Capítulo 02: Anschluss

2595 Words
Áustria, Terra 1938 Ezra fechou a sua loja com um sorriso no rosto. Aquele começo de março estava surpreendentemente bom para os negócios, ainda mais considerando que ele vendia antiguidades. Desde que vendera uma velha cadeira do século anterior que havia pertencido ao Imperador da Áustria para um colecionador inglês, ele recebera visitantes de vários lugares da Europa para comprar os mais diversos itens que datavam de séculos antes. Trancou a porta, sorrindo, colocou a chave no bolso de seu terno e passou a caminhar rua de paralelepípedo. Ao olhar para a fachada de sua loja, ele não deixou de sentir orgulho. Ezra Antiques, as letras diziam, mas logo abaixo, as mesmas palavras no alfabeto hebreu, seu idioma materno. Ele construíra aquela loja do zero depois de anos e anos juntando dinheiro trabalhando nas mais diversas lojas naquela cidade e na capital, Viena. Viu outros lojistas fechando suas portas, deu boa-noite para diversos deles, muitos dos quais haviam se tornado seus amigos – tomavam cerveja, ouviam esportes no rádio e, resumindo, passavam um bom tempo juntos. Mas não naquele dia. Aquele dia era uma data especial. Sua filha mais nova, Ester, estava completando seu terceiro ano de idade. Por isso, ele parou em uma pequenina loja de brinquedos que havia no final da rua de sua própria loja. Felizmente, o dono ainda não tinha fechado. Entrou ouvindo o sininho tocando, indicando que um cliente havia chegado – o próprio Ezra tinha um em sua loja. As prateleiras estavam cheias de brinquedos, desde carrinhos feitos de madeira – muito bem detalhados e trabalhados, por sinal – até tabuleiros de xadrez. O que Ezra procurava, porém, era uma boneca de pano sem botões ou qualquer coisa que sua filha poderia engolir e sufocar. Encontrou a boneca perfeita, com cabelos loiros e olhos azuis de crochê. Pagou e deixou a loja. O cheiro de pão caseiro foi o primeiro sinal de que estava chegando em casa. Sua esposa costumava assá-los todas as semanas, mas naquele dia, ela estava fazendo de uma maneira especial – com geleias feitas das mais diversas frutas. Foi recebido com abraços de seus dois filhos mais velhos, Eber e Elazar, gêmeos de seis anos. Eles fizeram centenas de perguntas em menos de um segundo, as quais o pai respondeu da melhor maneira que pôde com um sorrido, dizendo para eles irem se lavar para o jantar. Mazal não parou de secar um prato para receber o beijo de Ezra. Ele tentou pegar um pedaço do pão que estava em cima do fogão, mas ela não deixou. – Vendeu bastante hoje, meu bem? – Mazal disse, sorrindo, enquanto entregava para ele um prato de vidro vazio, para que ele se servisse. Ezra sempre ria toda vez que ela fazia isso, pois o lembrava da primeira vez que conversaram: “meu marido vai servir o próprio prato se quiser comer.” Foi uma das primeiras frases a sair de sua boca, com uma raiva que ele não sabia explicar de onde vinha. No entanto, ele tinha certeza que ela seria sua esposa para o resto de sua vida. Antes que ele pudesse servir-se, Ester surgiu na porta da cozinha, usando um vestidinho azul diferente dos que Ezra tinha visto antes – era novo, feito pelas mãos idosas da mãe de Mazal. Ezra pegou sua filha no colo e imediatamente tentou morder sua barriga, tirando as risadas mais gostosas da menina. Seus cachinhos castanhos balançando enquanto ele lutava para se livrar. – Eu trouxe um presente para você. – Ele disse, levantando-se com ela nos braços. – zende! – Ester praticamente gritou, abrindo ambos os bracinhos gordinhos de excitação. Eles foram até a sala, onde os gêmeos brincavam com carrinhos de madeira. Ezra tirou de sua sacola a boneca de pano e a entregou para a menina, que suspirou de surpresa. Ester imediatamente agarrou a boneca, apertando-a forte contra seu peito, enquanto o pai voltava para cozinha. Deixou a menina delicadamente no chão. Chamou seus meninos para virem jantar em seguida, como eles costumavam fazer todos os dias. Ezra pediu que eles segurassem as mãos para agradecer ao Criador pela comida. Os meninos contaram todas as novidades da escolinha que estavam indo, sobre a partida de futebol com os meninos da rua de baixo e como os venceram; também contaram sobre as aventuras imaginárias que estavam vivendo na sala até aquele momento – Eber era um piloto de corridas, enquanto Elazar era seu técnico e estrategista, dando ideias sobre manobras que ele deveria fazer. Ezra não deixou de rir. Ao fim do jantar, Mazal pegou o bolo que havia feito durante a tarde, coberto de chocolate, e colocou sobre a mesa. Os meninos praticamente não se continham, não fosse o olhar de Mazal que os fez permanecerem nas cadeiras. Ela cortou dois pedaços e entregou aos dois; depois, deu um para Ezra e cortou um último para si mesma, o qual dividiria com Ester. – Imagine o que o Rabino Dov diria se nos visse em um ritual que não é judeu. – Ela comentou, enquanto mastigava. – Ele não precisa saber. E nós nem cantamos parabéns. Imagine a afronta se o tivéssemos feito! – Os dois riram como duas crianças. Após o jantar e as higienes noturnas, Ezra reuniu sua família de pijamas para fazer a Ma'ariv, a última oração da noite. Apenas depois de terminarem os versos, eles foram dormir. Primeiro, os pais colocaram os gêmeos em suas camas em um único quarto, deram beijos em suas testas e os deixaram sozinhos com a luz de uma pequena lamparina acesa. – istori. – Ester pediu enquanto sua mãe ajeitava os cobertores em volta dela. Ezra olhou para mulher, que levantou as duas mãos em sinal de livramento; ela não leria. Ele sorriu, sinalizando positivamente com a cabeça. – Me de um minuto. – Pediu; Mazal já estava na porta, saindo. Ele virou-se para a pequena Ester. – Que história você quer? – lici. – Informou, dessa vez mais mandona. – Mas eu terminei de ler essa história ontem. – Ele retrucou, indo para a pequena prateleira que havia no alto da parede a frente do berço. – Certeza? – lici! Ezra pegou seu exemplar de Alice no País das Maravilhas, já um pouco surrado, considerando o tanto que ele já tinha lido para seus três filhos. Sentou-se na cadeira de balanço que havia ao lado do berço, abriu a primeira página e começou a ler. “Alice estava começando a ficar...” Não levou cinco páginas para Ester dormir abraçada a sua boneca nova e com o dedão da mão esquerda na boca. Ezra soltou um sorriso terno, deixando o quarto com apenas um abajur aceso em meia-luz. Ezra sentiu seu coração se aquecer. Ao entrar em seu quarto, ele arregalou os olhos ao ver que Mazal o esperava vestindo nada além de suas roupas de baixo – ao contrário do que esperava, já que pensava que ela estava dormindo. Ele virou-se para trancar a porta e, quando voltou, ela já não vestia mais a camisola. Ezra admirou o corpo de sua mulher, com suas curvas e cicatrizes das gravidezes. Ele a amava ainda mais daquela maneira.   A manhã do domingo, o único dia que não abria a Ezra Antiques, começou alegre. Toda a família – exceto, talvez, Ester que não entendia muito bem o que estava acontecendo – estava ansiosa para ir a sinagoga, ver seus irmãos judeus que não costumavam ver durante a semana. Eber e Elazar estavam principalmente interessados nos avós, que sempre favam moedas para comprarem doce em uma lojinha perto da igreja. Mazal queria ver as amigas, trocar fofocas sobre a comunidade. Já Ezra estava ansioso por um motivo muito mais grave. Havia rumores vindos da Alemanha, sobre o ódio que o líder deles pregava contra os judeus. Não estavam no país, mais conheciam muitos que moravam daquele lado da fronteira. Ezra, assim como todos os de sua sinagoga, sentiam por eles; queriam poder ajudá-los, mais seria impossível sem colocarem suas próprias vidas em risco. Tudo que podiam fazer era pedir ao Criador que cuidassem destes. Deixaram a reunião por volta do meio-dia, prontos irem a casa dos pais de Mazal – o próprio Ezra já tinha perdido ambos os pais alguns anos antes. Entretanto, um amigo de Ezra veio conversar. Depois das cortesias, ele acrescentou: – Você ouviu que Hitler espalhou espiões por toda Áustria? – Ele praticamente sussurrava, como se um agente alemão pudesse ouvir naquele exato momento. – E logo eles irão se revelar e forçar a união dos dois países, como durante o Império. – Ezra riu. – São apenas teorias da conspiração, Levi. – Ezra riu um pouco mais; Ester, que estava em seus braços, achou-o extremamente engraçado, pois começou a rir também. – Daqui a pouco você vai dizer que existem monstros no oceano que estão afundando navios com um chifre. – Vejo que leu Júlio Verne. – Ele retrucou. – Este era um homem que sabia das coisas. Não sei por que ele trocou a verdade dos eventos. – Ezra podia ver a seriedade no rosto dele, mesmo assim, não conseguia levar seu antigo amigo Levi a sério. – Você precisa parar de ouvir certas rádios, meu amigo. Agora, deixe-me ir. Tenho um almoço para ir. Assim ele se despediu de Levi, juntando-se a sua família quando sua sogra voltava com os gêmeos, cada um com uma barra de chocolate em mãos. Mazal mandou guardá-las para depois do almoço; eles até pediram auxílio para a avó com o olhar, mas ela concordou com Mazal. Eles seguiram caminhando pela rua de paralelepípedo até a casa dos sogros de Ezra. Enquanto as crianças se divertiam correndo para lá e para cá no gigantesco quintal – exceto por Ester, que estava presa atrás de um cercado brincando com várias bonecas diferentes; Ezra se perguntou o que poderia estar passando na imaginação da menina – os adultos estavam reunidos na mesa de jantar, conversando. – Estou intencionando aposentar. – Seu sogro disse em um momento, o que pegou Mazal e Ezra de surpresa, já que ambos achavam que ele trabalharia até o dia em que seu coração parasse de bater. – E estamos querendo mudar para um país tropical, Brasil talvez. Alguma ilha no Caribe. Ainda não sabemos. – Isto é sensacional. – Ezra pegou-se dizendo, mas seu tom deixou a ideia de que ele estava muito feliz por se livrar dos sogros. – Não pelo que vocês estão pensando, é claro. Eu creio que vocês devam sim aproveitar o resto do tempo que o Criador proporcionar para vocês. – Ezra! – Sua espora repreendeu em tom brincalhão. – Não! Não quero dizer que eu quero que eles morram! – Ele sentiu seu rosto esquentar; se não fosse pela pele morena, ele estaria vermelho como pimentão. – Vocês sabem o que eu quero dizer. Os três soltaram boas gargalhadas às custas de Ezra, que de fato não estava tão irritado assim. Ele estava feliz pelos planos deles e com certeza iria visitá-los durante as férias – cujo prazo já havia passado por sinal, já que Mazal estava cobrando uma viagem fazia um tempo. A conversa continuou, regada a vinho e boas lembranças. Mazal narrou como eles haviam se conhecido anos antes quando Ezra fora até a padaria de seu pai. Assim que colocou os olhos sobre ela, ele sentiu seu coração bater mais rápido, suas pernas tremerem e suas palavras fugirem. Fitou-a por longos, longos minutos até conseguir fazer o pedido graças ao t**a dado por um senhor que estava na fila atrás dele. Todos os dias seguintes, por quase uma semana, ele foi a padaria apenas para vê-la, gastando todo dinheiro que tinha; e quando as moedas acabaram, ele fez trabalhos aleatórios a diversos mercadores de Viena em troca de poucas moedas. Depois de quase um mês, ela finalmente perguntou por que ele ia ali todo dia; ele abraçou esta como a oportunidade para declarar seus sentimentos. O pai de Mazal apenas aprovou depois que aqueles mesmos mercadores dizerem o quanto Ezra era trabalhador e confiável. Eles se casaram cerca de dois anos depois, na sinagoga da qual tinham acabado de sair. Ele juntou dinheiro o bastante para montar sua loja que, por sua vez, o deu renda o suficiente para comprarem a casa onde moravam. Quando Mazal ficou grávida dos gêmeos, sua mãe veio viver com eles, para garantir que a gravidez fosse tranquila; ao nascimento de Eber e Elazar, o casal mudou praquela pequena cidade depois de venderem a padaria e abrir uma ali. Quando o sol estava se ponto, muito depois de eles fazerem a Minchá, a oração da tarde, o jovem casal partiu caminhando de volta a morada deles mesmo. Comeram o que sobrara do bolo de Ester – haviam levado uma parte para a casa dos pais de Mazal para servir de sobremesa – e colocaram as crianças cansadas para dormir. Ezra leu mais uma parte de Alice para Ester; e mais uma vez, a noite foi de amor entre o casal apaixonado.   A manhã da segunda-feira, dia treze de março, começou como todas as outras. Mazal acordou quase trinta minutos antes de Ezra para preparar o café. Ele mesmo se levantou m*l-humorado, vestiu-se e foi para cozinha. Abriu um leve sorriso quando descobriu uma pequena diferença: Mazal havia servido seu café antes de voltar a deitar. Ezra deleitou-se naquele pequeno momento de prazer. Ao sair de casa, botou o chapéu sobre a cabeça. Por alguma razão, aquela manhã estava enevoada, com apenas uma mínima brecha de sol conseguindo passar, como se quisesse iluminar o caminho daqueles que madrugavam para o trabalho. Ezra não sabia explicar, mas parecia que cada passo que dava em direção a sua loja ficava mais pesado que o anterior. Sentia um aperto no peito, quase como um presságio. Ignorou as sensações. Não acreditava nesse tipo de coisa. Assim que virou a esquina, ele viu a estranha movimentação. Seguiu em frente hesitantemente. Viu homens de pele branca, olhos azuis, vestindo uniformes militares camuflados; em suas cabeças, um capacete de p******o; em seus braços, uma faixa vermelha com um símbolo que ele nunca tinha visto antes e que não saberia descrever naquele momento. Tal símbolo, porém, ficaria marcado na mente de Ezra durante toda sua existência. Não era fácil esquecer a suástica nazista. Ezra logo notou que eles estavam parando e vistoriando apenas aqueles que tinham a pele morena, os olhos escuros e os cabelos pretos comuns dos judeus. Os soldados brutalmente ordenavam para que eles abrissem suas lojas; os que já as tinham aberto, estavam em chamas. Ezra sentiu sua respiração acelerar. Por um segundo, pensou no que Levi havia dito sobre a união da Áustria com a Alemanha – ele estava correto, pelo menos, quanto a esse fator. Logo em seguida, ele pensou em sua família. Sem tentar chamar muita atenção, ele deu as costas para rua e para sua loja, esticou a gola de seu casaco para esconder a pele de sua nuca e puxou o chapéu para esconder seu cabelo. Calmamente, ele voltou pelo caminho que veio. Se antes ele não acreditava em presságios, agora ele tinha plena fé que fora o Criador a enviá-los. Ezra aceitaria a partir dali que, se seus passos estão pesados e seu peito apertado, ele daria meia-volta e seguiria por outro caminho. Apenas quando virou a esquina e ficou fora do campo de visão dos nazistas, foi que Ezra correu. Ele tinha a sensação de que ainda correria muito em sua vida.
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