Áustria, Terra
1938
Ofegante, Ezra entrou em sua casa, fechando e trancando a porta atrás de si. Mazal, que estava saindo do banheiro, assustou-se ao ver seu marido ali. Quando seus olhos se encontraram, foi que ela soube que algo estava definitivamente errado, muito errado.
– Faça as malas para sete dias. – Ele disse mais rápido do que achava possível. – Nazistas. – Ofegou. – Estão na Áustria. Eles estão atacando todos os vendedores da rua. Tenho a sensação que não querem investir. Vamos para França, temos família lá.
– Mas e meus pais? – Mazal estava claramente preocupada enquanto pegava as malas de dentro do armário do quarto.
– Eles... Nós podemos tentar chegar até ele, mas será muito arriscado. – Ezra afirmou; quase imediatamente, Eber entrou coçando um dos olhos.
O casal se entreolhou, ambos preocupados e pensativos. Ezra tentava imaginar que os avós não se importariam de ser deixados caso isso significasse que os netos ficariam seguros; ao mesmo tempo, ele não conseguia externalizar esse pensamento sem parecer completamente insensível.
– Amor, isso vai soar grosso – ele disse, devagar, sem qualquer sinal de brutalidade ou pressa na voz –, mas eles não iriam querer colocar a vida de nossos filhos em risco para salvá-los.
– Eu... – Ela suspirou, enquanto pegava Eber no colo para colocá-lo na cama. – Eu sei. Vou preparar as malas das crianças. Você termina por aqui? – Ela estava à beira das lágrimas.
Uma vez sozinho, Ezra terminou o trabalho rapidamente, deixando as malas na sala de estar. Apesar da casa pequena, havia uma garagem anexada atrás da casa. Eles usavam principalmente para guardar bagunças e objetos que usavam com pouca frequência. No entanto, ele guardava ali um veículo que nunca dirigia. Ezra entrou na garagem, dando passos rápidos até o veículo.
Ezra queria ter tempo para apreciar aquele momento. Nunca pensara, ou se quer tivera a necessidade, de ligar o veículo, mas agora que era obrigado a fazer, queria ter tempo de reviver suas lembranças. Ele puxou a cobertura do carro. De idade desconhecida, aquele carro havia sido construído por seu pai, por isso não poderia ser reconhecido com qualquer marca ou modelo, mas também não fugir muito do que eram carros uma ou duas décadas antes.
Ele tinha dois pares de banco, na frente e atrás, o que deixaria suas crianças um pouco apertadas por causa das malas. O volante tinha o diâmetro de dois pratos combinados; o câmbio de cinco marchas subia até acima do joelho de seu pai – Ezra conseguia lembrar-se das poucas voltas que deu com ele –, de fato, quase chegando ao seu cotovelo.
Pegou um galão com gasolina que havia guardado há anos, torcendo para que estivesse boa o bastante para usar naquele momento. Desrosqueou o mais rápido que conseguiu a tampinha que ficava na frente estrema do carro, acima do capo. Depositou todo líquido praticamente sem derrubar. Por fim, finalmente se sentou no banco do motorista. Tirou do bolso sua chave, com uma diferente das outras, um pouco mais cumprida – feita também por seu pai – e colocou na ignição. Respirou fundo, orando para o Criador que o motor ligasse. Girou a chave.
O motor se engasgou algumas vezes, relutou, mas finalmente pegou. O ronco alto ecoava por toda casa, mas ele não se importava. Tinha um transporte para tirar sua família dali. Voltou para dentro de casa, pegou as malas, e jogou nos bancos traseiros, no chão, mais especificamente. Ao voltar para dentro, Mazal estava com os gêmeos de mãos dadas em fileira e Ester dormindo tranquilamente em seus braços. Ela saiu para ajeitar as crianças no carro enquanto o pai pegava o resto das malas.
Ezra ouviu murros na porta da frente quando ele saía pela porta traseira em direção a garagem. Antes de fechá-la atrás de si, ouviu alguém gritando em alemão para que contornasse a casa. De qualquer jeito, jogou as últimas malas nos colos dos filhos, que reclamaram. Antes que ele tivesse a chance de entrar no carro, ouviu passos vindos da lateral da casa que, consequentemente, dariam direto na saída sem portão da garagem. Ezra deu passos rápidos e parou pouco antes da quina, olhando para sua família e pedindo silêncio com um dedo.
Assim que o cano da metralhadora surgiu, Ezra agarrou-o e apontou para cima. O soldado apertou o gatilho de susto, mas antes que pudesse lutar para se desvencilhas, o judeu acertou-o com o ombro e todo seu peso, tomando a**a para si. Seu dedo roçou o gatilho, mas antes de atirar, olhou para seus filhos. Ambos o encaravam assustados, talvez pelo barulho, talvez pela posição militarista do pai.
Ezra sinalizou com a cabeça para que ele desse alguns passos para trás, de modo a ficar fora da vista das crianças. Assim que estavam, ele disparou apenas uma vez – saindo apenas um projetil – que entrou entre os olhos do soldado. Mais dois soldados surgiram da frente da casa, entretanto, antes que pudessem reagir, Ezra atirou em ambos. Eles caíram mortos sem nem ao menos sentir dor.
Pensando rápido, ele deixou a terrível sensação de ter acabado de tirar três vidas de lado. Não podia pensar neles ou nas famílias deles. Agora, Ezra tinha sua própria família com quem se preocupar. Antes de voltar ao carro, ele pegou munição dos três corpos, a metralhadora que já tinha em mãos e duas pistolas semiautomáticas. Ainda andando rápido, ele foi até o veículo dos soldados que estava parado diante da casa. Encontrou ali uma mochila camuflada, onde colocou os armamentos – exceto por uma das pistolas, a qual pendurou na parte de trás da cintura; também aproveitar para roubas dois galões de gasolina que eles tinham presos na parte de trás do veículo.
Colocou a mochila aos pés de sua mulher – que agora chorava desesperadamente, com Ester no colo, ainda dormindo; ela sempre tivera um sono pesado. Colocou gasolina no carro até encher o tanque ao máximo; então, sentou-se no banco do motorista e acelerou.
– Fechem os olhos, meninos. – Ele disse em tom autoritário logo antes de os cadáveres ficarem visíveis. Mazal ficou de olho para que eles não olhassem mesmo.
– Para onde vamos? – Mazal finalmente disse, depois de quase uma hora e meia de viagem, quando eles finalmente estavam em uma estrada paralela e longe do perigo imediato. Ezra não conseguiu determinar o tom em sua voz, o que indicava que ela mesma não tinha muita certeza do que estava sentindo.
– Para um lugar seguro, um antigo contato de meu pai. – Mazal ficou estranha, confusa até, mas sabia que não era o momento de perguntar, ainda mais em frente das crianças.
Ester acordou com fome por volta das onze horas, os gêmeos já reclamavam a um tempo. Mazal tentava acalmá-los, dizendo que logo parariam para comer – e enquanto ela fala, seu olhar ia para Ezra. Se alguém deveria prover por eles, era o próprio.
O casarão de uma fazenda surgiu alguns metros à frente. Ezra não sabia a quem pertencia, nunca estivera ali antes, apesar de saber até aonde aquela estrada levava. Virou à direita e acelerou um morro acima. Pararam diante na curva que ficava na frente da casa. Ezra desceu do carro, dizendo para eles ficarem ali. Assim que fechou a porta, ele tirou a a**a de sua cintura, conferiu-a se estava carregada e com a trava de segurança ativada, e a colocou na parte na cintura a frente. Fez tudo sem que os gêmeos vissem.
Ezra parou diante da porta e tocou a campainha. Ele sorriu quando uma mulher atendeu a porta. Ela usava um uniforme de serviçal, tinha a pele branca e olhos azuis; não parecia ter mais do que quinze anos.
– Eu e minha família. – Ele apontou para o carro. – Estamos viajando a algumas horas e não temos comida. Será que poderia nos ajudar? – A menina olhou para o carro, mas logo seu olhar estava de volta em Ezra.
– Meu amo não está e não tenho permissão de deixar ninguém entrar sem a presença dele.
Ela começou a fechar a porta, desculpando-se, mas Ezra a impediu e a assustou quando bateu com força na madeira. Discretamente, ele levantou a camiseta para mostrar a a**a. A garota deu um pulo de susto e engoliu seco.
– Nós só queremos comida.
Afirmando mais rápido do que o necessário com a cabeça, ela deu espaço para que ele entrasse. Ezra gesticulou para que sua família viesse. A garota os levou até a cozinha; mas antes de entrar, Ezra conferiu se não vinha ninguém pela estrada.
Ela os serviu da melhor maneira que conseguiu, com batatas e cenouras cozidas, uma carne que levou um tempo longo demais para assar e alguns rabanetes. Todos devoraram a comida sem reclamar – até mesmo os gêmeos, o que era uma surpresa, já que sempre era uma luta para eles comerem os vegetais.
Enquanto sua família voltava para o carro, ele agradeceu a garota – cujo nome ele não perguntou – e pediu vasilhas com água para levarem. Ela atendeu seu pedido, acrescentando uma vasilha de ferro com pães e queijo. A garota não parecia estar mais com medo. Despediu-se, desculpou-se e a deixou. Minutos depois, estavam acelerando pela estrada de terra.
Ezra via os riscos de entrar em Viena. Sendo a capital do país, a presença nazista seria gigantesca. No entanto, o submundo que existia por baixo de tudo aquilo era a saída que Ezra e sua família precisariam. Chegaram na calada da noite, entrando por uma rua quase escondida entre árvores. Logo, estas deram a vez para os prédios modernos e de baixa qualidade, sendo estes as moradias mais pobres da cidade. Apenas a luz da lua os iluminava e, no escuro, não era possível ver se você era ariano ou judeu.
Pararam diante de um bordel. Não havia pessoas na rua ou entrando – aparentemente, havia sido estabelecido um toque de recolher. Ezra não deixou de agradecer ao Criador por terem chegado até ali sem serem vistos. Todos desceram levando as malas – até mesmo os gêmeos tiveram que encarregar-se de uma delas. Bateu na porta de madeira; na altura de seus olhos havia uma portinhola de ferro, tão pequena quanto uma palma de mão feminina. Ela abriu-se de supetão; do outro lado, apenas o olho escuro de um homem. Este pediu a senha.
– Ofenkartoffel. – A portinhola fechou-se em seguida.
O barulho de cinco trancas sendo abertas foram ouvidas. Um homem uma cabeça mais baixo que Ezra abriu-a, olhando para ambos os lados da rua antes de sinalizar para que eles entrassem. Assim que a família o fez, ele fechou a porta e os encarou.
– Você é jovem demais para saber essa senha. – Disse, colocando os punhos fechados na cintura.
– Você também. – Ezra retrucou. – É a senha do meu pai.
– Eu também herdei esse lugar do meu pai. – Informou, sorrindo. – Sou Felix. Você deve ser Bassevi, afinal, cada um de nossos sócios tem uma senha específica. Não preciso saber seu primeiro nome. Você é judeu e está com sua família inteira, então vou assumir que não precisa dos nossos serviços convencionais. – Ezra concordou; de fato, nunca precisara dos serviços de um bordel. – Siga-me.
O pequeno hall em que estavam servia apenas para separar a porta da rua com a entrada de fato do lugar. Ali, os clientes deixavam os sapatos em uma estante dividida em cabines, seus guarda-chuvas em dias que estes se faziam necessários e malas de todos tamanhos. No momento, havia apenas três pares de sapatos masculinos. Felix abaixou-se diante do móvel, tateando um pouco por baixo dele. Logo ouviram um click e um alçapão abriu-se diante da porta que tinham acabado de entrar.
– Sigam o túnel até o final. – Felix instruiu. – Use a mesma senha. Avisarei que estão indo. – Ezra sinalizou positivamente com a cabeça.
Dali para o túnel era um buraco um pouco mais alto que Ezra, que foi o primeiro a pular para dentro dele. A mulher passou para ele a mochila com as munições e a metralhadora. Em seguida, passou as crianças, então as malas e, por fim, ela mesma entrou. Assim que o alçapão fechou em cima deles, luzes elétricas acenderam-se por todo o caminho. Ezra logo soube que levariam pelo menos uma hora para chegar ao final dele; apesar de reto, eles eram incapazes de ver o final.
Quando os pés das crianças e as costas dos adultos doíam, eles resolveram deitar-se para descansar. Eles devoraram o que ainda tinha do pão e do queijo; beberam até a última gota de água. Não demorou muito para que os gêmeos e Ester dormissem profundamente.
– Como? – Mazal disse com sua voz claramente cansada.
– Como o que? – Ezra disse, fingindo-se ignorante; ele sabia muito bem do que ela estava falando.
– Como nós chegamos aqui? Como escapamos aqueles soldados? Como você sabe usar uma metralhadora? Ou como sabe a senha para entrar em um bordel? – Mazal falou rápido, mas sussurrava para não acordar as crianças.
– Meu pai foi um espião durante a Grande Guerra. – Explicou. – Ele nunca me contou muitos detalhes sobre suas missões, mas ele me treinou durante toda minha adolescência. Me ensinou a atirar, reconhecer padrões, lutar, principalmente como desarmar alguém. Quando ele morreu, além de deixar o carro que nos trouxe até aqui, ele deixou um diário no qual marcou todos os esconderijos e contatos que ele usara durante a guerra. Por isso eu sabia como chegar até aqui por aquela estrada paralela.
– Por que nunca me contou isso?
– Não é exatamente um tópico fácil de se trazer. – Ezra fitava o chão, como costumava fazer quando ele estava envergonhado por algo. – E nunca achei que essas habilidades seriam necessárias.
O silêncio tomou conta dos dois, tornando-se palpável antes que eles decidissem dormir. Mazal, que tinha os gêmeos com as cabeças deitadas em suas pernas, inclinou-se para o lado, ainda encostada na parede, até deitar sua própria cabeça no ombro de Ezra. Ele sorriu levemente, sabendo que aquele gesto significava que seu casamento não estava em perigo.
Despertaram depois de algumas horas de sono. Até mesmo Ezra dormiu e sonhara com seu pai. Retomaram a caminha por mais de uma hora. Viram a porta de aço quase quinze minutos antes de atingi-la. No entanto, ela era diferente de uma porta tradicional, tendo apenas uma alavanca giratória no meio, como se fosse uma porta de banco. À esquerda, uma cabeça mais alta do que Ezra, havia uma pequena passagem fechada também por aço.
Na parede ao lado direito, havia um círculo de metal preso a uma corda fina. Não vendo alternativa, Ezra a puxou. Minutos depois, a passagem da esquerda se abriu. Nenhum deles foi capaz de ver o rosto da voz grossa que perguntou sobre a senha; o pai respondeu como havia feito antes. Ele ouviu engrenagens se movendo quando a porta se abriu.
Um homem flanqueado por dois homens armados, que apontavam seus rifles para a cabeça dos adultos, estava parado ali. Ele era estranhamente familiar com sua jugular quadrada e olhos cor-de-mel.
– Luigi? Giannini? – Ezra arriscou.
O homem abriu um sorriso, desceu os degraus que os separavam e abraçou-o como se fossem velhos amigos.
– Nunca achei que te veria aqui, velho amigo. – Luigi disse, segurando ambos os ombros de Ezra. – Bem-vindo a Nachtkrapp. – E o abraçou outra vez.