2

2013 Words
Dois GUTO — Quê isso mãe? – Pelé tirou o cigarro da boca encarando a c*******a usada jogada ao lado do sofá velho. — Qual foi? Tá precisando de óculos agora? – Tábata respondeu cheia de sarcasmo. Era uma mulher jovem, n***a e tinha o corpo cheio de curvas marcado por roupas curtas e vulgares. – Mudando de assunto, fala aí… Acho que hoje é o dia de receber lá na boca, cadê a grana? – Ela se sentou no chão, ao nosso lado, arqueando as sobrancelhas desenhadas onde riscos e um piercing chamavam atenção. — Toma. – Tirei duas notas de cinquenta do bolso, metade do que havia ganhado na semana toda e entreguei para ela, mesmo sabendo que iria gastar em cerveja, baseado e tira gosto para os caras que vinham aqui em casa f***r com ela. Minha grana e a de Pelé era o que mantinha aquele barraco, enquanto ela curtia, comprávamos comida para não passar necessidade como alguns anos atrás. — E o seu, Pelé? — Aqui. Tábata recolheu a grana, se levantou e seguiu marchando para fora. Iria para o boteco caçar macho, isso era certo. — Tu não merecia passar por isso Guto, essa p**a não é nada sua. p***a! Por que você não mete o pé desta casa?! Tá fazendo o quê aqui aguentando desaforo? – Esse discurso era antigo, ele sempre me dizia isso, e na moral, eu já estava cheio dela e dele também. — Até parece que tu não sabe! Fala de uma vez que tu quer me ver debaixo do viaduto c*****o! — Mas você se arranja fácil. É branco, loiro do olho azul, pode trabalhar até de modelo se quiser! – Pelé era n***o, alto e magro, tinha traços largos, olhos fundo e cabelos crespos, além da capacidade de me irritar profundamente. — Me arranjo fácil, com certeza. Um modelo sem nome, sem documento e que nunca pisou numa escola. Tem muita agência caçando isso mesmo… – Levantei num pulo, pegando um cigarro e saindo para não me irritar mais com essa p***a de preto e branco. Não via diferença entre mim e Pelé, na verdade, via sim, querendo ou não ele tinha mãe, esteve na escola e largou os estudos porque quis, eu não tive essas oportunidades, mas só reclamava comigo mesmo, já que não daria em nada e se desse eu iria me f***r como sempre. Pelé falou alguma coisa, mas eu não fiz questão de ouvir. Não sei muito sobre minha vida, mas posso dizer que no passado quando dona Lurdes a mãe da Tábata era viva, tudo era diferente. Foi ela que me encontrou quando bebê e me criou enquanto criança. Nunca teve condições, era a única que trabalhava na casa, apesar disso, fazia o possível para nos ver bem, faltava tudo menos arroz com feijão pra gente. Dona Lurdes tinha problemas de pressão, não me recordo bem, mas acredito que tenha morrido de desgosto, Tábata sempre deu trabalho. Depois disso tivemos que nos virar, passamos a vender bala nos sinais e, como a grana era pouca, Tábata começou a nos pedir para roubar algumas coisas, não demorou pra gente fechar com os caras da boca. Com doze anos Pelé e eu já éramos vapor, e seguimos assim nos dias de hoje.O barraco em que morávamos era de frente a um beco, unido em outras casas, saí e me sentei no canto da escada puxando um trago enquanto assistia o sol desaparecer mais uma vez. Estava distraído pensando nessa m***a de vida, quando senti mãos delicadas tapando meus olhos e um cheirinho gostoso de comida. — Você sabe quem sou eu, mas duvido se vai acertar o que eu tenho aqui. — Humm… Acho que é alguma coisa salgada… Acho que é empada… Acertei?! – Olhei para trás assim que Laurinha tirou a mão do meu rosto. — Não, mas era de se esperar, você nunca acerta. – Laura era uma menina linda, tinha cabelos ondulados que caíam como seda em suas costas. O rosto era delicado, mas o olhar estreitado, escuro, junto aos lábios carnudos e bem desenhados deixava com uma expressão marcante. A pele n***a, com tom caramelado realçava o corpo magro, distribuído em muitas curvas. – Toma, é cachorro quente, acabei de fazer, meu pai adora. — Valeu Laura. – Disse pegando o pote com quatro pães, ela me conhecia bem e sabia que eu comia bastante. O cachorro quente estava uma delícia, não podia ter chegado em uma melhor hora. — Passei vergonha na escola hoje. – Disse séria se sentando ao meu lado. — É mesmo? – Perguntei com a boca cheia. – Por que? — Estávamos brincando de verdade ou consequência, daí eu escolhi verdade e uma recalcada fez questão de me perguntar se eu era BV, mesmo já sabendo que sim. Ela queria me expor ao ridículo e conseguiu! Todos riram de mim, eu era a única com catorze anos que nunca beijou ninguém! Que saco! Não disse nada, continuei comendo até ela continuar. — Você ainda é BV Guto? – Laura me fitou com o olhar meigo, meio tímido. Arregalei os olhos, engolindo a seco, quase me entalando com o cachorro quente. — E isso muda o quê? — Porque se for a gente poderia... — Laura, não. — Mas você tem 16 anos... — Quem garante?! Onde você viu isso? Na minha certidão de nascimento que não existe? — Guto, para com isso... Eu sei que é difícil, mas... — Ninguém pode fazer nada. — Eu sinto muito... – Abaixou a cabeça sem graça.   — Eu sei. — Você sabe que sempre faço o possível pra te ajudar, te ensinei a ler, escrever, a somar... Trago lanches quase todo dia... Mas, tem coisas que não dá, eu sei como é, eu também perdi minha mãe cedo... — De novo não, Laura, por favor, eu não quero discutir com você. — Tá bom, desculpa. – Ela passou o braço ao redor do meu, me envolvendo carinhosamente enquanto o jeitinho meigo transparecia pelo sorriso perfeito. Por um momento senti uma sensação calorosa passar como um reflexo pelo meu corpo, ali meu peito se aqueceu e meu coração relaxou enquanto nossos corpos sentiam um ao outro. — Chega Laura! p***a! De novo? Quantas vezes tenho que dizer que não gosto que fica me abraçando?! Valeu pelo cachorro quente. Tô me mandando! – Levantei-me bolado. d***a. Odeio essa sensação de fragilidade quando estou perto dela. Eu não podia dar esse mole. Laurinha sempre demonstrou gostar de mim, mas o problema era o pai dela, meu chefe, fora a p*****a de moleque que era doido nela e vivia implicando comigo. Minha vida iria ficar pior, se é que isso é possível. Às vezes a vontade de surtar e perder o controle de tudo tomava força ressurgindo como fogo. Mas não, ninguém era culpado por eu não ser alguém. — Hei! – Pelé chegou no beco eufórico. – Vocês tão sabendo?! O Marcão vai queimar uma racista lá no boteco do Joca! c*****o, ele é f**a! – Sorriu com frieza comemorando o que estava por vir. — Meu pai? – Laurinha arqueou as sobrancelhas, seus olhos vibravam para segurar as lágrimas e não se corromper. – Não... Não! – Ela se levantou, apavorada, correndo escada abaixo completamente descontrolada, sem dizer nada. Sempre ficava arrasada com esse tipo de notícia, Pelé sabia muito bem disso. Olhei nos olhos do meu amigo balançando a cabeça com desprezo. Ele é um o****o mesmo.   Corri a escadaria passando pelos becos m*l iluminados, eu tinha que alcançar Laura antes que ela fizesse outro escândalo na frente de Marcão, da última vez não adiantou nada e ele ainda prometeu uma surra caso ela cometesse o mesmo erro de novo.     Corri com o medo me corroendo, apertando os passos embrazado. Depois de um tempo consegui enxergá-la, na pior hora, no pior lugar. Laura deu a volta pela casa do Joca, passando pelos fundos onde dava acesso ao boteco. Meu coração falhou uma batida, meu corpo inteiro gelou no momento em que a vi atravessando a porta. Ali dei tudo de mim, corri mais rápido, com toda gana e força para impedi-la. — Laura! Para! Atravessei a porta me sentindo um lixo vendo Laura pular para cima de Marcão, jogando-o para longe da moça sentada no canto da parede completamente encharcada de gasolina. — Pai! Por favor, não faz isso! Por que você faz isso?! — Berrou cheia de mágoas, com as lágrimas descendo feito rio. Não me aguentando mais ficar quieto e temendo que ele perdesse o controle e a machucasse, acabei me metendo entre os dois e puxando Laura para longe. — Tu não aprende... Quantas vezes eu vou ter que te dar esse papo?! – Marcão trincou os dentes contendo a respiração exasperada enquanto seu olhar queimava como ácido sob nós. — Minha mãe teria vergonha! Eu tenho vergonha, eu odeio ter um pai assassino que só sabe resolver as coisas dessa forma! — Chega Laura! Vamos embora! – Eu prendi ela por trás impedindo que avançasse no pai outra vez. — Não. Eu vou ficar, eu vou assistir meu pai queimando essa mulher... Quero só ver o nível... Pobre coitada da minha vó... – Laura murmuravam, dizendo cada palavra em meio aos soluços, raiva. O silêncio reinou marcando a troca de olhar intensa entre pai e filha. — Guto – Arqueei as sobrancelhas quando ouvi o meu nome sair da boca dele – Tira aquela v*******a daqui, o Xamã vai te dar o papo e te mostrar onde os parceiros dela tá. — Beleza, mas... Patrão, a Laura, ela... Ela... — Não preciso de palpite quando o assunto é minha filha. Agora rala, mete o pé com essa p*****a, antes que eu me arrependa dessa m***a! – O tom frio fez o medo espairecer sob minha mente. Não fiz nada além de assentir e seguir até a mulher desamparada, com o corpo encolhido e a cabeça baixa no canto do bar. — Bora, ou tu quer ficar pra virar churrasco? – Não aguardei a resposta, parti na frente encontrando com Xamã que me deu as coordenadas de onde a galerinha da moça estaria. Liguei a moto pensativo, enrolando para pegar alguma conversa entre Marcão e Laurinha, só parei de focar naquilo quando senti a moça se sentando na minha garupa. Parti em silêncio, não demorando para chegar na esquina onde alguns soldados tocavam o terror na mente do playboy e da mulher cheia de postura ao seu lado. Parei a moto próximo à eles e disse: — Pode descer. Até então não tinha feito muita questão de olhar para a moça, mas quando passou do meu lado exalando o cheiro forte de gasolina foi praticamente impossível não acontecer. Senti algo estranho me tomando como um devaneio, ela não estava tão perto, mas me tocava de alguma maneira, cheguei a me arrepiar, era muito intenso ao mesmo tempo em que estranho para mim, nunca havia sentido nada parecido. Seus olhos eram de um azul vívido, lembrava o céu, mas com um brilho de tristeza que implorava por socorro, era exatamente como os meus e, eu não conseguia parar de olhar para eles... Lágrimas brotaram de suas pálpebras, me perguntei se ela estava sentindo o mesmo, mas aquilo foi minha resposta. Ambos abalados, golpeados pelo desconhecido. — Qual foi Guto? Tá maluco? Vaza c*****o, deixa que a gente se acerta com a dondoca! – Um dos soldados apontou para mim, me pedindo para vazar. A mulher logo endureceu o olhar, ficou fria e seguiu até os amigos. Eu queria muito ficar ali, conversar com ela para tentar entender o porquê daquele choque de sensações entre a gente, mas foi justamente nesse momento que eu me dei conta de que estava pirando de vez. Eu não podia me entregar a nenhum tipo de sentimento, se nem mesmo a Laura que eu conhecia desde que me entendo por gente eu me atrevia, imagina essa mulher que não tinha nada a ver comigo? Acelerei e meti o pé, mas com aquilo me atingindo.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD