Val foi até a cozinha, pegou uma garrafa de tequila e posicionou debaixo do braço, pegou dois copos com gelo e rodelas de limão, que já havia preparado, abriu a geladeira e tirou uma latinha de soda com um sorriso debochado no rosto. Satisfeito, seguiu caminho até o quarto 203. Ainda no corredor pôde ouvir o som de um violão entoando uma canção que ele nunca havia escutado antes. Seu peito estufou de orgulho do amigo. Se Eduardo tinha voltado a tocar e a compor, era sinal de que estava se sentindo melhor.
Desde que tinham voltado do hospital Val não pôde deixar de notar o quanto o amigo, já apelidado de Casmurro, havia se ensimesmado. Eduardo quase não falava mais, estava sempre cabisbaixo e desanimado, e muitas vezes parecia perdido em pensamentos.
Como de costume, Val entrou no quarto do amigo sem bater, fazendo com que Eduardo parasse de tocar de imediato.
— Toma aí, nada de álcool para a boneca, finja que a soda é tequila, eu beberei essa latina gostosa todinha por você!
Eduardo aceitou o copo e a latinha de soda.
Val se sentou na cama vazia, que em um universo feliz pertencia a Bianca, e se serviu de tequila, a bebida favorita dele.
— Não deveria estar no Clube comemorando teu aniversário hoje, manezão ?
— Nã... Minha mãe está lá na cozinha fazendo um bolo de chocolate com morangos e um pudim de doce de leite para mim. Falei para os mongolões irem , mas falaram que se nós não vamos, eles também não irão. Devem ter ido comprar um presente para mim, ou pelo menos assim eu espero...
Os dois ficaram em silêncio por um tempo. Val observando Eduardo, e este, por sua vez, se lembrando que essa tinha sido uma noite muito especial entre ele e Bianca...
— Que som é esse que você estava tirando do violão quando cheguei? — Perguntou Val quebrando o silêncio.
— Só um som que criei.
— Não entendo muito de música, mas é muito boa de ouvir, acho que uma das melhores que já te ouvi tocar, vai inscrevê-la no concurso?
Eduardo encarou o amigo com um forte sentimento de dejà vu. Diante do estranho olhar do amigo, Val continuou:
— Ela é mesmo show, mano, estava inspirado, hein! Tem a ver com alguma garota ou está chapado de analgésico?
Eduardo sentiu um frio na espinha. Não era apenas uma sensação de dejà vu, ele já tinha vivido aquilo antes, aquela conversa com Val já tinha acontecido quando ele de fato havia criado Asas de Anjo. Em outro universo, sim, mas também em outra linha de tempo...
Depois de ele finalmente se dar conta que estava apaixonado por ela...
Os pensamentos de Eduardo foram interrompidos pelos rapazes que entraram acompanhados por Glória, que carregava um bolo de chocolate com velas acesas em cima, todos cantando parabéns
Val, como o grande emotivo que era, agarrou a mãe com um de seus abraços de urso, o que fez com que Alex corresse para segurar o bolo antes que caísse.
— Ah, meu filho! — Glória segurava o rosto de Val, que teve que se abaixar muito para que ela o alcançasse. — Seu avô ficaria tão orgulhoso do homem que se tornou! A imagem cuspida dele, devo dizer!
— Hey , grandão, compramos um presente para você!
Renato entregou a Val o embrulho que segurava, Val aceitou aparentando surpresa, ao que Eduardo não conseguiu conter o sorriso cínico que se formou no canto se sua boca.
— Estigma de Ammut? — Disse Val ao desembrulhar o livro que tinha acabado de ganhar. — Caraca! Estou doido para ler esse livro!
— Nós sabemos, você fala nele sempre e nem sequer leu! Pelo menos agora vai saber se é mesmo bom! — Comentou Alex.
— É um presente de nós dois! — Disse Renato, satisfeito ao ver que o amigo havia gostado do presente escolhido. Eles haviam pensado em comprar luvas de boxe, mas se lembraram que Val só usava as que herdou do avô.
— Pow, manos, não precisava esquentar a cabeça com isso não...
— Não enche, Val, ainda agorinha você estava falando que achava bom que estivessem comprando seu presente!
— Cadê seus modos, Valdemar? Não foi isso que te ensinei! — Glória deu um t**a de leve no ombro do filho.
— É mentira do Edu, mãe, ele disse isso só para a senhora brigar comigo! Olha só o sorriso cretino na carranca dele!
— Vem comigo, Alex, traga esse bolo. Não vou partir no quarto, do jeito que vocês são porcalhões vão lambuzar tudo e me darão trabalho para limpar. Chocolate é terrível para sair de lençóis brancos!
Com isso Glória e Alex se retiraram do quarto.
— Cadê Rafael?— Perguntou Eduardo sentindo falta de um dos membros do g***o.
— Não sei, quase não o vejo mais, só vive na rua. — Respondeu Val. — Deve estar consertando os carros de todos os seus clientes.
— Quando ele saiu não pareceu estar indo para oficina não, estava todo arrumado, como quando sai para caçar.
— Ué? Mas Rafael me disse que não sairia hoje, que ficaria aqui para comemorarmos juntos meu aniversário...
— Estão falando de mim?
Rafael entrou no quarto mais parecendo um modelo masculino de capa de revista. Estava vestido à perfeição e os cabelos cacheados bem modelados completavam a imagem de um querubim...
— Oh, seu escroto! Onde estava que não cantou parabéns!
— Me perdoe, mamãe urso, mas eu tinha ido buscar um presente especial.
Os olhos de Val, grandes e castanhos, brilharam de alegria. O menino Val ainda existia dentro do corpo de Hulk. Ele esticou os braços, ansioso. Rafael entregou o embrulho para Val com o rosto mais angelical do mundo.
— E se aprumou todo assim só para comprar meu presente?
— Sim e não... Encontrei uma mina antes, sabe como é... Além disso minha falecida mãezinha me ensinou como me vestir. Nem todo mundo se satisfaz vestindo sempre a mesma calça jeans e camiseta, Val.
— Ah, cala a boca, Calvin Klein- que p***a é essa? — Val segurou com as duas mãos o presente.
Eduardo passou a mão pelo rosto, e apesar da angústia que sentia, não conteve o riso. Renato gargalhou tão alto que Alex correu de volta, gargalhando ao entrar. Rafael permanecia olhando com o rosto sereno e angelical para Val, como um anjo inocente.
— Experimenta para a gente ver como fica, Val! — Disse Renato entre as gargalhadas.
— Bem que você gostaria, huh? — Acusou Val, com o cenho franzido. Renato apenas concordou balançando a cabeça.
— Não entendo o motivo das risadas. Você não gostou do presente que escolhi especialmente para você, Val?
Talvez quem não conhecesse Rafael se comovesse com suas feições de anjo, mas os amigos podiam facilmente reconhecer as diabruras dele.
— Eu até usaria essa cueca, mas vai ter que trocar. Talvez coubesse em um de vocês, mas para mim a tromba do elefante teria que ser três vezes maior e mais .... Larga.
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Eduardo olhava atentamente para o celular. Se suas suspeitas estivessem corretas, tocaria a qualquer momento. As coisas pareciam estar acontecendo como na versão original de sua vida, mas mais aceleradas.
Dias depois do aniversário de Val, ele conseguiu convencer o médico a tirar o gesso. Afinal, foi apenas uma rachadura e um imobilizador de gaze e a bota ortopédica fariam o mesmo efeito sem o desconforto do gesso.
Sem muito o que fazer, Eduardo tentou diversas vezes se comunicar com Bianca, até descobrir que o número havia sido cancelado. Ele chegou a sentir um pouco de culpa por suas ligações a terem feito trocar de número, mas ele precisava ouvir a voz dela para saber que não era louco, que não havia sonhado com tudo que aconteceu entre eles, que o amor que ele sentia era real.
Ela havia chegado a um impasse. Não tinha como se comunicar com ela, que ao ouvir a voz dele nas últimas vezes que completou a ligação, simplesmente desligou. Não sabia onde ela estava, nem como poderiam se encontrar "casualmente". Ele pensou em contactar Luíza, mas o que diria? Ela também não o conhecia e ele não tinha como sair de casa, pois não podia ficar de pé e andar por muito tempo.
Os fatos que não tinham a ver com Bianca se repetiam, com conversas e até mesmo o cardápio da pensão. Alex se negava a assumir Vanessa, que por sua vez passou a ficar mais tempo em companhia de outras pessoas. Alex estava furioso e veio até os amigos pedir conselho. Eduardo simplesmente mandou ele tomar vergonha na cara e assumir a mina antes que fosse tarde demais. E, pimba! Estavam namorando!
O tempo não era o mesmo, mas os acontecimentos davam um jeito de se repetir.
O telefone tocou e ao confirmar a origem da ligação, ele sorriu satisfeito. As coisas começavam a fazer sentido naquela situação atípica e se ele conseguisse agarrar a lógica, ele poderia ter uma chance de reverter.
Por mais que tudo parecesse perdido, ele mantinha a esperança. Bianca era o amor da vida dele, disso ele não tinha dúvidas, e se ele fosse realmente o amor da vida dela, o destino se encarrega de aproximá-los, e ele estaria preparado!
— Alô! (...) Sou eu mesmo pai, cala a boca e escuta! Não estou nem aí se sua amante está grávida. Minha mãe está internada na clínica Nossa Senhora de Fátima e precisa fazer uma cirurgia. Dá teu jeito e tira ela de lá para que ela fique logo boa. (...) Estou pouco me fodendo pra isso! Ela vai assinar o divórcio, com certeza, por que "caralhas! ela iria querer continuar casada contigo? (...) Câncer! (...) Ela vai ficar boa, eu tenho certeza disso (..) Como eu posso saber? Eu só sei! Agora vai logo resolver isso. (...) Acredite, papai, o fato de eu não poder ir é pura sorte tua, pois algo me diz que teu nariz não seguiria inteiro se eu fosse. Ta, ta... tchau!
" Não sei porque diabos demorei tanto para fazer isso antes!"
Eduardo pegou seu caderno de música e pôs-se a enumerar os acontecimentos que se lembrava, todos que tinham e que não tinham ligação com ele conhecendo Bianca. Alguns eventos ele riscou pois dependiam diretamente de terem se conhecido, mas alguns Bianca tinha decidido sem que ele estivesse em cena. O mais importante: a U.C.C! Ela tinha escolhido a universidade sem nem imaginar que o conheceria, e por conseguinte, alguns eventos teriam que se repetir...
De repente um sorriso se formou em seus lábios.
A Calourada!
Bianca, como aluna nova, iria com certeza para a festa... lá teria o infortúnio de encontrar Fábio... e então...
O primeiro beijo! Ele precisava fazer esse evento acontecer e tudo entraria nos eixos!