Egito, Paraíso
Eu gostaria de poder dizer que no momento em que surgimos nas areias das parias de Alexandria estávamos cercados por quase uma centena de Filhos do Abismo; que nós quatro juntos enfrentamos todos eles e saímos vitoriosos; que nenhuma batalha até então havia sido tão épica. Entretanto, tudo que aconteceu foi meu estômago embrulhar de uma única vez e tudo que eu havia comido naquele dia ir parar na areia na forma uma nojenta mistura esverdeada.
Týr revirou os olhos, fazendo um feitiço rápido para colocar meu sistema digestivo em ordem. Eu sentia como se tivesse atravessado o Atlântico em um cruzeiro. Quando finalmente estava melhor, foi que olhei em volta.
De onde estávamos, eu vi um prédio que parecia um forte, na cor de tijolos e com as laterais arredondadas. Quase no centro, jogado um pouco para a esquerda, havia uma torre que um dia serviu para vigilância do mar e portos; em seu topo, a bandeira do Egito balançando com o vento forte que vinha do Mar Mediterrâneo atrás de nós. De acordo com Miguel, aquele prédio era o centro administrativo da Universidade de Alexandria, onde o reitor costumava trabalhar. Tanto na Terra quanto no Paraíso – as almas adoravam aprender, mesmo que não fossem usar o conhecimento adquirido na prática.
Viam também uma rua vazia, de carros abandonados e pedestres ausentes. Também não viam Filhos do Abismo, o que era um bom sinal – aparentemente, aquela era uma das poucas áreas que os anjos conseguiram libertar dos Filhos. Apesar de que a quilômetros dali, em Sidi Abd El-Rahman, tropas de anjos ainda enfrentavam os inimigos.
Andamos pela areia até uma escada que ficava colada à parede e subia até a rua. Lael e Miguel estavam alguns passos atrás, por alguma razão desconhecida. Assim que subimos ao nível da rua, notamos quatro pessoas nos esperando. Todos eles tinham olhos laranja.
O que estava mais a frente tinha o tronco largo e o rosto quadrado, com o cabelo na lateral raspado – um corte estranho, mas que combinava com seu rosto. Sua pele branca estava chamuscada em alguns pontos, como se ele brincasse com fogo constantemente. Em sua mão esquerda, um charuto aceso; onde ele havia conseguido um era um completo mistério. Seu rosto era estranhamente familiar. Este vestia um terno que o deixava ainda mais largo, com uma gravata preta e vermelha.
A direita dele, da posição em que eu estava, um homem n***o quase tão largo quanto o primeiro. Seus cabelos rastafari eram cumpridos, passando um pouco abaixo dos ombros. Seus lábios carnudos estavam costurados com uma linha branca, elevando o fator arrepiante para mais de nove mil. Ele tinha a barba cheia, porém ela estava falha em uma cicatriz que descia da testa, contornando seu olho esquerdo. Vestia uma roupa mais casual do que a do primeiro, com uma jaqueta de couro que lhe caía perfeitamente.
A primeira pessoa a esquerda era outro homem, mas este parecia mais com um mendigo do que com um Filho do Abismo. Ele vestia um sobretudo cujas pontas inferiores estavam molhadas. Duas entradas gigantescas em sua testa eram um contraste estranho com o cabelo cumprido na parte de trás e a barba suja. Ele tinha as mãos nos bolsos e nos encarava com uma carranca capaz de fazer uma criança chorar.
Já a segunda era uma mulher de lábios finos, porém de boca grande. Seu olhar era o de uma assassina, que combinava perfeitamente com a toca do moletom sobre sua cabeça; de alguma forma, a jaqueta de couro por cima de tudo ainda lhe dava um ar misterioso. Seus olhos depositaram-se sobre mim; ela sorriu, lambeu os lábios de maneira assustadora, e voltou a sorrir. Pude sentir o medo arrepiando os pelos da minha nuca.
O mendigo levantou os braços na nossa direção, semi-flexionados, com as palmas para cima em formato de garra. Ao mesmo tempo em que fechou o punho, levantou as mãos para cima. De repente, duas paredes surgiram do chão em nossas laterais. Elas vieram contra nós, porém Miguel e Lael as pararam usando a força de seus braços.
Ao mesmo tempo, o n***o saltou um pouco na frente dos outros, socando o ar com toda sua força. Um raio veio na minha direção. Lana colocou-se na minha frente no mesmo segundo, com sua espada em mãos, usando-a para bloquear e redirecionar – com a ajuda de suas habilidades Heartless – de volta ao inimigo. Foi então a vez da mulher entrar em ação.
Ela veio tão rápida quanto o vento contra mim. Com um único chute dolorido em meu estômago, ela me lançou de volta a praia. Bati com força contra a areia, sentindo os arranhões por causa do atrito. Parei apenas quando a água salgada ensopou minhas costas. Levantei-me a tempo de vê-la saltando muito mais alto do que o necessário para chegar até poucos metros de mim.
Não havia dúvidas de que eram Ryaks, provavelmente enviados de Kifo ou Vizard – o homem-leão de quem fugi logo após a Queda de Roma. A minha adversária era uma Sunsáryak, capaz de manipular o vento ao seu favor – aquele que atacara Lana, um Thunroryak, o mais raro entre os Filhos de acordo com Týr; e o mendigo era um Kayryak, capaz de manipular a terra. O último homem, aquele que era estranhamente familiar, ainda era um mistério.
Os ataques de vento vinham rápidos e afiados contra mim. Precisei usar de todo meu treinamento para desviar – mesmo que eu precisava apenas ir para um lado. Areia e água salgada subiam quase dois metros toda vez que as rajadas atingiam os elementos. Na primeira brecha que encontrei, saquei minha espada e avancei o mais rápido que minhas pernas permitiam. Fui para um lado, sentindo o vento passando raspando por minhas costelas; depois para o outro, sentindo meu cabelo desgrenhar-se ainda mais. Týr vinha voando o mais rápido que suas asinhas de libélulas permitiam.
A mulher começou a fazer um movimento circular com as mãos, sempre tendo seu sorriso assassino no rosto; seus braços giraram e giraram, até que um furacão surgiu em sua palma. Assim que ela o lançou, ele cresceu quase duas vezes a minha altura – não era exatamente categoria cinco na escala Saffir-Simpson, mas era tão perigoso quanto, contando suas habilidades de corte.
Týr se interpôs entre mim e o ataque, usando alguns feitiços para me proteger. Sentindo-me indestrutível, avancei pelo próprio furacão, sentindo os cortes em minha pele muito menos profundos do que seriam sem a fada. Sorrindo por tê-la pego de surpresa, eu ataquei com minha espada por cima. A mulher levantou a mão rapidamente, fazendo com que um vento constante bloqueasse meu golpe.
Esperando por isso, eu usei minha mão livre para sacar a adaga de minha cintura, girando-a de modo que colocasse a lâmina para baixo e, sem hesitar, cravei em seu pescoço, para baixo na direção do peito. Sangue laranja brotou aos montes enquanto ela urrava de dor – seus urros, porém, invocaram uma intensa ventania, que me jogou a quase trinta metros de distância. Dolorosamente, ela puxou minha adaga e a jogou no chão. Týr, discretamente, voou até a pequena lâmina.
– Meu... Nome... É... – Ela vociferou entre ofegos. – Wurth in’he Ben. – Estranhei, já que não conhecia muitas mulheres com o nome de Ben, apesar que poderia ser diminutivo. – E eu não serei derrotado por um verme, uma alma, como você.
De repente, seu nariz e boca deram lugar ao bico de um urubu. Seu pescoço afinou-se e tornou-se cumprido; seus olhos duplicaram, dois surgindo logo abaixo do pescoço, quando este juntava-se ao tórax – que agora não tinha mais roupas, apesar de manter o formato de mulher; ela era coberta de penas alaranjadas e oleosas. Seus braços de dividiram na altura do cotovelo; a segunda metade de baixo tornou-se uma comprida asa que quase tocava o chão. Suas pernas ficaram cumpridas e os joelhos passaram a dobrar-se para trás. Eu nunca tinha visto algo tão horrendo em minha vida.
– Chame sua adaga! – Týr disse de repente, enquanto Wurth começava a decolar. – Aponte a palma para ela e peça para que ela venha.
Obedeci, um pouco confuso; num segundo, a lâmina veio do chão com o punho direto em minha mão, como se tivesse vida própria. Confuso, mas estupefato ao mesmo tempo, olhei para a fada me perguntando por que ela não tinha feito isso antes com a espada, considerando as vezes que ela estava longe.
– Eu pensei nisso apenas agora, oras. – Týr retrucou, irritadiça.
Numa única batida de suas bizarras asas, Wurth criou uma verdadeira tempestade de areia, levantando os grãos e parte da água no alto. Invoquei a armadura Heartless das marcas de meu punho. O metal me cobriu em um segundo, caindo perfeitamente sobre meu sobretudo. Protegi meu roso com os antebraços, ainda sem tirar as lâminas de minhas mãos.
– Consegue vê-la? – Disse, praticamente gritando em meio ao barulho do vento.
– Não, mas posso sentir sua presença! – Àquela altura de nossa aventura, eu aprendi a não duvidar do que Týr era capaz, ainda mais quando se tratava de Filhos do Abismo, seres que surgiram da magia das fadas. – Abaixe!
O fiz sem pestanejar, sentindo-a passando por cima de mim; suas garras quase pegando minha cabeça. Týr me deu mais instruções para desviar, dando uma cambalhota pela areia e água, sentindo-a entrar nas dobras da armadura. Desviando assim, eu consegui fazer meu caminho para fora da tempestade de areia – claro, com a ajuda de minha fiel companheira Týr.
Vi Wurth decolar alguns metros no ar, suas mãos batendo velozmente. Seus olhares alaranjados caindo sobre minha pessoa; neles, a cólera de todos os Filhos do Abismo combinadas. Lancei minha adaga contra ela, pedindo para Týr fazer o mesmo feitiço de chamado na espada – assim, situações como a que aconteceu em Roma não se repetiriam com facilidade.
A faca atingiu-a no ombro, derrubando-a dolorosamente contra a areia. A ventania parou de repente. Wurth arrancou dolorosamente a adaga, deixando que seu sangue quente cair na água do mar, chiando alto. Levantei a mão para trazer a adaga de volta.
– Com todo seu treinamento, acho que consegue deixar a espada alguns segundos no chão, não? – Týr disse, respondendo meu pedido sobre o feitiço na espada; logo, deixei-a cair e corri contra a Sunsáryak.
A criatura foi pega de surpresa pelo meu ataque. Num único bater de asas, ela subiu vários metros do chão, levantando areia. Agarrei uma de suas pernas, usando todo o peso do meu corpo e da armadura para trazê-la para baixo. Wurth bateu suas asas ainda mais intensamente, fazendo girar o ar em nossa volta e decolarmos há vários metros do chão. Apenas então, foi que percebi o erro de minha estratégia.
Ela subiu vários e vários metros, acelerando na direção do oceano. Tentei atacá-la com minha adaga, de modo que ela me soltasse – pelo menos, eu achava que não morreria outra vez com a queda; ou que ao menos, Týr me resgataria com sua magia. Contudo, ela usou sua pata livre para segurar a lâmina; ela sangrou, quase me queimando no processo, mas conseguiu me desarmar.
Do alto, vi que Miguel, Lael e Lana estavam tendo dificuldades para enfrentar os outros três Filhos do Abismo, principalmente quando o homem de terno havia se juntado a luta, usando labaredas vermelho alaranjadas como sua principal a**a; me dei conta, então, que ele era o mesmo homem que me atacou em Londres – pouco antes de eu entrar no Palácio de Buckingham.
Miguel levantou um braço; eu estava longe para ter certeza, mas ele parecia apontar para mim. Lael, então, decolou em seguida, confirmando minha suspeita, já que ele vinha em nossa direção. Wurth, notando que o anjo estava em seu encalço, acelerou de uma maneira irreal. Em poucos minutos, o Egito havia desaparecido de vista. Através da conexão que tinha com a fada, descobri que ela pegara uma carona no ombro de Lael, já que suas asinhas jamais conseguiriam acompanhar a velocidade de Wurth – ou de Lael, inclusive.
Também soube que o feitiço em minha espada estava pronto. Apontei minha mão da melhor maneira que pude na direção dela e a chamei, como tinha feito mais cedo. Apenas oceano estava a nossa quando Lael nos atingiu.
Wurth transformou a metade mão de seu braço em uma lâmina feita de lava do Abismo, enquanto, ao mesmo tempo, jogava as patas para cima – colocando força extra na que eu estava. Com auxílio de seu poder de vento, ela me jogou ainda mais e mais alto, a uma altura em que o ar, caso eu estivesse na terra, seria gelado demais e rarefeito demais para um humano de qualquer tamanho sobreviver. Dali, pude ver um pouco do Egito e o pequeno ponto metalizado que era minha espada vindo acelerada em minha direção.
Olhei para baixo a tempo de ver Wurth bloqueando um ataque da lâmina acessa em Fogo Celestial de Lael, apesar de que na altura em que estava, eles eram ainda menores do que bonecas Polly. Týr, agora, vinha voando em minha direção.
Eles trocaram golpes rápidos que pareciam ter saído de uma luta de Dragonball Z, apesar de que eu ainda conseguia acompanhar com os olhos, diferente do desenho. Eles se afastavam alguns metros, como que para respirar, então aceleravam um contra o outro, batendo suas armas – Wurth tentava usar seu poder de vento para tentar alguma vantagem, mas Lael era um lutador bom demais para não permitir tais aberturas – e trocar golpes com piruetas que seriam impossíveis em solo.
O impacto do punho da espada batendo em minha mão foi extremamente dolorido, mas nada que quebraria um osso ou algo do gênero – outra vez, graças a magia de Týr.
– Týr, você por aqui? – disse para a fada que me atingira e pousava em meu ombro, quase nas costas para bloquear-se do vento da queda livre. – Quanto tempo?
– Pare de gracinha. – Ela retrucou irritadamente.
Preparei um golpe vindo de cima, para atingir Wurth. Ao mesmo tempo, usei minha mão livre para chamar a adaga que ela ainda tinha em sua pata. O puxão de supetão foi total surpresa, mas ainda assim, ela conseguiu usar seu poder de vento para me lançar outra vez para o alto – apesar de que dessa vez não tão alto quanto antes – e bloquear outro ataque de Lael.
A temperatura no ar subiu de repente, indicando que a Sunsáryak estava irada, muito mais do que Týr esteve em qualquer momento deste que a conheci. Ela se desvencilhou de Lael, conseguindo ficar alguns metros afastada dele. Wurth socou o ar algumas vezes, lançando rajadas de ar afiadas contra o anjo, que conseguiu desviar da maioria, mas uma provou-se ainda mais traiçoeira.
Ela passou por sua asa direita, cortando-a limpamente, como uma faca quente corta manteiga. Em dor e fazendo o possível para manter-se acordado, ele bateu a asa restante – coberta de sangue com pontos prateados – para manter-se no ar. Wurth, agora sorrindo vitoriosamente, foi contra ele, pronta para o golpe de misericórdia.
Lana, imediatamente, me veio à mente; mais especificamente, a amizade que ela tinha com aquele anjo. Eu jamais permitiria que ele morresse se eu pudesse fazer algo contra. Týr, já sabendo o que eu planejava, fez o feitiço no exato momento em que lancei minha espada contra a Sunsáryak. Mais rápida do que a Wurth pudesse perceber, a espada cravou-se em suas costas, transformando-a em milhares de pontos brilhantes.
Fiz o possível para que Lael entendesse que ele devia pegar a espada. Lael conseguiu agarrar o punho; eu a chamei para mim. E ela atendeu, trazendo o semimorto anjo consigo. Nós nos encontramos no meio do caminho, a menos de três metros do mar. Assim que nossos dedos se encontraram, desaparecemos em um vórtex prateado, surgindo no segundo seguinte em uma praia.
– Onde estamos? – Consegui perguntar, depois de vomitar bile na areia; eu estava de pé, olhando em volta, mas Lael caíra sentado no chão imediatamente.
– Ainda no Paraíso. Ou você estaria em uma dor impossível agora, prestes a desaparecer completamente da existência. – Lael conseguiu dizer em meio a dor. – Mas não sei dizer exatamente on...
Ele desmaiou sem terminar sua frase. Quando me virei para ajudá-lo, vi uma floresta fechada. Entre as árvores, centenas de olhos brilhantes e laranja nos encaravam da sombra criada pelas folhas.