Arcanjo Narrando
A noite já tinha caído e o morro tava num silêncio estranho, só com o sussurro do radinho dos moleques na boca e o latido distante de algum cachorro inquieto. Eu tava descendo em direção à casa do Guga, ainda sem acreditar no que ia fazer. p***a, eu, Arcanjo, indo aprender etiqueta e bom comportamento. Que fase! Mas fazer o quê? Se eu queria chegar junto na Lívia sem assustar a mina, precisava passar despercebido. E, claro, só a Letícia pra me ajudar com essa missão.
As luzes fracas do beco iluminavam a entrada da casa do Guga, uma daquelas construções simples de laje, com a porta meio torta e uns adesivos velhos na parede. Parei em frente, dei duas batidas leves e depois mais duas mais fortes, uma espécie de código que a gente inventou pra não tomar susto no meio da noite.
— Aí, quem é? — a voz do Guga veio abafada, meio sonolenta.
— Sou eu, c*****o, o Arcanjo. Abre essa p***a aí antes que eu chute a porta.
A porta rangeu e o Guga apareceu, sem camisa, cabelo todo amassado, cara de poucos amigos.
— Cê é doido, Arcanjo? Essa hora da noite vindo me atormentar?
— Cala a boca, viado. Cadê a Letícia? Preciso conversar com ela. — Passei por ele sem cerimônia, entrando na sala estreita.
A Letícia tava sentada no sofá, mexendo no celular, quase cochilando. Ao me ver, arregalou os olhos.
— p***a, Arcanjo, tu não podia avisar não? Quase levei um susto.
— Desculpa aí, dona professora. — Me joguei numa cadeira de plástico que tinha ali. — Preciso da tua ajuda, lembra? Não vou dormir enquanto não aprender o básico pra não pagar mico na frente da Lívia.
Guga fechou a porta resmungando e se encostou na parede, cruzando os braços.
— Isso vai ser divertido. Vou pegar uma cerveja e ficar vendo o show.
— Tu cala a boca, Guga. — Apontei o dedo pra ele. — Se não atrapalha, já ajuda.
Letícia deu um suspiro, largando o celular no colo.
— Arcanjo, por onde a gente começa? Cê fala igual um pedreiro bronco, cheio de palavrão. A Lívia não é dessas. Ela é fina, tu vai ter que mudar essa postura.
— Eita, calma também, né? — Ergui as mãos. — Não é pra eu virar outro ser humano, é só pegar umas manhas. Não posso sair xingando todo mundo, né? Mas também não vou fingir que sou inglês.
— Não é questão de fingir que é inglês, animal! — Letícia riu, jogando o cabelo pro lado. — É só não chamar ela de “mina” ou “p***a” logo de cara. Usa palavras neutras, tipo “você” no lugar de “tu”, evita “c*****o” a cada frase.
Guga não perdeu a oportunidade:
— Ih, Arcanjo, já não pode falar “p***a”, “c*****o”, “mina” e nenhuma gíria? Vai sobrar o quê do teu vocabulário? Hahaha!
— Vai tomar no cu, Guga! — Rosnei, mas Letícia me encarou com um olhar de reprovação. — Tá vendo, é difícil. O maluco provoca.
— f**a-se o Guga. — Letícia estalou a língua. — Concentra. Vamos supor que a Lívia chega em você na festa, toda bonita, e diz “Oi, tudo bem?” O que você responde?
Cocei a nuca, pensativo.
— Ué, eu falaria: “E aí, linda? De boa?” Não pode, né?
— Não, c****e. — Ela revirou os olhos. — Diz algo simples, tipo: “Oi, tudo bom? A festa ta legal, né?” Entendeu a diferença?
— “A festa ta legal, né?” — repeti devagar. — Parece papo de mané. Mas tá, vou tentar.
Guga deu uma golada na cerveja que ele pegou sem eu ver e comentou:
— Cara, tu vai ter que suar. Esse teu jeito de falar não combina com palavriado de patricinha não, mano.
— Cê acha que eu não sei? — retruquei, impaciente. — Letícia, e se eu tentar parecer um cara que lida com eventos? Tipo, “Eu trabalho com organização de eventos e tal.” Assim não suspeita da minha origem, né?
— Isso, boa! — Letícia sorriu, satisfeita. — Diz que você é produtor de alguma parada, ou que tem uma microempresa. Ela adora gente empreendedora. Mas nada de dizer que tu é um traficante no morro, p***a! Inventa algo simples de você falar: “Ah, eu cuido da produção de shows, feiras e pequenas festas privadas.” Algo assim.
— Beleza, vou decorar esse lance. — Fechei os olhos, tentando gravar. — “Trabalho com produção de eventos particulares, garantindo entretenimento de qualidade.” c*****o, quase vomitei falando isso.
— Eu sei que é estranho, mas se você ficou doido assim e quer conhecer ela de perto, melhor né? — Letícia ergueu a sobrancelha.
— Pô minha parceira, o bagulho vai ser louco — falei respirando fundo — Mas tá, quero impressionar. Então beleza, sem gíria, fala mansa, nada de “p***a” e “c*****o” a cada frase.
Guga se aproximou, apoiando o cotovelo no encosto do sofá.
— E se a mina perguntar onde tu mora? O que tu vai dizer? Não vai falar que é no alto do Vidigal, né?
— Ih viado, é verdade. Não posso dizer que moro no morro, ela pode associar. — Passei a mão no queixo, pensando. — Digo que moro na Zona Sul também, mas não precisa detalhar, certo?
— Fala que mora temporariamente num flat, ou que tá sempre viajando por causa do trabalho. — Letícia sugeriu, animada. — Assim ela não insiste.
— Bom, boa. — Assenti, tentando guardar cada dica. — E se ela der corda? Se ela começar a falar sobre moda, roupa, viagem… Eu não manjo nada disso, p***a.
— Arcanjo, para de chamar todo mundo de “p***a”. — Letícia deu um tapinha na minha perna. — Presta atenção: se ela falar de moda, faz cara de interessado e pergunta mais, diz que seu mundo é outro mas gosta de aprender com pessoas sofisticadas. Se ela falar de viagem, diz que você adoraria conhecer novos lugares, que tá planejando visitar uns destinos. Inventa, mas sem exagerar.
— É, só não diz que vai pra Disney comprar armamento e muito menos que as unicas viagens que você fez foi pra colombia buscar cocaína. — Guga debochou, rindo alto. — c*****o, isso vai ser bom demais de ver.
— Guga, se tu ficar tirando onda, vou colocar teu nome no meio. Vou dizer que você é meu ajudante de produção, um peão que só carrega caixa. — Apontei o dedo pra ele, ameaçando.
— Nem fudendo! — ele se afastou, fingindo medo. — Me deixa fora dessa merda.
— Voltando ao assunto, por que ela sabe quem é o Guga. — Letícia chamou a atenção — finge que é culto. Você não precisa citar autores que não conhece, mas evita falar só de funk proibidão. Diz que gosta de música variada, que tem escutado uns artistas modernos. Ela curte MPB, essas coisas leves. Diz que admira a cena musical do Rio, que apoia artistas independentes, sei lá. Inventa.
— Beleza, MPB, artistas independentes, cena musical do Rio. Anotado mentalmente. — falei, fingindo escrever no ar. — E sobre comida e bebida? Ela vai servir espumante, uns petiscos finos. Eu posso meter o pé na jaca?
— Pelo amor de Deus, nada de comer igual um morto de fome. Pega a taça de espumante com leveza, dá uns goles, não vira de uma vez. — Letícia fez um gesto gracioso com a mão, como se segurasse uma taça imaginária. — Na hora da comida, pega um petisco de cada vez, come devagar, faz cara de quem aprecia o sabor. Não engole igual aspirador.
— p**a merda, vou ter que me vigiar ate pra comer? Mas tá, tô entendendo o espírito. — Suspirei fundo, meio cansado de tanta regra. — E no papo, posso elogiar a aparência dela, né? Dar uns toques?
— Claro, mas nada de “Nossa, tu tá gostosa pra c*****o, que r**o é esse em”. — Letícia revirou os olhos. — Diz algo tipo “Você tá radiante hoje, essa cor combina com o teu tom de pele.” Coisas suaves, entende?
— Suave… tipo “Radiante”, “combina com teu tom de pele”. — Repeti, fazendo uma careta. — Nunca usei essas palavras na vida, nem sei o que significa mas se é pra conquistar, eu tento.