Sicília, Itália.
Persia, 14 anos.
— Persia, não finja que eu não estou falando com você. — Deméter estava furiosa ao meu lado, o ar apressado que deixava sua boca demonstrava que sua paciência ficava cada vez mais escassa com o passar do tempo dissertando sobre o mesmo assunto maçante.
Mais um pouco e o verde de seus olhos se transformariam em fogo latente.
— Eu só estou… cansada.
— Eu é quem me sinto cansada de falar com você como se fosse um gravador. Eu já expliquei milhares de vezes. — Dezenas delas, mas acho que nem mesmo se minha mãe resolvesse falar mais algumas milhares de vezes, eu conseguiria entender com razão e obediência a segurança que já me parecia exagerada. Acho que toda mãe procura proteção para com seus filhos, mas o que Deméter fazia comigo era completamente incompreensível, visto que ela não tinha limites e muito menos travas.
Eu simplesmente não conseguia encontrar razão em suas alegações.
Ela me protegia do mundo enquanto eu só queria que me protegessem dela mesma.
— Eu quero ter um pouco mais de liberdade como as meninas do Éden. — Ela retorceu o rosto em uma careta azeda enquanto seus cabelos se remexiam à medida que ela me repreendia balançando sua cabeça em uma ação negativa.
Nada do que eu fazia estava certo.
Nada do que eu fazia prestava.
A repreensão de minhas ideias era algo certo quando o encorajamento de minha mãe havia virado um fantasma entre nossas conversas.
— Elas fazem… sexo por dinheiro.
— Eu falo sobre liberdade.
— E eu sobre segurança. É melhor assim, sabe quantas meninas não tem metade do que você tem? — Seus dedos finos dentro da luva de camurça tocaram meu queixo quando tudo o que meus olhos queriam eram tocar o chão do carro. Ao lado de fora da estrada só havia neve e neblina. O motorista tentava ser cauteloso para não despencar de nenhum precipício ou entrar em algum lago.
— Eu me sinto sufocada.
— Espera só pra ver como é a vida de casada.
Duvido muito que ele soubesse onde estávamos.
— Afrodite tem um marido e é livre… — Deméter não me deixou terminar.
— Afrodite é uma vagabunda que trai o marido sempre que vê um homem diferente. Não se compare a ela, ao menos não na minha frente, Persia. Tenha respeito por sua mãe.
— Não vou me casar com homem algum quando nem ao menos pude desfrutar da minha liberdade.
Ela desferiu um soco contra o banco do passageiro vazio, me olhando ainda mais furiosa do que em outras ocasiões.
Deméter era a mais calma de todas as pessoas que eu já havia conhecido, mas quando o assunto era sobre mim, ela desenterrava uma raiva e determinação jamais vista antes. Ela já tinha tarefas demais para com o Éden e mesmo quando o mundo sacudia debaixo de seus pés, ela continuava com a voz calma, feição serena e paz inabalável para solucionar qualquer pendência que jogavam em seu peito, mas o meu nome em seus ouvidos era como uma chave que destrancava o maior de seus medos.
— A conversa acabou, Pérsia.
Nos calamos e o carro parou.
Minha mãe aguardou a partida do motor, mas tudo que o motorista fez, foi virar a chave e contemplar o silêncio no meio da neblina que densificava, lambendo o carro, deixando os vidros úmidos.
— Sra., acho que o motor esfriou demais! — Antônio coçou seu bigode branco com a ponta dos dedos, ainda acho que seja uma tentativa sutil de jogar seu charme sobre Deméter mesmo que ela não perceba.
Nada passa despercebido diante dos meus olhos, nem mesmo os flocos de neve.
— O motor congelou? Impossível, Antônio. O carro estava ligado!
— Mas está frio, Sra. Deméter — ele insistiu. — Se a Sra. puder me ajudar, acho que consigo jogar um pouco do meu café quente sobre ele.
— Onde estamos?
— Bom, Sr Demeter, acho que próximo de Villafrati.
— Acha? — Ela estava idignada.
Seu Antônio saiu do carro e minha mãe saiu logo depois lançando-me um olhar impaciente com a premissa de: não saia do carro.
O estofado estava gelado e nem mesmo o vestido comprido de moletom e o casaco grosso eram capazes de me proteger do frio.
O inverno da Sicília era imperdoável com aqueles que vagavam pelas ruas, era impassível como o fogo e violento como o mar. Ruas vazias e nevascas intensas assolavam toda a cidade, e mesmo que o inverno fosse a estação mais curta de todas, era sempre tão agressivo que era memorável a cada ano que passava.
Eu m*l podia enxergar Antônio do lado de fora. Sua silhueta era somente um borrão dentre a névoa, e as reclamações de Deméter ecoavam por todo lado como se ela estivesse por toda parte.
Eu nunca gostei de ficar tanto tempo quieta e parada, era como se cada célula do meu corpo se agitasse ainda mais dentro do meu ser, suplicando para fazer algo, andar pra algum lugar ou estar em movimento.
Os minutos se passaram e lá eles continuaram.
E eu também teria continuado a encarar o volante úmido se uma figura escura não tivesse surgido entre o vapor do sereno.
As orelhas longas e os olhos de ébano me viam de alguma forma pelo vidro fumê do carro e eu não sabia disso porque podia ver a mesma coisa que ele, mas seu olhar estava certeiro no meu.
Deméter não percebeu quando abri a porta e eu só percebi que estava fora do carro quando senti a umidade na meia de minhas sapatilhas sobre a grama encharcada de neve.
Quando o animal se virou e adentrou o nevoeiro, eu percebi que era um cachorro.
O que um cachorro estaria fazendo naquela nevasca?
Meus passos foram longos e só depois do décimo, quando olhei pra trás, percebi que o que havia de mais próximo a mim, era o gramado e a névoa.
As possibilidades eram muitas.
Eu poderia gritar à minha mãe e então ela e Antônio descobririam que saí na surdina pela outra porta do carro, e o problema não seria descobrir que saí, mas sim o que ela faria depois de saber.
Ou eu poderia andar para o lado contrário até encontrar novamente a porta do carro e entrar da mesma forma que saí: sem que ela visse.
Os minutos passaram rápido, ao menos foram, quando contei os segundos na cabeça à medida que andava sem saber pra onde, cegamente, sem saber onde estava o norte ou o leste.
A sombra do cachorro novamente causou um redemoinho no nevoeiro, chamando minha atenção, fazendo com que meus passos fossem ainda mais apressados para alcançá-lo.
O sereno denso começou a se dissipar, dando visibilidade de metros à frente para olhar a floresta que se formava diante de mim.
Era uma subida íngreme coberta de gelo e árvores de pinho tão altas que meus olhos não eram capazes de alcançar seu topo.
O cão preto agora nítido era muito maior do que quando pude vê-lo através do vidro do carro. Seus olhos tão escuros quanto seus pelos curtos exalavam uma lealdade familiar, seu porte atlético e cabeça estavam erguidos à medida que seu r**o longo sacudia encostado no chão.
Eu me aproximei encarando seus olhos que estranhamente nunca pareciam deixar os meus.
A gargantilha em seu pescoço era grossa e brilhante demais para ser lataria, era de prata pura. O letreiro elegante que parecia ter sido escrito à mão era legível e destacável em sua superfície lisa.
Cerberus.
Talvez seu dono estivesse procurando por ele.
— Seu nome é Cerberus? — Passei os dedos nos pelos de sua orelha e ele se curvou para provar melhor o meu carinho.
Ele era manso.
Deitou sua cabeça de lado quando meus dedos desceram por seu pescoço, agarrando levemente a pele do local.
— Você se perdeu do seu dono, não é?! — Ele, então, pareceu entender.
O som de galhos se quebrando estava distante, mas o que quer que fosse se aproximava, rápido.
Cerberus andou alguns metros montanha acima e parou de forma ereta e responsável em direção ao som, como se soubesse exatamente o que ou quem estava a se aproximar.
O medo foi maior que a curiosidade, e mesmo que fosse um animal grande, eu não podia deixar o cão ali, parado, esperando pacífico por algo que talvez nem mesmo ele soubesse o que era.
Quando dei o primeiro passo, senti algo me puxar pelo colarinho do vestido por dentro do enorme casaco que eu usava.
Não entendi de início.
Mas quando senti minhas costas baterem contra a neve, encontrei os enormes cabelos vermelhos e olhos azuis de minha mãe quase face a face.
— Persia!!! — Furiosa era uma mera palavra para a forma que ela estava agora.
Me sentei para então tentar levantar.
Deméter encarou Cerberus sentado na neve de costas para nós, mas com uma surpresa extraordinária não sustentou muito seu olhar nele, e sim sobre os galhos que se quebravam à medida que alguém se aproximava.
— Mãe…
— Cale a boca. — Ela me puxou pelo braço e adentramos o nevoeiro novamente.
— O cachorro… não podemos deixá-lo lá.
Não sei se era impressão minha, mas estranhamente o meu sumiço não era o que a preocupava, ao menos não agora.
— Ele não nos pertence — sibilou.
— Ele se perdeu do dono. — Ela abriu a porta do carro, praticamente me jogando sobre a poltrona, e bateu com tanta força, que mais um pouco, a porta despencaria da lataria.
— Ele está onde deveria estar, nós é que não deveríamos estar aqui. — A seriedade nociva na qual ela disse me assustou não era atrevimento ou resposta na ponta da língua.
Seu Antônio estava suando em sua poltrona, enquanto seus dedos calejados apertavam o volante de couro, seus olhos rolavam por todos os lugares, como se a menor partícula de ar do lado de fora pudesse fazer m*l a ele.
— Aqui é uma propriedade particular? — Eu sabia que ela estava me ouvindo, mas estava nervosa o suficiente para ignorar minha pergunta, porque sabia que sua resposta não importava no momento.
— Escute bem, eu prometo que na próxima vez que você me desobedecer, eu vou fazer questão de simplesmente trancar você por meses em seu quarto, e tudo que verá, será o sol pela janela minúscula dele.
Dessa vez, não era blefe.
Suas palavras não emitiam ameaças, mas sim promessas.
— Você me entendeu, Persia? — ela perguntou.
— Sim. — Era tudo que eu podia responder.
— Trate de sair desse inferno, Antônio!
O motorista deu partida na pequena estrada no meio do nada, mostrando o quanto o motor do carro se empenhava para acelerar e esquentar o máximo que podia para nos levar para casa e antes que virássemos para trás da próxima montanha à frente, eu vi de longe, Cerberus, no mesmo lugar de antes.
Mas diferente de antes, ele não estava só.
(...)