirem, em tom zombeteiro; todos começaram a rir em volta dele. – Desculpa te informar, rapaz, mas este navio não vai para Veneza. – Não? – O coração de Jared acelerou de repente. – E para onde estão a ir? Ele abraçou os ombros do clandestino com força, e o empurrou aos poucos em direção beirada do navio, em uma das partes mais altas. Assim que estavam no topo, o capitão indicou o oceano à frente deles e, ainda mais, outras três caravelas. Eram grandes, para comportar mais de trinta ou quarenta pessoas – Jared não era exatamente grande conhecedor das artes da navegação. – Aquela, a que está mais a frente das outras e que tem a maior vela, é a Santa Maria. A da esquerda é a Pinta e a outra, com a vela detalhada em vermelho e dourado, é a Niña. Nós somos parte da frota pertencente ao Almirante Cristóvão Colombo. – Ele tinha um sorriso tão grande, que era impossível para Jared não perceber que ele tinha orgulho de ser parte daquela frota. – E tu está a bordo da Señora. Nós estamos a ir para as Índias. – m***a. – Foi a única palavra que saiu de sua boca durante alguns minutos. – E faz quanto tempo que estamos a navegar? Dependendo, eu posso pegar um dos botes e voltar para a Europa. – Estamos navegando há três dias e noites. – O outro disse, seu sorrindo desaparecendo. – E não te preocupes, tu irás ao mar, mas não com um bote. Joguem-no aos tubarões. Os brutamontes surgiram do nada. Eles levantaram Jared acima da beirada do barco, e o prepararam para lançar. No entanto, uma batida na lateral do barco fez esse vacilar por um momento. Jared foi ao chão, em segurança para dentro do barco. Eles começaram a se perguntar o que era aquilo, o que permitiria ao clandestino correr, isto é, se ele não tivesse dormido três dias e estava a uma distância impossível da Europa. As atenções voltaram-se para ele quando o navio parou de balançar. – Capitão, o que achas de me permitires de ficar no teu barco, hãn? – Ele levantou-se; começou a usar sua lábia para tentar sair da situação. – O senhor sempre pode usar uma mão extra para limpar o convés, te servir. Eu sei fazer camarões divinos, isso é, se houver todos os ingredientes. Ele coçou a barba, pensativo. Jared olhava de um lado para outro, procurando qualquer um com um rosto simpático que pudesse intervir a seu favor, entretanto, não viu ninguém. – Mande chamar Enrico, por favor. – Ele disse, por fim; Jared encheu-se de esperança. Até ver Enrico. O homem era um cara grande e gordo, com braços fortes, porém gordurosos. Ele estava suado; sua roupa, que deveria ser branca – provavelmente do que um dia fora um chef – estava suja de sangue e excrementos de peixe. Jared podia jurar que, sobre o peito esquerdo dele, que, por sinal, era maior do que de algumas mulheres com quem o inglês tinha dormido, havia um olho de peixe aberto e julgando o clandestino. Um cutelo, também sujo e com a beirada não-afiada enferrujada, estava em sua mão direita. Seu rosto não era melhor. Ele tinha bochechas imensas e, tanta papada, que era impossível achar seu queixo; uma barba rala, como se ele não tivesse feito no dia anterior, enfeitava a papada como cactos enfeitam o deserto. Seu cabelo, apesar de seboso, oleoso e sujo como se não tivesse sido lavado no último ano, devia ficar na altura dos ombros quando soltos – o que não era o caso, pois estavam presos em um rabicho de cavalo. Seus olhos, porém, tinham uma combinação que Jared nunca tinha visto antes: um era azul, tal qual o céu sobre suas cabeças, e o outro era preto, como a tempestade que se aproximava em alta velocidade deles. – Estás a precisar de ajuda na cozinha, Enrico. – O capitão perguntou. – Não. A equipe está completa. – Ótimo, Jared pensou, amanhã vou acordar apertando a mão do d***o; Jared era católico, e como tal, detinha fé, e sabia que a vida que tivera o jogaria direto no Inferno. – Diz ele que é capaz de fazer um camarão maravilhoso. – Qual a receita? – Enrico encarou Jared, que quase vomitou; não de medo, mas sim por causa da feiura daquele homem. O inglês explicou a receita como tinha feito com Martina. Enrico mexia a cabeça em aprovação cada vez que Jared falava um novo ingrediente; ao fim do relato, ele franziu o cenho e voltou-se ao seu capitão. – Sem dúvida, uma receita diferente, mas que pode dar certo. E temos todos os ingredientes. – Pois bem, senhor Blackwood. – Ele disse seu nome quase como uma piada; se Jared fosse orgulhoso como o pai, ele o desafiaria para um duelo ou algo assim; felizmente, ele não o era e não sabia nadar. – Se quiser ficar conosco, faça essa tal iguaria e sirva-me. Se me agradar, o senhor poderá ficar e viajar conosco até as Índias, e depois de volta a Europa. Se não, será a iguaria para os tubarões. Entendido? Jared apenas confirmou com a cabeça. Seguiu o cozinheiro. O lugar onde preparavam a comida era pequeno, apertado e repleto de caixas. Com o movimento para lá e para cá do barco, foi extremamente difícil cozinhar para o capitão – ainda mais com seu estômago roncando; apenas depois de toda a tensão com o capitão, foi quando ele notou que estava com muita fome. O almoço seria dali a longas três horas. – Então – Jared começou, tentando puxar conversa para que o silêncio não os deixasse ainda mais desconfortáveis – no que batemos agora a pouco? – Não batemos em nada. – O outro respondeu, de forma simples, enquanto descascava algumas batatas. – Como não? O barco balançou, até salvaste minha vida de ser jogado no oceano. – Bem, não batemos em nada. Algo bateu em nós. – Jared parou de fazer o que estava fazendo. – E o que foi, exatamente? – Ele tinha ouvido diversas histórias sobre seres marinhos que afundavam barcos, mas nunca acreditou em nenhuma dessas histórias; contudo, Enrico falou com tanta tranquilidade que Jared duvidou de suas certezas. – Alguns chamam de Leviatã, a serpente marinha. – Ele começou a contar; e apenas nessa pequena frase, Jared percebeu que ele gostava de contar histórias do mar. – De fato, dizem que foi esse monstro marinho que impediu que nossos antepassados chegassem até a... – Ele se interrompeu. – As Índias por esse novo caminho. Ficou claro para Jared que ele estava escondendo algo e, portanto, sua palavra não podia ser confiada. Ele mentia, estava claro, por mais que suas palavras fossem confiantes. Voltou a se concentrar em sua tarefa com os camarões; era mais importante agradar ao capitão do que escutar histórias de um louco do mar. Pegando o clandestino de surpresa, a luz do sol que vinha de uma pequena fresta no alto de uma das paredes, cessou, dando lugar a uma escuridão sem fim. Enrico mandou que ele guardasse todas as facas e objetos cortantes; depois, colocar a comida em vasilhas e prendê-las. Uma tempestade havia chegado, e eles não podiam perder os mantimentos que tinham, pois sem ele, morreriam em alto mar. Jared sentiu seu estômago indo de um lado para o outro, sempre na direção oposta do barco. Odiou cada segundo, ainda mais quando a água salgada começou a gotejar, escorrer e empoçar. Não gostava do mar, nunca gostou, e odiava que o único método de se passar pelos mares eram aquelas malditos barcos de madeira. Como não tinha experiência com embarcações, não tentou subir para ajudar. Sabia que atrapalharia, não ficou na cozinha, contudo. Quando seu estômago estava à beira de expelir comida, ele saiu e vomitou no primeiro balde que viu. E ficou ali durante as horas que a tempestade atacou. Ao voltar para cozinha, encontrou Enrico já trabalhando no almoço, que estava pelo menos duas horas atrasado. Jared voltou aos camarões e, logo, terminou-os. Enrico acompanhou-o até os aposentos do capitão, que ficavam na parte mais alta da caravela, à popa. Encontrou o capitão discutindo com outros dois marinheiros de mais idade sobre o que deveriam fazer em seguida. Por causa da tempestade, tinham se separado da frota, mas decidiram que deveriam seguir com o plano e ir pela rota que tinham estipulado com Colombo quando ainda estavam na Espanha. Se fizessem isso, ou chegariam as Índias ou encontrariam com o resto da frota. O cheiro delicioso que saia dos camarões interrompeu e chamou a atenção do capitão e dos presentes. Jared aproximou-se com cautela, o rosto abaixado em reverência, como se ele fosse um rei, e não um reles marinheiro que nem ao menos era um Sir. Jared depositou a bandeja diante do capitão, que tinha afastado os mapas a sua frente. Então, ele pegou um dos camarões com seus dedos sujos e o colocou na boca inteiro. Os minutos tensos enquanto ele mastigava lentamente a iguaria foram mais eternos do que qualquer outro na vida de Jared. Por fim, ele olhou para o clandestino, seu rosto sério como de um rei que julga as ações de um bandido. – Estava muito saboroso. – Disse por fim, e o coração de Jared desacelerou aos poucos. – Bem-vindo a tripulação do Señora. – Ele esticou a mão, que o rapaz apertou com firmeza. Dois meses de viagem se passaram, mas eles não viram nem sinal de terra seca. Os suplementos estavam sendo racionados, o que deixava o capitão e, principalmente, toda a tripulação em um mau-humor terrível. Jared, também, estava como eles. Fazia dois dias que não bebia água, mas sabia que havia alguns deles, mais fortes do que Jared, que já estavam sem beber a quase uma semana. Mais duas de viagem, contudo, a água cessaria. A comida, agora, estava praticamente resumida a alguns peixes que os marinheiros tinham a sorte de pegar no oceano, e isso acontecia pouquíssimas vezes. Os vegetais que eles traziam tinham acabado, restando apenas carne salgada e dura de boi e porco que tinham trazido da Espanha e, ainda assim, duraria menos que a água. Isto fazendo uma única refeição por dia. Todos estavam no limite. Não tinham muitas forças para continuar a jornada, e também não podiam voltar, não tinham suplementos para isso. A esperança era continuar em frente e cruzar com qualquer parte de terra que pudesse existir naquela parte do oceano. Entretanto, o impossível, como se esperasse esse momento de fraqueza, resolveu acontecer. Assim como no primeiro dia de Jared acordado, o barco balançou sem razão, como se algo o empurrasse pela lateral. Enrico, que estava, milagrosamente, do mesmo tamanho de sempre, insistia em dizer que era o Leviatã, a serpente do mar. Ou, pelo menos, algo da família. Jared limpava o convés com uma escova quando, ao olhar pela fresta da madeira, viu uma barbatana imensa e reptiliana saindo da água. Levantou-se, contudo, a tempo de ver aquela mesma barbatana voltando para dentro da água. Enrico estava certo. Ele correu até a cabine do capitão, que estava sentado pesadamente em sua cadeira, e avisou do perigo. O capitão, zombou, é claro, mas foi para o lado de fora mesmo assim; tudo para animar um pouco a viagem e tentar-se distrair da fome. Uma vez de volta ao convés, ele usou sua luneta para ver mais de longe. Obviamente, não viu coisa alguma. – Tu deves estar a delirar pela falta de água. – O capitão disse. – Capitão! – Um grito de um homem veio da proa da caravela. Ele apontava para frente, mesmo que não fosse necessário. Uma criatura que parecia o cruzamento de um tubarão com uma cobra gigante; suas escamas tinham um tom azulado, porém esverdeado quando refletiam o sol. Suas guelras se abriam e a quase um metro e meio de seu corpo com pelo menos dois de espessura. O par de olhos maiores, que ficava em baixo, era reptiliano, amarelo e de pupila vertical; os menores, que estavam acima destes, eram completamente pretos, como se eles fossem responsáveis por absorver toda a luz. O capitão começou a dizer ordens para seus homens, que imediatamente obedeceram, inclusive Jared, que aprendera a navegar durante aquele tempo. Por pouco, escaparam de uma investida do monstro, que jogou todo seu peso contra eles, mas acertou apenas água. Eles tentaram navegar na direção contrária do impacto, mas não adiantou. O monstro surgiu na lateral deles e, outra vez, jogou todo seu corpo contra a caravela. Este primeiro impacto não a afundou, e eles continuaram navegando contra a criatura, com toda a força do vento e a favor da maré, mas eles não eram não chegavam nem perto da velocidade do animal. Jared tentava puxar algumas cordas do mastro central, tentado descobrir uma forma de mantê-lo de pé. Outros homens trabalhavam com ele. O Leviatã apareceu uma segunda vez; Jared, depois de analisar rapidamente os danos, sabia que o segundo ataque da criatura iria partir o barco ao meio. Os marinheiros tentaram disparar os canhões e as armas contra o monstro, mas m*l riscavam suas escamas. Enrico surgiu de repente do outro lado do barco, diante de Jared, que o encarou enquanto o corpanzil do monstro descia. O clandestino podia jurar que o cozinheiro sorria antes de o Leviatã atingir e partir o barco. Jared, assim como muitos dos homens, caiu ao mar. Ele não viu quando, em toda aquela confusão, um pedaço de madeira atingiu-o na cabeça.
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