Cap 3

1767 Words
Valentina Eu senti um misto de felicidade e tristeza quando entrei de novo naquela casa, dava para ver estampado na cara da minha mãe a preocupação que ela sentia por não ter notícias minhas, só que ela tentava esconder e era esse detalhe que me deixava triste Já com o meu pai não, com aquele ali eu não senti absolutamente nada, no caso, eu mesma me senti impotente por não ter sido capaz de sustentar a minha ideia de fugir e nunca mais pisar os pés naquela casa que me trouxe mais sofrimento do que felicidade Mas o que uma menina de dez anos, sem um vintém no bolso podia fazer, querendo ou não eu estava completamente presa a ele Luciano - Não é pior desse jeito? você foi lá, se achou no direito de cuspiu no prato que comeu, ficou o dia inteirinho fora e agora está aqui, com o r**o entre as pernas, tendo que aceitar exatamente aquilo que eu posso te dar Francisca - Luciano por favor, já chega, não era isso que você queria? Saber onde ela estava? Então pronto, ela está aqui, bem na nossa frente Luciano - Não, não é o suficiente, eu quero que ela reconheça que errou, eu quero que ela diga que não é capaz de fazer as coisas sozinhas, que depende de mim, do pai dela e que não pode fazer absolutamente nada, simplesmente porque não é ninguém Cada palavra que saía da boca dele eu guardava comigo, como um motivo para poder lutar e sair daquela vida, a única coisa que me deixava quebrada mesmo era saber que se eu era impotente ali naquele meio, minha mãe era pior ainda, nada do que ele me dizia a fazia acordar ou tomar uma decisão que pudesse favorecer ela, era sempre ele, por ele e para ele A casa estava exatamente do jeito que eu me lembro quando saí, ainda com muita coisa bagunçada e quebrada no chão, a manta de retalhos que cobria o sofá velho também estava jogada no chão, o tapete bagunçado, pelo visto, ele não deixou que minha mãe tocasse em nenhuma daquelas coisas, só para me humilhar ainda mais quando eu chegasse Como pode? Eu, uma menina de dez anos, que ainda precisava dele, estava sendo dia a dia humilhada pela pessoa que deveria, pelo menos, me proteger Luciano - Senta Francisca - Luciano… Luciano - Chega Chica, já chega, pode não parecer grande coisa, mas essa é a minha casa e pelo o que eu saiba, aqui quem manda sou eu. Não vou permitir que uma menina de dez anos faça o que bem entender, você não diz que eu sou o pai dela? Que tenho responsabilidade? Então, eu só estou tentando ser um bom pai Um bom pai… sério? Era aquilo mesmo que ele estava tentando ser? Mas eu não me dignei a responder, como uma boa filha, eu só me sentei no sofá de três lugares, o que ficava encostado na parede com a pintura descascada pela umidade. Aquilo chamou a minha atenção, aliás, tudo o que se referia a pintura me chamava a atenção, a casa era pintada com uma cor clara por dentro, não chegava a ser branco, acho que o tom lembrava uma areia clara, mas a luz artificial colocada no bocal do cômodo tinha poucos amperes e por causa disso, não deixava o ambiente totalmente claro quando a noite chegava Ali, naquele cômodo que a gente chamava de sala, também estava disposta uma mesa com quatro cadeiras, a gente chamava de dois ambientes, como o povo rico falava, mas era mais uma mesa colocada em cômodo diferente porque a cozinha era tão pequena que não cabia aqueles móveis lá Ele puxou uma cadeira, a que não estava tão bamba, e colocou bem na minha frente e depois se sentou. O espaço entre as minhas pernas e as dele era minúsculo e ele ainda fez questão de abrir as suas para poder deixar esse espaço menor ainda Depois, trouxe o seu rosto bem próximo ao meu e disse Luciano - Enquanto você estiver aqui na minha casa, vai ter que seguir as minhas regras, não é aquilo que você quer. Então, agora, eu quero que arrume tudo o que está fora do lugar, detalhe, antes de dormir. Quero que pegue as coisas quebradas e coloque no lixo, que varra toda a casa, lave a louça, guarde a comida que está em cima do fogão, pegue a p***a da mant que está jogada do chão e estenda no sofá, a casa tem que ficar exatamente igual a antes de você dar aquele seu showzinho Meu showzinho? É sério? Eu só fiz foi apanhar, pelo o que me lembre, não fui eu que dei o escândalo da vida sem nenhum motivo. Era isso, meu pai sempre dava escândalos sem nenhum motivo, acho que descontava a frustração da sua vida amargurada tudo em cima de mim Por várias vezes eu considerei que tudo acontecia só porque eu estava ali, porque eu tinha nascido. Dizem que os filhos são a alegria dos pais, mas na minha casa era diferente, eu não me sentia a alegria de nada e nem de ninguém, a única coisa que eu sentia de verdade, era que estava sendo um fardo carregado a força tanto pelo meu pai como pela minha mãe, mais por ele do que por ela Não foi aquela briga que me fez considerar sair de casa, não, foram todas as outras pequenas coisas, todos os dias, que ele me fez sentir, casa palavra m*l dita, cada olhar de desprezo, cada não que ele fez questão de me dizer podendo dizer sim, foram por todas aquelas coisas, a surra foi só o estopim mesmo Agora, quem estava frustrada era eu e tudo por conta da minha falta de capacidade de ser feliz Ali, olhando bem no fundo dos olhos do homem amargurado que ainda não tinha acabado de me dar ordens, meu pensamento foi para o rosto sorridente de um menino, um que eu só tinha visto uma única vez, essa era a sina de pessoas como eu, a coisa da imaginação, eu conseguia ir para qualquer lugar, sem sair do lugar Luciano - Estamos entendidos? Foi aquela frase que me trouxe de volta, para não causar maiores problemas eu só fiz balançar a cabeça, deixar a minha mochila em cima do sofá e comecei a fazer exatamente aquilo que ele me mandou Minha mãe ficou lá, parada entre a sala e a cozinha, ela não disse nada depois do corte do meu pai, só ficou parada lá, só que olhava para tudo e qualquer lugar, sabe por que? Porque a lágrima estava ameaçando cair e ela não queria que ninguém visse, principalmente ele, vai saber qual podia ser a reação do homem Eu me agarrei àquela imagem, coloquei na minha cabeça discreta, ela conseguiu demonstrar o seu amor e preocupação tentando esconder aquela lágrima, eu tomei aquilo como fôlego Na verdade, eu não descobri o que aconteceu para meu pai descontar a sua raiva em cima de mim daquele jeito, me deixando marcas. Normalmente a coisa ficava em palavras e só isso, mas decidi deixar pra lá Nos dias seguintes eu tentei não causar problemas, não chamar a atenção, não fazer absolutamente nada que pudesse atiçar a fera e me afundei cada vez mais no meu mundo de Alice no país das maravilhas, nele e nas cartas… Eu não tinha me esquecido daquilo, as cartas que o menino me pediu… eu pensei muito em como deixar aquilo mais especial, foi por isso que saiu a ideia daquela marca. Lógico que eu nunca contei a ninguém, não queria correr o risco de até isso ser tirado de mim, tudo o que eu pensei, o que eu fiz, ficou comigo e somente comigo Eu tinha vários giz de cera ao meu alcance, acho que era umas das únicas coisas que eu conseguia sem nenhum esforço do meu pai, na verdade era uma troca, eu fazia tudo o que ele me pedia, sem reclamar e ele me dava algumas caixas de giz de cera e lápis e folhas de papel canson, próprias para desenho, mesmo me dizendo que aquilo tudo era uma baboseira, que não adiantava eu ter talento porque só pessoas com influência conseguiam ter essas profissões que não faziam diferença para o mundo Não fazia para ele, no caso A minha ideia foi a seguinte… eu peguei o giz de cera marrom, porque era a cor que mais se aproximava àqueles brasões dos nobres do passado, quebrei em pedaços pequenos, coloquei em uma colher e aproximei ela do fogo baixo, isso depois de ter escrito tudo o que eu queria no pedaço de papel e deixei derreter Depois disso, coloquei a carta no envelope, fechei e selei com aquele giz de cera derretido, esperei secar um pouco e coloquei um símbolo nele. Era a primeira letra do meu nome, o “V” de Valentina, só que como eu gostava de arte, fiz como se fosse uma letra de caligrafia fina Eu estava muito ansiosa para colocar a carta no lugar combinado e mais ansiosa ainda porque não tinha certeza de que o menino que eu ainda nem sabia o nome se lembrava do nosso combinado, eu escrevi a carta de noite, com o fogo de um vela iluminando o meu quarto, não queria que ninguém soubesse o meu segredo No dia seguinte, como eu ia e voltava com o ônibus que a prefeitura disponibilizava para os alunos mais carentes, dei um perdido no motorista e fui direto para o local combinado. Parque do ibirapuera, um dos parques mais famosos da cidade de São Paulo, aquele que as pessoas usam para fazer seus exercícios matinais, encontros sociais, piqueniques entre famílias Eu ainda estava com um pouco de dúvidas com tudo aquilo, criança normalmente tem muitas dúvidas na cabeça né, mas continuei e deixei o papel exatamente no lugar onde ele tinha falado, “perto do bebedouro, em baixo de um arbusto específico, num vão de concreto no chão, ali não tinha perigo de ninguém ver e da chuva levar embora E foi só aquilo, fui, deixei e depois, parti de volta para a minha realidade, sem ninguém perguntar o que uma menina de dez anos estava fazendo sozinha, em um parque extremamente movimentado da cidade, acho que as pessoas estava mais preocupadas em si mesmas do que comigo Agora era só voltar no dia seguinte e ver se eu já teria a minha resposta, vê se minha ansiedade não estava tomando conta de mim…
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