Chapter 01.
Virgílio
Piano Battaglia, alta montanha, Sicília, Itália.
Há quem diga que o d***o chega no inferno quando as brasas de fogo tocam ao chão, mas aqui, nessa história, o d***o reinou desde os dias frios e escuros, quando a neve se misturou com as fuligens dos corpos queimados ou quando o sangue quente dos pecadores derreteu a neve infame.
Mesmo que todos o conhecessem como a estrela da manhã, ele se encontrava em cada parte escura da cidade onde se via o ponto de partida, mas nunca se sabia em qual profundidade estava o fim.
No começo Héctor estava lá, à espreita na sombra, julgando os erros daqueles que o traíram sobre seu chão.
Se ligar uma lâmpada a luz do dia, ela não se destacará perante a luz do sol, mas se acendê-la na escuridão, ela irá brilhar como nunca, esse era a estrela da manhã depois de ter culminado a escuridão até onde os olhos não alcançassem mais.
Eram poucas as vezes que se via Héctor perder as rédeas do controle entre a raiva e o ódio, era uma pequena linha fina como água e vinho, tão próximos, mas ao mesmo tempo distantes. Era um sorriso de felicidade que não custava a se tornar um sorriso de escárnio enquanto ele fechava o punho com tanta força que éramos capazes de escutar seus ossos da mão estalando.
A neve era impiedosa, e ainda que muitos ousassem dizer que não, ela queimava muito mais do que o fogo, porque diferente do próprio fogo, ela começava queimando os ossos, te destruindo de dentro para fora.
Dos três irmãos, Héctor era o mais frio deles, em termos de punições era o mais severo, ele fazia as mulheres de vinho, e seus homens de irmãos.
O senhor dos acordos, o dono de toda a Sicília.
O couro de seu sapato estava imerso em sangue fresco, que dentro de poucos minutos se tornaria parte do gelo debaixo de nossos pés, seu sobretudo estava ensopado de neve e sangue, mas aquilo talvez fosse a última de suas preocupações.
— Me dê a faca — ele pediu para
um de seus homens parados à sua esquerda. Todos à espera de uma resposta, todos à espera de apenas um comando.
Héctor tinha seus cabelos ensopados de suor, ansiedade e sede por respostas. As maneiras mais convencionais de se portar diante de uma traição estavam completamente fora de seus domínios.
Ele era um homem que não gostava da morte, deixava aqueles que o traíam na porta do inferno só para que o d***o os viesse buscar pessoalmente, pois somente um louco recusaria um presente dos 3 irmãos da Itália, ainda mais vindo do mais perigoso deles.
— O quarto já está pronto, Senhor. — Antônia surgiu no limiar do porcelanato do pátio onde a neve começava a se acumular no chão, seu superior acenou com a cabeça enquanto seus olhos apenas miravam o chão, e logo mais ela entrou pelo mesmo caminho de onde viera.
— Eu… já disse que não sei. — Junto com suas palavras, novas remessas de sangue escapuliram pelas beiradas de sua boca, sangue e suor junto de neve escorriam por seu rosto, manchando ainda mais sua blusa branca.
— Não sei se percebeu mas mentir pra mim é a pior das suas escolhas. — Héctor lambeu a lâmina da faca em sua mão. — Eu sei que precisou dar seu voto de devoção a quem quer que você tenha escolhido seguir, sei que se me contar e mesmo que eu deixe você ir embora, quem quer que seja ele, vai te matar. — Ele agarrou seus cabelos pela nuca, arrastando-o pela neve como se o corpo do homem moribundo fosse apenas um pedaço de papel no meio do frio. Jogou seu corpo nas margens do lago, e em um movimento rápido, cravou a lâmina de prata da faca na coxa do traidor. Quando este abriu a boca para grunhir pela dor que surgiu quando nem mesmo a neve foi capaz de adormecer sua carne, Héctor agarrou sua cabeça e afogou dentro das águas escuras do lago Estige.
Ele puxou seu braço, olhando o ponteiro ligeiro pelo relógio preso nele, batida após batida, tentativas de respiração sincronizadas abaixo da água, tentativas de salvar a vida que foi marcada pela desgraça no momento em que a decisão de traição foi escolhida pelo homem.
— Por favor!!!!! Por favor!!!! — o homem gritou, quando ele puxou sua cabeça para o ar gelado.
Héctor tinha um sorriso cheio de perversão, resultado dos pensamentos cruéis que habitavam sua cabeça, lugar onde ninguém nunca se atreveu a ir e ainda que se atrevessem, não acho que voltariam lúcidos de lá.
— Eu não vou te matar, mas isso não significa que você não vai morrer — disse, segurando no cabo da faca, rodando a lâmina, causando gritos de pânico no homem que tentava puxar a perna em uma tentativa de aliviar a dor, mas Héctor só a enfiava cada vez mais. Ainda que o frio causasse dormências, havia adrenalina demais em suas veias para esfriar seu corpo. — Na próxima vez que eu pôr sua cabeça embaixo da água, eu só vou permitir que você emerja quando seus pulmões estiverem cheios de água podre.
— Ág…água podre?
Ele retirou a faca de sua coxa, limpando o sangue da lâmina na face do homem.
— No fundo desse rio há uma quantidade considerável de corpos em decomposição, no fundo desse rio descansa aqueles que não tiveram a capacidade de serem leais ao menos em seus últimos suspiros de vida. — Aproximou o rosto ensanguentado das águas calmas do rio. — Eu vou trancar você dentro de um quarto, dando a você o que comer, e o que beber, enquanto seus pulmões necrosam cheios de líquido cadavérico. Eu vou ouvir da minha sala, em cinco dias, você lutando para respirar, seus brônquios entrando em combustão procurando por oxigênio, mas a única coisa que eles terão será secreção e infecção. — Ele respirou fundo. — Ou você me dá a informação que eu quero agora ou pode pensar durante os cinco dias enquanto seu corpo apodrece.
— Eles vão me matar…— Héctor não deixou que ele terminasse, suas últimas palavras foram debaixo da água.
Ninguém ousava interromper.
O senhor dos acordos não agia de maneira precipitada.
Ele sempre estava certo, no lugar certo e na hora certa, não importa o quanto parecesse errado.
Seus homens confiavam suas vidas a ele, eram vários corpos em um só coração e propósito.
Ele não punia para impor respeito entre aqueles que o seguiam.
Todos lhe respeitavam porque já conheciam as histórias sobre suas punições.
— Héctor. — chamei sua atenção e seu olhar estava distante.
— Onde está Cerberus? — Seu olhar passou por entre todos nós.
— Acredito que entre as árvores na neve. — Dei alguns passos, vendo meu sapato afundar na neve. — Conseguiu alguma coisa?
— Nada mais do que súplicas e pedidos.
— Ele não vai falar…— murmurei, contando-lhe o que ele já parecia saber.
— Sei que não.
Me aproximei mais ainda.
— Então por que… vai continuar?
Ele puxou o homem que expurgava água preta pela boca, jogando-o sobre a neve. Encarou seus homens de terno preto.
— Botem ele dentro do quarto — ordenou. Seus olhos da cor da neve voltaram pra mim. — A traição não foi um de seus maiores crimes, Virgílio.
— Por que não mandá-lo para seu pai? — sugeri.
Ele andou pela neve em passos largos, deixando o rastro de sangue em cada uma de suas pegadas. Suas mãos sujas encontraram o bolso de sua calça, e sem se importar com minha opinião ou conselhos ele disse:
— O que seria do inferno se eu mandasse todos os traidores para o céu? — ele sugeriu, enrustindo a ironia e cinismo.
— Você os mata de uma forma… bárbara, Héctor.
— Uma morte bárbara para um pecado bárbaro.
— O que ele fez?
Ele se aproximou de mim.
Seus dedos puxaram a extremidade da gola em meu paletó, apertaram minha gravata de uma forma que me manteria ereto caso não quisesse sufocar, agarrou a gola de meu colarinho, aproximando meu rosto de seu nariz. Ele era alto, mas não mais que eu.
— Me ouça com atenção. — E eu estava, porque sei que se não ouvisse, seus homens me fariam ouvir, e não seria com tanta delicadeza quanto Héctor usava agora. — Guarde seus conselhos e atrevimentos para meus irmãos e meu pai. A Sicília é o meu inferno particular, e cabe a mim botar a ordem da maneira que eu achar adequada. — Ele se afastou. — Se eu achar que nosso amigo aqui, deve ter os pulmões necrosados, então ele terá. Estamos entendidos, Virgílio?
Uma das regras principais em sua casa era: jamais o contrarie, porque no menor dos erros de Héctor há sempre uma grande quantidade de acertos.
— Sem dúvidas, estamos. — Sorriu sem mostrar os dentes.
— E então, vai continuar como meu convidado até a primavera?
Não havia motivos para ficar.
Não mais.
— Agradeço a hospitalidade, Héctor. Mas não tenho bons pressentimentos para essa primavera, me parece que ela será mais…conturbada dessa vez.
Ele riu.
— Tempos difíceis tendem a exigir decisões difíceis.
— Vejo você em breve? — A neve estava se intensificando à medida que os segundos passavam.
Antes que ele sumisse para dentro de sua mansão, aquele sorriso temeroso suspendeu-se em seu rosto, dando não só a glória da beleza quanto a glória do medo também.
— Eu estou em todos os lugares, Virgílio.