Vaticano, Paraíso
Apesar de ainda estar dentro dos calabouços do Vaticano, Caleb sentia livre. Por incontáveis meses ele ficou preso dentro de sua própria mente, seu próprio corpo, vendo-se controlado por uma criatura profana e terrível. Viu a si mesmo fazendo coisas que jamais faria de outra maneira; torturou e matou anjos, entregou almas para Kifo alimentar-se e guerreou em nome de Vizard, o Leão. Ao mesmo tempo, via as semelhanças que tinha com o Filho do Abismo.
Ambos tinham memórias de prisão, de serem aprisionados, e foi exatamente essa conexão que permitiu que Vizard libertasse sua verdadeira forma de homem-leão. Foi também ela que permitiu que ele se tornasse o primeiro Kayryak a manipular areia. Suas semelhanças sempre foram um sinal de força.
Todavia, agora que finalmente estava no controle e poderia deixar de participar daquela guerra. Seu único propósito era encontrar Rouen, seu amor, levá-la para uma cidade-refúgio – com certeza não Nova Jerusalém, pois ela já fora alvo de ataques pelo menos duas vezes antes, apesar de que, ao mesmo tempo, tinha sobrevivido a ambos – e esperar os anjos vencerem aquela guerra. Graças ao seu companheiro de escapada, Jeremy, ele sabia exatamente aonde encontrá-la.
Como a maior parte dos soldados que encontravam não eram Ryaks, a dupla não teve muita dificuldade para chegar ao templo da Basílica de São Pedro – onde, na Terra, aconteciam diversas missas para o Criador ou os santos –, embaixo da qual ficavam as masmorras. Jeremy liderava o caminho, porém sinalizou para que os dois se escondessem atrás de uma coluna. Um trio de soldados, com suas armas de lava já prontas para lutar, vinha correndo da entrada, desviando dos destroços de bancos de madeira destruídos quando os Filhos invadiram o lugar para s********r algumas almas, logo após a Queda de Roma.
– Como chegamos no Palácio do Governador? – Caleb perguntou em sussurro, tomando cuidado para não serem ouvidos por outro par de Filhos que passavam por eles.
– Não sei. – Jeremy respondeu, no mesmo volume.
– O que você viu pela memória coletiva então? – Retrucou, irritado; por pouco não aumentou o tom de sua voz.
– Ouvi dois Filhos comentando sobre o quão irritados estavam por terem que proteger uma mulher porque Vizard – ele apontou para Caleb – ordenou, já que ele deixou de ser o Senhor de Guerra. Ao mesmo tempo, Kifo não ordenou que ela fosse entregue para ele ou colocada com as outras almas.
– Ele a está protegendo?
– Não necessariamente. – Jeremy retrucou. – Acho que ele simplesmente não se importa que ela está aqui, principalmente considerando que ela não significa nada para Vizard, apenas para você, Caleb. A memória coletiva estava cheia de histórias sobre Vizard, o Leão. – O homem acrescentou depois de Caleb perguntar sobre o plano: – Na Terra, a Praça de São Pedro é sempre cheia de turistas; eu não cheguei a visitar aqui depois da morte, mas acho que se já similar, não?
– Sim. – Caleb informou, lembrando-se de uma vez que tinha visitado a cidade quando criança com seus pais após a morte, afinal, ele não tivera uma vida na Terra que levou a uma infância. – Acha que encontraremos um mapa do Vaticano lá? Por que não vê a localização na memória?
– E entregar nossa posição?
Jeremy olhou para o templo mais uma vez. Ele sinalizou para que eles seguissem para fora da Basílica, atravessando o mais rápido e silenciosamente possível. Viram dois Filhos vindo na direção deles. Caleb saltou para trás de uma pilha de madeira, enquanto Jeremy escolheu uma coluna do lado oposto. Eles passaram sem dar qualquer sinal de que os tinha visto.
Eles continuaram avançando, usando qualquer tipo de esconderijo que encontraram. Caleb olhava a destruição que a batalha de Vizard contra alguns anjos quando ele despertou sua verdadeira forma; o chão, principalmente, estava destruído. Onde deveria haver o obelisco existia apenas restos de granito vermelho empilhados. O rapaz lembrava-se muito bem de ver-se fazendo toda aquela destruição.
Escondidos atrás do que sobrou de um dos corredores laterais, Caleb tentou enxergar se algum Filho estava a espreita, mas não viu pessoa alguma. Viu alguns papéis que estavam no chão, tentando identificar se um deles continha o que ela procurava, mas estavam muito longe. Saíram do esconderijo, indo de papel em papel, tentando encontrar um mapa.
– Achei! – Jeremy disse, um pouco mais alto do que deveria, mas eles estavam um pouco longe um do outro; Caleb, então, juntou-se a ele.
O prédio que procuravam ficava logo atrás da Basílica de São Pedro, mas de onde estavam, não tinham acesso direto e, portanto, teriam que atravessar por dentro, onde estavam até então. Caleb bufou, sentindo raiva de si mesmo por não saber algo tão óbvio quanto aquilo.
Ouviram um g***o de passos vindo na direção deles, em marcha, vindos do lado de fora do Vaticano. Ao olharem, viram um exército com milhares de Filhos vindo na direção deles. Pensaram em correr para trás das ruínas de onde saíram, mas Jeremy tinha a sensação de que eles ficariam encurralados. Caleb, então, lembrou-se um livro que havia lido há um tempo, no qual o personagem principal usava túneis para ir de pontos diferentes de Roma, inclusive um que ia até ali – além de que, fora por ali que os Filhos do Abismo atacaram a cidade pela primeira vez.
Caleb abaixou sobre um joelho, tocando no chão com as pontas dos dedos. Deixou que o poder de Vizard corresse por seu corpo – nenhum dos dois notou que a íris de seus olhos se tornou laranjas por um segundo. Ele pôde sentir o túnel abaixo dos pés deles, indo em linha reta, começando de um ponto longe dentro de Roma até o outro lado da Basílica. Não tinha exatamente certeza onde ele saía, mas não importava muito. Juntou as duas mãos e, num movimento de a******a, fez com que o solo abrisse.
Os dois saltaram sem hesitar. Caleb fechou o buraco sobre suas cabeças, torcendo para que ninguém os tivesse visto – se um Kayryak estivesse naquele exército, poderia abrir a passagem tão facilmente quanto ele. Jeremy fez surgir algumas faíscas de eletricidade em suas mãos, para iluminar o caminho. Avançaram o mais depressa possível para dentro da cidade, sabendo que os Filhos não poderiam detectá-los ali com facilidade.
Existe dentro do Jardim Italiano do Vaticano uma fonte chamada Fontana dell'Aquilone, Fonte da Águia; nela, existe uma pequena gruta, logo abaixo da estátua que dava nome a fonte. Era ali, escondido dos olhos de qualquer um, que eles saíram por uma portinhola que ficava parcialmente submergida. Nenhum dos dois gostou de ter suas calças molhadas até o joelho, mas não tiveram muita escolha.
Caleb observou por uma fresta, tentando encontrar qualquer sinal do inimigo. Fechou-a em seguida, com certa brutalidade, quando notou que havia um Filho do outro lado da fonte, de pé na rua, porém de costas. Ele não conseguiu imaginar um cenário no qual conseguiriam sair sem chamar a atenção dele – poderiam até derrubá-lo, mas entregariam sua posição imediatamente.
Discutiram as possiblidades por alguns minutos até decidirem que deveriam voltar alguns metros e tentar abrir uma saída pelo teto, o que seria uma verdadeira roleta russa, pois poderiam abrir direto abaixo de um Filho.
Posso ajudar com isso, a voz leonina de Vizard soou em sua mente; tal voz, porém, apenas existia quando ele estava em sua forma de leão, em outros momentos, ele falava como Caleb. Faça uma pequena plataforma sob vocês e toque no teto.
– Não acho que será uma boa ideia. – Caleb respondeu, sem perceber que dizia em voz alta.
– O que? – Jeremy estranhou.
– Vizard está falando em minha cabeça. – Retrucou. Repetiu sua fala, agora em pensamento.
Você precisa confiar em mim, como eu estou confiando em você, Vizard informou, seu tom era sincero, mas Caleb sabia muito bem que mesmo sendo apenas uma voz dentro de uma mente, era possível mentir ou modificar o seu tom para ser mais convincente. Nós podemos sentir a vibração das pessoas enquanto elas andam sobre nossas cabeças, mas é preciso muito concentração e silêncio, então não é uma habilidade exatamente útil em um combate aberto.
Caleb ponderou as possibilidades, chegando à conclusão que a melhor estratégia seria a de Vizard. Fez movimentos leves com o braço para subi-los até o teto. Ali, tocou na pedra rustica para tentar sentir cos passos como o Filho do Abismo dentro de sua cabeça disse queria possível. Fechou os olhos e se concentrou.
Imperceptíveis a quase todos os seres do Paraíso, ele sentiu na ponta de seus dedos que um g***o de quatro Filhos vinham caminhando lentamente na direção deles, descendo a rua que contornava a Fonte da Águia; sentiu-o passas pelo guarda, que agora ele também percebia – mais especificamente, ele era capaz de notar toda vez que ele trocava o peso de uma perna para outra. Esperou alguns segundos para abrir a passagem; eles saltaram para fora e Caleb fechou-a, como se nunca tivesse existido.
De onde estavam, podiam ver o que julgaram ser a Faculdade Etíope; mais longe, viram a Capela da Santa Maria Regina della Famiglia, que por sua vez, ficava logo atrás e conectada ao Palácio do Governados. Enquanto corriam pela grama, sempre olhando para os lados para ver se ninguém os via, eles olharam para o céu acima da Basílica. Esconderam-se embaixo de um g***o de árvores ao verem Kifo decolando dali e seguindo em direção de Roma. Para onde estava indo, era um total mistério.
As árvores ao redor deles foram partidas do nada. Centenas de milhares de folhas caindo sem qualquer explicação, o que só poderia significar uma coisa: Hasashuryak. Jeremy olhou em volta, procurando pelo dono dos ataques.
Viram um homem de longos cabelos loiros, que chegavam até a altura da cintura, talvez até mais cumpridos; seus olhos eram de um intenso laranja, quase totalmente diferente dos outros Filhos – que chegavam a ser foscos em comparação. Ele tinha a jugular firme, quase quadrada; sua boca de lábios finos não demonstrava qualquer sentimento. Vestia roupas modernas, uma camiseta de algum desenho animado que nenhum dos dois conhecia e calças jeans escuras. Aquele era Balai in’he Arthur, da Soulryak.
Ele fez movimentos com as mãos, cortando com suas lâminas invisíveis o tronco da árvore atrás da qual a dupla se escondia. Caleb respirou fundo rapidamente, socou o ar a sua frente com os dois punhos fechados e, com ainda mais força, acotovelou o nada atrás de si, colocando sua v*****e no chão sob seus pés. O solo tremeu intensamente, desequilibrando Balai. Os dois aproveitaram a oportunidade para correr; ainda assim, sentiram galhos no topo das árvores serem cortados.
Enfrentar um Hasashuryak era uma das coisas mais difíceis de se fazer, já que ninguém sabia exatamente como as habilidades funcionavam. Eles cortavam qualquer coisa que estivesse em seu caminho usando apenas a mente, não era como se eles usassem o vento ou lâminas de fato. Tudo que eles conseguiam ver, eles cortavam; Vizard, então, teve um insight dentro da mente de Caleb.
Era exatamente isso. O que eles viam, eles eram capazes de cortar. Tudo que precisavam fazer era impedir de vê-los, manter-se longe de seu campo de visão. Caleb continuou usando seus poderes para manter o chão tremendo, ao mesmo tempo, levantava algumas paredes de terra entre eles e o inimigo; ele podia sentir o corte que Balai fazia em suas defesas.
Aos poucos, eles foram avançando, fazendo a volta no inimigo – que estava diante do Palácio, impedindo-os de avançar – sem que ele percebesse. Jeremy acessou a memória coletiva para saber a posição de Balai e tentar descobrir o que ele estava planejando, entretanto, algum Manáryak estava mantendo todos os membros da Soulryak separados do resto, exatamente como Vizard planejara. Precisavam de uma estratégia, e rápido; havia um limite para o poder de Caleb.
Sinta os pés dele no chão, Vizard disse de repente, quando eles estavam atrás de uma parede espessa que estava sendo rapidamente destruída corte a corte. Levante-se. Caleb o fez, ficando de frente para sua parede. Sinta-o. E quando souber sua exata posição, soque.
De olhos fechados, ele concentrou-se em seus pés. Ficou irritado por um segundo, por isso tirou o par de botas rustica que vestia e voltou a posição inicial. Caleb sempre adorou sentir a grama sob seus pés, principalmente quando lia um livro – era comum ele sentar no banco de uma praça, brincar com o gramado ao mesmo tempo em que sua mente viajava pela Terra Média ou Nárnia ou Hogwarts. Naquele momento, sua mente estava focada em outra coisa.
Era como se a terra conversasse com ele, dizendo tudo que vivia sob ela e acima dela. Ele pode sentir o guarda que, antes diante da fonte, agora corria na direção do combate. Então, ele deu um soco na parede, como um boxeador o faz contra um saco de pancadas. Um cilindro de terrar e pedra voou contra Balai, que precisou se concentrar no ataque para cortá-lo até não sobrar nada. Seus olhos se encontraram por um segundo, Caleb sorriu, mas o outro pareceu estranhamente surpreso. No segundo seguinte, a a******a fechou.
– Quando tiver a chance, vá encontrar Rouen e a leve para a estação. Vamos sair daqui de trem.
Jeremy confirmou uma vez com a cabeça. Caleb sentiu que Balai vinha andando na direção, assim como outros Filhos, estes, porém, fez a terra engolir, deixando apenas os dois – ele até tentou, mas Balai percebeu seu plano e saiu do caminho antes de cair no buraco. Entretanto, isto deu a Caleb uma ideia.
Ele avançou um passo, batendo o pé no chão, fazendo com que um buraco abrisse sob Balai, que saltou outra vez. Simultaneamente, ele socava a parede diante de si, lançando mais e mais cilindros de terra e pedra contra o inimigo. Não precisou olhar para saber que Jeremy trocava passos acelerados em direção ao Palácio do Governador.
Levou longos minutos para que seu plano desse certo. Os ataques múltiplos e simultâneos desequilibraram o Hasashuryak, levando-o para dentro da terra. Caleb não poderia estar mais aliviado. Torcendo para que Jeremy tenha conseguido salvar Rouen, ele correu para a estação de trem que ficava a alguns metros dali. No caminho, cruzou com alguns Filhos do Abismo, nenhum Ryak – aparentemente, a notícia de que ele tinha vencido um Hasashuryak tinha se espalhado, criando certo receio de enfrentá-lo.
Chegou um pouco depois de Jeremy e Rouen, que apesar de estar suja e claramente triste, seus longos cabelos castanhos claros e seus olhos de mel tinham a mesma intensidade e fogo que ela sempre tivera desde que se conheceram na cidade de Rouen, na França – ele cansou de brincar com ela sobre ela ter o mesmo nome que o lugar.
Assim que ela viu que os olhos de Caleb não eram laranja e preto, ela correu para abraçá-lo. Caleb, em nenhum momento de sua existência no Paraíso, sentira-se tão feliz por vem alguém. Depositou dezenas de beijos por todo seu resto, sem se importar com a sujeira. Tudo que queria era aproveitar aquele pequeno momento de reencontro enquanto seu coração se aquecia.
Tiveram que cortar o momento, saltando no trem que havia na plataforma. Jeremy, e Caleb não tinha ideia da ciência por trás daquilo, usou sua eletricidade para fazer o trem acelerar. Caleb, porém, precisou criar barreiras e barreiras pelo caminho, de modo que os ataques dos inimigos não os atingissem. Logo, eles estavam fora dos muros do Vaticano.