Francisca
Eu ainda me lembro do olhinho todo cheio de marra da Valentina quando ela decidiu, pela graça de Deus, voltar para casa. Eu tinha passado o dia inteiro agoniada, lógico, a menina estava toda tatuada de roxo por conta do descontrole do Luciano e saiu dizendo que não ia mais ter volta, meu coração, pela primeira vez, se apertou, me mostrando que eu realmente era a mãe daquela menina, independente do sangue
Foi por isso que eu não disse nada para ninguém, por isso que eu guardei aquele dinheiro escondido, o da rescisão, eu precisava garantir que ela teria um futuro, mesmo que não fosse aquele que ela realmente merecia
Mas mesmo sem saber, ela carregou dentro de si uma coisinha da sua verdadeira mãe, a Valentina amava brincar com lápis, desde cedo pegava qualquer folha que estivesse dando bandeira no chão e saía rabiscando, perdi até boleto de conta importante para as artes plásticas daquela menina
Isso era coisa da mãe dela, a dona Priscila, a mulher que eu nunca consegui esquecer. Além de linda, de um coração enorme, ela tinha um dom especial, o de pintar telas e não era qualquer coisa não, ela tinha o poder de dar vida pra qualquer coisa que estava na sua mente, o negócio era incrível, sempre que dava eu corria para o seu ateliê particular, aquele que o seu marido tinha montado como presente para a amada esposa, ali eu me perdia, eu conseguia sonhar olhando para aquelas telas
Só que no meu mundo, a gente nunca tem muito espaço para os sonhos
Quantas e quantas vezes eu vi o Luciano brigando com a Valentina por conta dos lápis espalhados, dos desenhos pendurados na geladeira velha e também por conta que ela preferia pintar ao invés de fazer os afazeres de casa, m*l sabia ele que a menina, naquele momento, estava muito mais próxima do seu mundo do que nos obedecendo
Conforme ela foi crescendo, os desenhos começaram a ficar cada vez mais lindos, nítidos, era como se ela tivesse até feito aulas por conta da perfeição, até o tipo de paisagem que ela fazia se parecia muito com o que a dona Patrícia deixava pendurado nos corredores da casa dela
Depois daquele dia, ela evitou deixar os seus desenhos espalhados pela casa, me disse que o Luciano não tinha o direito de contemplar aquilo que estava dentro do coração dela e ele sentiu isso, tanto que, nas escondidas, começou a me perguntar se tinha alguma coisa acontecendo com a Valentina, já que não conseguia ver os seus desenhos
É, ele sentiu, tanto pelos desenhos como por minha causa, foi a primeira vez que eu também decidi peitar o meu marido, aqueles roxos espalhados no corpo da menina cortou o meu coração, nada justificava aquele tipo de violência, nada
Os dias foram passando, que depois viraram meses e anos, o Luciano tentava todos os dias mudar, lógico que em alguns momentos ele não conseguia segurar o orgulho dentro do peito e seguir a vida, a memória de eu ter me deitado com outro homem vinha fazer fusquinha na sua mente
É… isso mesmo, foi esse o motivo da briga, eu tive a coragem de finalmente dizer a verdade, não foi do jeito que eu queria, afinal, eu estava frustrada por ele não ter dinheiro para conseguir pagar a conta de luz e tudo por conta daquela maldita cerveja, o dinheiro de um engradado fazia muita diferença na nossa casa
Ele não se separou, mesmo porquê, eu omiti um pequeno detalhe, aquele que incluía o nome do pai dela e lógico, o meu maior segredo ainda ficou guardado no meu coração, ele engoliu seco a notícia, mas descontou na única pessoa que eu podia apontar o dedo e chamar de inocente
Valentina… aquele nome foi a minha melhor decisão, a minha menina forte e valente continuou crescendo, vivendo no seu mundinho, mas nunca desrespeitando o cara que ela chamava de pai, nem nos dias que ele a olhava diferente
Eu, no caso, guardava aquele meu sentimento de orgulho no peito, não queria que ela soubesse que ela ocupava um lugar diferente no meu coração, mesmo porquê, eu sentia saudades da minha verdadeira filha
Era estranho, as vezes eu me sentia feliz por ter a Valentina por perto, outras eu me pegava pensando que, por conta dela, por ela estar ali, eu não tinha a minha verdadeira filha para embalar, era um misto de sentimentos, por isso preferia não dizer nada, não incentivar nada, não a elogiar por nada, mesmo ela sendo boas em muitas coisas
Depois de tantos anos, eu deveria ser a mãe que aquela menina inocente precisava, mas não consegui
Com doze anos ela participou de um concurso promovido pela Secretaria de Cultura de São Paulo, na escola mesmo, era em nível estadual, e não é que a bichinha conseguiu ganhar em primeiro lugar?! O gene dela era bom pra coisa, o jeito da dona Priscila emanava na menina e ela nem sabia
Quando ela fez dezesseis anos, o concurso mudou de nipe, ela concorreu a nível nacional e pensa, o nome da Valentina foi ecoado no Maracanã, ela já tinha me dito que o sonho dela era ser uma artista plástica, daquelas que ia ter o poder de levar o nome do Brasil para o mundo
Naquela época eu consegui ver até orgulho no semblante do Luciano, a menina valente conseguiu conquistar a parte que era feita de pedra do coração daquele homem, mas ele também brigava com o fato de ela ser fruto do meu amor, aquele que eu só abri mão por o outro lado não quis
Mas foi com dezoito anos que a coisa desandou. Minha tia Maria, a que fez o meu parto, se desentendeu com os patrões, ela ainda trabalhava naquela casa de granfino que morava perto da mansão da dona Priscila, e eles nem deram aquilo que era de direito dela. A bichinha estava desesperada, seu filho Orlando cada vez mais se afundava no mundo das drogas e por conta disso, fez um empréstimo no seu nome que naquele momento, era mais que impossível ela pagar, foi por isso que ela veio até mim
Maria - Eu sei que aquela mulher te deu um dinheiro e que você guardou ele, por favor, eu preciso que você me ajude, que pague o banco, senão eu vou perder tudo filha
Francisca - Eu não sei do que a senhora está falando, eu dei o dinheiro da minha rescisão para o Luciano, todo ele, não tenho mais nada guardado
Maria - É MENTIRA!
Os gritos dela fizeram as paredes da minha casa tremer, eu nunca tinha a visto tão desesperada
Maria - Você sabe muito bem que isso é mentira, não pode me negar ajuda, você só tem aquele dinheiro por minha causa, minha, minha e somente minha
Foi nesse momento que o Luciano entrou em casa e sem entender o motivo do desespero da tia Maria. Eu fiquei atônita, não consegui explicar o que estava acontecendo e muito menos imaginar o que estava prestes a sair da boca da mulher
Foi de supetão, no susto, tanto para mim, como para o meu esposo
Maria - Ela não é a sua filha, sabe muito bem disso, ela é a filha da patroa
O ar me fugiu, meu coração parou de bater naquele momento, ela tinha me prometido e me feito jurar no mesmo tempo, aquela história nunca mais seria lembrada, seria como se não tivesse acontecido
O Luciano estava com a caixa de ferramentas de trabalho ainda na mão, mas com a notícia, jogou ela sem querer no chão, fazendo com que o metal se abrisse e as ferramentas se espalhasse, seu corpo caiu como um tronco mole em cima do sofá e ele estava branco como papel, dava para ver que a notícia o tinha pegado de surpresa, muito mais do que pra mim
Luciano - Não é possível… não é possível…
Por vinte anos eu escondi aquele segredo, mesmo que a minha mente me cobrasse justiça algumas vezes, eu ainda guardei ele dentro de mim. Eu não conseguia voltar no tempo, eu não ia conseguir ter a minha filha de volta e sabia que se tentasse, ia ser escurraçada da casa daqueles riquinhos sem dó em nem piedade, então, para que repetir uma história que deveria ser esquecida? Além disso, eu passei a amar o Luciano com o tempo, do mesmo jeito que ele me amava, eu vi a dor que eu causei quando contei sobre a traição e não queria que acontecesse de novo, fora que ele podia surtar e descontar tudo na menina, mesmo na imperfeição, eu não queria que a nossa família fosse desfeita
O desespero da minha tia tomou a vez, mais do que por remorso, ela fez aquilo como forma de punição, tudo por causa de um dinheiro maldito e que era da Valentina e somente dela, aquele dinheiro era uma parcela da minha redenção
Vinte anos… e só agora o destino tinha achado um jeito de me fazer enfrentar o meu esposo, de colocar a prova todo o amor que ele dizia aos quatro cantos da Terra que sentia por mim, mas, por incrível que pareça, não era com aquilo que eu estava preocupada e sim com ela, com a menina que por vinte anos eu teimei chamar de filha, como ela iria reagir? O que seria da gente depois disso?