Arcanjo Narrando
Aqui de cima, a vista do morro é sempre a mesma, mas nunca deixa de ser imponente. Dá pra ver tudo: o mar lá longe, a Zona Sul brilhando de noite, como se fosse outro mundo. Mas o que ninguém enxerga, ou finge que não vê, é o corre que a gente vive aqui em cima. A realidade é outra, tá ligado? É cada um por si, segurando o que pode pra não cair.
Sou Gabriel, mas no morro ninguém me chama assim. Aqui sou o Arcanjo. Ganhando esse vulgo não foi à toa, não. Já fiz muito pra chegar onde tô. Sangue, suor, lágrimas... e algumas coisas que nem dá pra contar. O bagulho aqui é intenso, parceiro. Ser frente do Vidigal não é brincadeira. É decisão 24 horas, não pode vacilar.
Minha vida nunca foi fácil. Cresci na favela, vendo meu pai sumir na cachaça e minha mãe ralar pra botar comida na mesa. Com 12 anos, já tava descendo pro asfalto pra vender bala no sinal. Com 15, entrei pro bonde. Não porque quis, mas porque precisei. O tráfico é assim: te puxa antes mesmo de você perceber.
Hoje, sou o que sou. Frente. O cara que todo mundo olha quando o caldo engrossa. Mas, cê acha que isso é moleza? Nem fudendo, irmão. O morro é um tabuleiro de xadrez, e cada passo é pensado. Tem que ser ligeiro, sacar quem é aliado de verdade e quem tá só esperando a hora de te ferrar.
— Arcanjo, o bagulho tá ficando feio ali na entrada da Rua 2 — grita o Guga, um dos moleques que corre comigo.
— Já falei pra reforçar o posto lá, c*****o! Cadê os arrombados do turno? — respondo, impaciente.
Minha rotina é essa: resolver merda atrás de merda. Mas, ao mesmo tempo, tem uma adrenalina que vicia. É f**a explicar.
De noite, quando o silêncio toma conta do morro, eu paro pra pensar em tudo. Já vi gente demais se ferrar nessa vida, mas sair dela é complicado. O dinheiro, a “moral” que você ganha, a sensação de poder... tudo isso é como uma corrente. E, aqui no Vidigal, corrente não quebra fácil.
Minha responsa como frente é pesada. Não tô só cuidando do corre do pó e da maconha, não. Tem a comunidade também. Qualquer coisa que aconteça aqui, o povo vem direto em mim. Falta água? Chamam o Arcanjo. Polícia subiu? Cadê o Arcanjo? Uma tiazinha perdeu o botijão de gás? Pede pro Arcanjo resolver.
E eu resolvo. Sempre resolvo.
— Ô, Arcanjo! Tem uma galera lá no campinho querendo saber se vai rolar o futebol beneficente no domingo.
— Claro que vai, p***a! Já organizei tudo. Vai ter uniforme novo pros moleques, medalha e 2 mil reais pro time vencedor. Só manda avisar o povo pra não vacilar com a hora.
Aqui no Vidigal, a favela nunca dorme. De dia, é o movimento do comércio, o sobe e desce do povo carregando sacola, as crianças jogando bola no campinho. De noite, é o corre pesado, o entra e sai dos "cachorro" nas vielas, o radinho sempre chiando. A favela pulsa, e eu tô no coração desse bagulho todo.
e a responsa que carrego não é brincadeira. Tô aqui pra segurar o morro, manter a ordem, e garantir que a máquina continue rodando. Isso significa que não posso piscar. Vacilou, é caixão e vela preta.
— Guga, cadê o relatório do movimento de ontem? — pergunto, já meio irritado.
O Guga, meu braço direito, tá sempre na correria comigo. Moleque ligeiro, de confiança. Mas, às vezes, ele dá umas vaciladas.
— Tá aqui, chefe. Só tava revisando os números — ele responde, jogando um caderno em cima da mesa.
Abro e dou uma olhada. Tá tudo ali: entrada, saída, a quantidade de mercadoria que rodou. Aqui no morro, a gente tem mais organização que muito empresário do asfalto.
— Tá certo. Mas vê se não me enrola da próxima vez, c*****o. O tempo aqui é dinheiro.
Ele ri, meio sem graça. O Guga é assim, não leva tudo a ferro e fogo, mas sabe a hora de ficar sério. Crescemos juntos. Enquanto eu vendia bala no sinal, ele corria atrás de lata pra vender no ferro-velho. A gente se conhece desde sempre, e eu sei que posso contar com ele pra qualquer parada.
— E aí, Arcanjo, quando tu vai sossegar o r**o e arranjar uma mulher? — ele pergunta, rindo.
— Tu tá de s*******m, né? Com essa vida aqui? Mulher nenhuma vai querer segurar o rojão. — Respondo, acendendo um cigarro e soltando a fumaça devagar.
A real é que eu nem tenho tempo pra pensar nisso. O morro consome tudo. Não to dizendo que eu não como ninguém, isso é impossivel com o tanto de mulher que vem pra nós aqui. Eu nem preciso procurar, elas mesmo ja vem na minha direção. Tem umas que vem numa intenção que você ver no olhar o que elas querem..
Minha relação com o dono do Vidigal, o Renê, é um caso à parte. O cara é respeitado, tanto aqui quanto em outras áreas da cidade. Ele sabe o que faz, mas também não é de passar pano pra erro. Foi ele que me puxou pro corre de verdade, quando viu que eu tinha potencial.
— Arcanjo, tu tem a mente afiada, moleque. Vai longe se não vacilar. Mas ó, o jogo aqui é sujo. Se não souber dançar conforme a música, tu tá fudido. — Ele me disse isso quando me botou como frente.
Desde então, carrego essas palavras comigo. Renê é mais que um patrão. É quase um mentor. Mas a gente sabe que nessa vida, confiança só vai até certo ponto. Hoje, eu sou o braço direito dele. Amanhã, quem sabe? Eu não sei nem se vou estar aqui. Aqui, ninguém é insubstituível.
Com meus pais, a história é outra. Minha mãe, Dona Clara, é o coração da minha vida. Sempre foi ela quem segurou as pontas quando meu pai tava bêbado demais pra lembrar que tinha família. Ela é aquela típica mãe de favela, tá ligado? Forte, guerreira, mas com um sorriso que ilumina qualquer dia r**m.
— Gabriel, tu tá comendo direito? Não quero meu filho magro por aí, não. — Ela me diz sempre que me vê.
— Tô sim, mãe. Relaxa, não vou morrer de fome, não. — Respondo, mesmo sabendo que ela nunca vai parar de se preocupar.
Meu pai é outra história. A relação com ele sempre foi complicada. Quando ele tá sóbrio, até dá pra trocar ideia. Mas essas ocasiões são raras. Hoje em dia, a gente quase não se fala.
— Tu tá vivendo uma vida perigosa, Gabriel. Isso vai acabar te matando. — Ele falou isso uma vez, depois de umas doses de cachaça.
— E tu acha que beber todo dia vai te levar aonde, pai? — Retruquei, sem paciência.
O assunto morreu ali, como sempre.
No dia a dia do morro, o corre é constante. Cada decisão que eu tomo tem que ser calculada. Um passo em falso pode custar caro. Como frente, eu tenho que lidar com tudo: desde os desacertos entre os moleques até as tretas com os policiais.
— Arcanjo, os PM tão subindo. Parece que tem operação vindo aí. — Um dos moleques me avisa no rádio.
— Fica na contenção, avisa geral pra se esconder. Não quero ninguém vacilando. E reforça o túnel do beco! — Respondo, já pensando nos próximos passos.
Essa é a minha vida. Sempre com um olho no presente e outro no futuro, tentando prever o que vai dar merda antes que aconteça.
Mas, apesar de tudo, eu não sou só mais um traficante. Não é só sobre o pó e a grana. Aqui no Vidigal, a comunidade conta comigo pra resolver o que o governo não faz.
— Arcanjo, acabou o gás do campinho. Tu pode ajudar? — Uma tiazinha me pergunta um dia, enquanto tô descendo pra reunião com Renê.
— Deixa comigo, tia. Hoje mesmo resolvo isso. — E resolvo mesmo.
Pra muita gente, eu sou mais confiável que os políticos que aparecem aqui só em época de eleição. E, sinceramente? Isso diz muito sobre como as coisas funcionam nesse país.
De noite, quando o morro tá mais calmo, eu fico pensando na minha vida. Será que vale a pena? Todo esse corre, todo esse risco? A verdade é que eu nem sei mais como seria viver de outro jeito. A adrenalina, o respeito, o dinheiro... tudo isso é um vício.
— Guga, tu acha que tem saída pra gente? — Pergunto uma vez, enquanto bebemos uma cerveja no alto do morro.
— Sei lá, mano. Acho que a saída é só o caixão. — Ele responde, meio pensativo.
Essa resposta me assusta mais do que eu gostaria de admitir. Mas ele tá certo. Aqui no Vidigal, a vida é no limite. E eu só espero que, quando minha hora chegar, eu tenha deixado alguma coisa boa pra trás.
Porque, no fim das contas, o que a gente mais quer é ser lembrado. E eu? Quero que lembrem de mim como o cara que segurou o morro, que não deixou a favela cair.
Mas, por enquanto, o corre continua. E eu tô aqui, pronto pra enfrentar o que vier. Porque ser Arcanjo não é só um vulgo. É uma missão.