— Você vai me matar? - minha voz saiu em um sussurro. Incrivelmente eu não estava tão assustada quanto eu deveria estar. Meu coração ainda batia tão acelerado quanto as asas de um beija flor, mas eu acreditava profundamente que aquilo era uma reação a presença dele. Alguma coisa haver com o nosso corpo detectar o perigo, antes mesmo dos nossos olhos ou cérebro. Porque de uma coisa eu tinha a completa certeza, eu não estava tão assustada assim. E isso só confirmava o que Brenda me dizia sempre: Que eu não era uma pessoa normal.
— O jure ainda não se decidiu quanto a isso. - embora eu não pudesse vê-lo, eu podia ouvir o toque de divertimento em sua voz. Ele estava querendo mexer comigo.
— O que você quer comigo? Pretende possuir meu corpo e me fazer matar minhas amigas como forma de punição por termos lhe incomodado? - tentei colocar o mesmo tom de divertimento que ele tinha posto em sua resposta, mas não consegui. Pois no fundo, bem no fundo da minha cabeça completamente louca, eu sabia que ele poderia fazer isso mesmo e a ideia era simplesmente apavorante.
— Por enquanto eu me contentarei em saber seu nome. Depois podemos pensar nessa sua ideia aí. - a voz dele mais uma vez revelava um divertimento interno. Abri a boca prestes a lhe dá uma resposta afiada, mas segurei a tempo. O que eu estava pensando?! Ele ainda é um ser que pode me fazer de picadinhos em um estalar de dedos, não posso simplesmente soltar uma das minhas respostas sarcásticas.
— Acredito que já saiba, eu consigo sentir você no mesmo ambiente que eu estou as vezes. Olhando... - murmurei encarando seus olhos vermelhos na escuridão. Aquilo era tudo que ele me mostrava, e eu me perguntei se tinha haver com o fato de todos falarem que demônios tinham a aparência horrível. Eu estava começando a ficar curiosa e sabia que isso era um perigo, pois eu sabia que se ele fosse assustador, a imagem iria me apavorar em sonhos para sempre. — Por que fica sempre me olhando? Por que só aparece para mim?
— Primeiro: Você faz muitas perguntas, para alguém que acabou de escutar que invocou um demônio. Você é uma garota bem estranha! Não deveria estar gritando com medo ou algo assim? - aquilo tinha soado como uma pergunta retorica, mas eu dei de ombros mesmo assim. Decidi ignorar a parte em que ele me chamava de estranha, afinal o simples fato de eu estar aqui conversando com ele tão naturalmente assim, provava que era verdade. — Segundo: Eu não fico te olhando. - um barulho de escarnio escapou sem minha permissão. — Garota eu estava pronto para dar em vocês o maior susto de suas vidas. Um demônio precisa se divertir. - eu ainda não conseguia me acostumar ao ouvir aquela palavra. Demônio. Era surreal. Ainda mais por escutar coisas terríveis vinculadas à eles, e estar aqui conversando tão naturalmente com um. Não encaixava. — Eu iria começar por você, a espertinha debochada. Mas confesso que fiquei curioso quando deixei você sentir minha presença e não escutei seus gritos. Você realmente é muito estranha...
— Para de me chamar de...
— Terceiro. Eu ouvi o seu apelido, quero saber o seu nome. Afinal, você já sabe o meu. Uma troca justa, não acha? - a curiosidade estava implícita em sua voz e eu me peguei imaginando-o com a cabeça inclinada para o lado, enquanto esperava que eu respondesse.
— Rose... Mary. - murmurei a contra gosto sentindo meu rosto esquentar.
— Rosemary?! - eu sabia o que vinha a seguir somente em escutar seu tom de voz. — Como "O bebe de Rosemary"? - rosnei baixinho e ouvi sua risada vindo do escuro. Valeu mãe por esse maravilhoso nome!
— Nathaniel também não é isso tudo não! Nada demoníaco e para falar a verdade, parece até um pouco bíblico. - me arrependi do que tinha dito assim que as palavras saíram da minha boca. Merda, o que eu tinha na cabeça em discutir com um demônio? Que ele risse o quanto quisesse do meu nome ridículo!
— Verdade! Seu nome consegue ser pior que o meu. - deixei a respiração sair em um suspiro de alivio ao perceber que ele não tinha ficado com raiva. — Nossos pais parecem ter o mesmo senso de humor ridículo. - sua voz não passou de um murmúrio.
— Quem são seus pais? Quem é você?
— Eu... - antes que ele tivesse a chance de me responder, nossa atenção foi atraída para o canto daquele porão. Por mais escuro que tivesse eu podia ver uma fumaça densa começar a se acumular em uma forma humana. — Saia! - a voz que ele usou para ordenar que o que quer que fosse que estava prestes a aparecer, fez com que cada pedacinho do meu corpo estremecesse. Não parecia em nada com a voz que ele estava usando para conversarmos, e isso me assustou para um c*****o. Ali eu percebi que se ele quisesse me matar somente de susto ele conseguiria. — Você está bem? Parece que vai vomitar. - eu não percebi que ele estava me olhando, até que a voz dele ecoou. O som estridente de um balde sendo arrastado ecoou e eu olhei para o chão vendo a forma do balde metálico parar aos meus pés. Olhei para o canto novamente e não consegui ver mais o que quer que estivesse querendo aparecer ali.
— Quem é você? - sussurrei depois de um tempo. Meu corpo ainda estremecia do susto, mas eu sabia que não iria vomitar. A curiosidade já tinha se instalado em cada pedacinho do meu corpo, e eu não conseguia ouvir a voz da razão me dizendo para ir embora. Para aproveitar que esse ser à minha frente não queria me matar, e pedir para que me deixasse livre de suas vistas, livre dele. Mas eu não conseguia. Eu queria saber, queria conhecer mais sobre coisas que até então eu não acreditava que existisse.
— Sou um demônio.
— Que tipo de demônio você é no inferno? - forcei minha voz sair firme ao pronunciar a palavra "demônio" e esperei que ele me respondesse. — Todos vocês conseguem fazer isso que você fez?
— Não. - sua voz foi firme ao me responder. Eu esperei que ele fosse me dizer algo mais, mas o cômodo continuava no mais profundo silencio. Deixei que minha mente processasse o fato de que além de eu estar conversando com um demônio, ele era um dos poderosos. — Você parece estranhamente calma. Isso me deixa um pouco desconfortável.
— O que me deixa desconfortável é você usar muitas vezes a palavra estranha quando se refere a mim. - murmurei sem pensar e ouvi um riso baixo vindo do escuro onde ele estava. — Chega a ser insultante até. - me abaixei virando o balde de cabeça para baixo e me sentando no mesmo. — Você está esperando que eu saia correndo?
— Talvez.
— O júri já se decidiu se vai me matar ou não? - tentei colocar uma pitada de ironia na pergunta, mas eu ainda estava meio nervosa. O som da sua voz grossa ainda enchia minha cabeça, me deixando com um pouco de medo.
— Se eu disser que irei, você vai sair correndo?
— Talvez. - ouvi um suspiro profundo vindo dele e esperei. Um rangido de mesa ecoou, indicando que ele encostava seu corpo na mesma e isso atiçou ainda mais minha curiosidade em vê-lo. — O que estamos fazendo aqui? Por que veio especificamente para cá? Eu sei que você está, ou pelo menos estava, assustada.
— Eu precisava ter certeza de que não estava ficando louca. - murmurei encarando diretamente sua íris vermelha. — Precisava ter certeza de que você não era fruto da minha imaginação, e quando eu te vi cocar o nariz eu confesso que achei que só estivesse imaginando coisas. Não pensei que poderia escutar sua voz e... Você arrastou um balde! Eu estou sentada nele! Isso não é coisa da minha cabeça. Eu estou meio feliz por não estar ficando louca, afinal. Mas...
— Mas por contra partida eu sou um demônio. E você se enfiou em um porão, sozinha com um demônio. - eu consegui enxergar um sorriso nascer em seus lábios. — Isso não é muito inteligente. Tem lá seu certo tipo de coragem, mas...
— Você não vai me machucar...
— Está afirmando isso, ou está tentando convencer a si mesma? - aquele tom de voz manso e despreocupado estava me irritando.
— Talvez você não seja tão assustador quanto acha que é. - murmurei azeda e baixinho. Esperava que ele não tivesse escutado, mas o som estridente do balde sendo arrastado pelo chão e levando meu corpo junto, me provava que ele tinha escutado sim. Meu corpo se levantou sem minha permissão e minhas pernas, embora tremulas, sustentavam meu corpo deixando-me na altura de seus olhos. Prendi a respiração desviando meu olhar de seus olhos vermelhos, o que foi uma péssima ideia, pois assim eu mirava o que seria sua boca. E estávamos perto o suficiente para que eu pudesse sentir seu hálito quente em meu rosto.
— Estou assustador o suficiente para você? - seu hálito quente batia em meu rosto a cada palavra murmurada. Senti seus dedos se fecharem em meu braço e segurei a respiração. Seus dedos eram tão quentes, que deixavam um certo desconforto em meu braço conforme ele me apertava.
— Não. - respondi com o pouco folego que me restava. Eu estava com medo sim, mas eu também me sentia estranhamente compelida a continuar conhecendo-o. A única coisa que me vinha a cabeça era que meu sexto sentido ou meu senso de autopreservação, se é que eu tinha um, me diziam para ir embora, sair correndo sem olhar para trás. Mas alguma parte da minha mente, me dizia que ele não iria me fazer mau. Que ele teve todas as oportunidades do mundo, mas não o fez, então não seria agora que o faria.
Antes que eu pudesse pensar em falar ou fazer algo, o som do interruptor de luz ecoou. Arregalei meus olhos olhando para trás automaticamente, mas depois voltei minha atenção para frente quando a claridade revelou as bagunças daquele porão. Eu estava em pé, diante da mesa e de Nathaniel, eu podia sentir sua mão apertando meu braço, mas eu não conseguia vê-lo mais.
— Quem está aí? - a voz grossa de irmã Maria ecoou e eu senti meu coração falhar uma batida. Que flagra desgraçado! Eu podia sentir cada cédula do meu corpo travar.
— Dela você tem medo?! - a voz de Nathaniel sendo sussurrada em meu ouvido me tirou do meu torpor e me lembrou que eu ainda tremia próximo a ele. — Inacreditável. - seu sussurro foi a única coisa que eu ouvi antes de olhar para trás e me deparar com irmã Maria segurando uma lanterna acesa e me olhando com fúria.
— Rosemary! O que pensa que está fazendo fora de sua cama? - mesmo sua voz subindo algumas oitavas, irmã Maria ainda tinha a voz grossa como a de um fumante. Ela desceu as escadas tão rápido que eu me admirei que uma senhora velha tivesse tal agilidade. A irmã parecia que esperava uma explicação vinda de minha parte e quando eu abri a boca para falar algo eu vi seu olhar recair no tabuleiro Ouija largado ao chão. — Como ousa! - o rugido ultrajado saiu de seus lábios e eu vi sua mão vir em minha direção. Irmã Maria era conhecida por todas nós ao impor sua disciplina arcaica com violência, e meu corpo automaticamente encolheu esperando pelo tapa, mas ao contrário disso eu senti seus dedos ossudos se fecharem em meu braço com uma força impressionante e me puxarem para si. A quentura da mão de Nathaniel me abandonou e meu corpo foi arrastado em direção ao meio do porão.
— Irmã Maria eu...
— Calada! Como ousa sair de sua cama essa hora?! E ainda trazer esse tipo de coisa para dentro do convento! - rosnou pegando o tabuleiro e nos direcionando para fora do porão. Subimos as escadas rapidamente e sua mão livre foi para o interruptor, deixando o porão no breu em que estava antes. Olhei para trás uma última vez e consegui vislumbrar o que seria os olhos vermelhos de Nathaniel brilharem no escuro antes que irmã Maria fechasse a porta.
Andamos pelo extenso corredor cheio de portas que indicavam quartos, e salas de aula. Eu sabia para onde estávamos indo, antes mesmo dela virar o corredor. Observei a madeira envernizada assim que viramos o corredor menor e suspirei. Eu pude sentir a presença de Nathaniel, antes de sentir o roçar dos seus dedos em minha mão me avisando. Prendi meu lábio inferior entre os dentes, até que o gosto do sangue preenchesse minha boca. Eu estava nervosa, estava com medo e acima de tudo estava envergonhada, pois não iria conseguir fazer com que Nathaniel não visse a humilhação que eu estava prestes a passar.
Cedo demais chegamos a sua sala. A claridade do lugar fez meus olhos arderem. Irma Maria apagou sua lanterna e se encaminhou para sua mesa, logo depois de soltar meu braço.
— Irei escrever para sua mãe, avisando do seu delito e da sua punição. - esse era o jeito dela falar que não tinha para onde corrermos. Todos os pais que colocavam suas filhas nesse inferno sabiam das atrocidades que acontecia aqui, ou não sabiam, mas ficavam cientes quando suas filhas recebiam algum castigo. Acredito, ou melhor, preferia acreditar que irmã Maria omitia em suas cartas como era o castigo imposto para nós. Me custava acreditar que existisse pais que concordassem com esse método sádico. — Já sabe o que fazer! - a voz autoritária dela ecoou me fazendo dar um pequeno pulo. Andei a passos rápidos até seu armário e peguei o saco de milho que ela guardava ali. Não tinha o porquê de ficar adiando o que eu sabia que iria acontecer. Despejei uma boa quantidade no chão e levantei um pouco a camisola me preparando para ajoelhar. — Não, tire-a! - meu coração acelerou dentro do peito e eu senti meus olhos se enxerem de lágrimas.
— Irmã, por favor... - eu sabia o que viria a seguir, e a vergonha em ser punida na frente de Nathaniel, ficou de lado ao imaginar a dor que eu iria sentir. Eu já tinha ouvido falar desse tipo de punição que irmã Maria aplicava em alguns casos, mas nunca tinha sentido na pele. No máximo ficava ajoelhada no milho por uma hora. Observei em choque ela abrir a gaveta de sua escrivaninha e tirar de lá uma vara de madeira.
— Comece! - a ordem não dava margem para ser contestada. Sua voz não tinha um pingo de compaixão e ali eu soube que nada do que eu lhe dissesse seria capaz de anular meu castigo. Passei minha camisola por minha cabeça, sentindo as lágrimas embaçarem minha visão e ajoelhei sob o milho. — Olhe para cristo! - a primeira pancada veio em meu braço esquerdo, acompanhada de mais uma ordem. Levantei meus olhos em direção a pequena cruz que tinha na parede e comecei a murmurar minha prece. — Mais uma vez! - outra ordem e outra pancada, dessa vez no lado direito.
Conforme o tempo ia passando, irmã Maria ia alternando os lados em que desferia seus golpes em meus braços. Não tinha uma sequência, ela só batia e sempre em cima do mesmo lugar que tinha batido antes. Em certo momento virei meu rosto ao perceber uma sombra preta próximo a ela. Eu consegui ver seus olhos vermelhos brilharem, conforme a sombra de um corpo humano aparecia atras de irmã Maria.
— Não! - supliquei baixo sabendo que ele me escutaria. Deixei que as lágrimas que eu tanto segurava escapassem de meus olhos.
— O que disse? - não sei como era possível, mas a voz dela parecia mais raivosa ainda. — Cale-se e continue sua prece! - a vara desceu perigosamente próxima ao meu rosto dessa vez. Voltei minha atenção a cruz e comecei a murmurar minha prece.
Eu queria que aquilo acabasse, mas mais do que isso eu queria que Nathaniel não visse aquilo. Porém eu sabia que ele continuava ali, eu sentia sua presença. Depois de incontáveis surras e incontáveis preces, irmã Maria se deu por satisfeita. Naquela altura o milho já estava coberto de sangue, assim como meu braço, que tinha aberto um corte onde ela bateu incontáveis vezes.
— Levante! - obedeci a ordem em silencio, sentindo meu corpo protestar quando me movi. Eu podia ver por sua janela que estava prestes a clarear e já já as meninas acordariam. Observei enquanto ela ia até o armário e tirava de lá uma garrafinha, trinquei os dentes ao sentir o cheiro de álcool quando ela destampou. A dor foi insuportável quando eu senti o liquido sendo despejado em meus joelhos e braços, mas eu me forcei a não gritar. — Me siga. - sua voz já não tinha aquele traço raivoso, somente a habitual rouquidão de sempre. Irmã Maria esperou que eu passe a camisola por minha cabeça e depois abriu a porta. Sua lanterna já estava em sua mão, iluminando o caminho que logo eu percebi ser o do banheiro. Ela se enfiou em um boxe qualquer e ligou o chuveiro ao máximo. — Entre! - mecanicamente eu tirei minha camisola e calcinha. Por mais que eu estivesse com dor naquele momento, eu me senti ruborizar ao saber que Nathaniel estaria me vendo nua. Cobri meu corpo com os braços e me enfiei embaixo da água, me esfregando rapidamente e ignorando meus braços e joelhos doloridos.
Irma Maria desligou a água e com um aceno de cabeça ordenou que eu a seguisse. Vesti minha peça de roupa rapidamente, sentindo o tecido da camisola se grudar em meu corpo molhado e a segui. Percebi que não estávamos indo para o quarto assim que passamos pela porta vermelha. Olhei para irmã Maria em confusão quando paramos em frente ao porão. Ela abriu a porta e eu olhei para a escuridão.
— Você ficara aí, durante três dias para purificar sua alma. Espero que use esse tempo para pensar no que você fez. - arregalei os olhos processando a informação de que passarei três dias sem comer. Ela não esperou uma resposta minha. Pegou em meu braço dolorido e me empurrou para dentro. Coloquei minha mão no corrimão da escada, assim que ouvi a porta se fechar. O barulho do trinco sendo passado na porta e o clique, do que seria o enorme cadeado vermelho que quase nunca víamos na porta, ecoou me fazendo ter a conclusão de que ela me deixaria ali trancada.