Capítulo 06: Luz

2638 Words
Chamei minha espada e adaga para minhas mãos, invertendo a adaga para defender-me. Encarei cada um daqueles pares de olhos com toda a determinação. Eu sabia que minhas chances de derrotar uma quantidade tão grande de Filhos era nula, mas a vida de Lael e Týr estavam em minhas mãos naquele momento. Todavia, combate não seria necessário. Um dos pares de olhos deu alguns passos a frente, revelando-se à luz que ilumina o Paraíso. Ela era muito bela, com traços delicados e lábios grossos e vermelhos como maçãs suculentas. Nas vezes que a vi antes, ela trajava uma roupa elegante, seja em vestido ou em calça, mas naquela floresta perdida em qualquer lugar do Paraíso, ela decaíra para um simples par de calças de sarja e uma camiseta regata – parecia até que tinha saído de Indiana Jones. Seu olhar, apesar da cor ameaçador, parecia derrotado. Seu semblante estava cansado, como que o peso do mundo e da guerra estivessem sobre seus ombros. Abigail – ele precisou conter-se para não rir do nome – estava muito longe da gloriosa mulher e Senhora de Guerra que fora um dia. Aparentemente, servir Kifo, como Týr havia contado que ela fizera, tinha um caro pedágio. – Olá, Leo. – Ela disse; sua voz ainda era doce como da primeira vez que a ouvi, o que aconteceu depois de ouvir aquela voz pela primeira vez, porém, foi terrível. – Já faz muito tempo. – Eu deveria te m***r agora mesmo. Pelo que fez comigo e com Týr. – Retruquei, ainda decidindo se deveria ou não simplesmente atacar. – Você e seu anjo estão cercados. Tenho dezenas de Filhos prontos para queimar os dois com lava. – Apesar das palavras, ela não parecia estar me ameaçando, pelo contrário, ela estava na defensiva. – Eu irei te escoltar imediatamente para fora de minha ilha antes que Kifo venha em seu encalço. – Onde estamos exatamente? – Creta. – Ela informou. Não fiquei surpreso que nós atravessamos o Mar Mediterrâneo, apesar de tal fato ter sido um completo acidente por parte de Lael – sem uma de suas asas, ele provavelmente só nos levou para terra seca mais próxima. Em nenhum momento eu abaixei minha espada. – Eu preciso ajudá-lo. – Falei em bom som apontando para Lael; nenhum deles pareceu se importar. – Preciso de um hospital ou um lugar limpo o bastante para cuidar de suas feridas. – Eu não irei ajudá-lo. Ele é um inimigo e se Kifo souber, e ele saberá, que nós ajudamos a um inimigo, ele virá pessoalmente terminar o serviço que começou. – Abigail levantou o cabelo cumprido que caía na lateral de seu rosto, revelando uma queimadura profunda. – Depois que falhamos em conquistar Nova Jerusalém e ele escapou da prisão em que os anjos o colocaram, ele nos baniu para Creta depois de me torturar por três dias. Eu não sei como, mas ele conseguiu deixar marcas em mim que jamais saíram. – Posso dizer o mesmo em r*****o a você e a nós. – Retruquei, deixando transparecer a ira em minha voz. Abigail ficou pensativa em um momento, como se todos os dias que compartilhamos em Paris voltassem à tona. – Unosh! – Ela gritou, virando a cabeça de lado, como se tentasse olhar para seus homens. Segundos depois, um homem careca e sem camiseta apareceu do lado dela do nada; era um Pnamryak, um Ryak capaz de teleportar-se de um lugar a outro. – Leve-os para o Heraklion. Não é nosso melhor lugar, mas está fora do que Kifo me deu como território. Se perguntarem, o anjo te levou até lá sozinho. Não confiei muito no que estava prestes a acontecer, mas deixei que Unosh tocasse meu ombro contanto que a ponta de minha espada estivesse grudada em seu pescoço. Ele abaixou desengonçadamente para tocar em Lael; no segundo seguinte, desaparecemos. Diferente do vórtex dos anjos, a viagem de Pnamryak não irritou meu estômago, que já era uma grande vitória. Unosh nos deixou em seguida. Olhei a minha volta, descobrindo o hospital vazio de qualquer alma – no Paraíso, aqueles lugares costumavam servir para cuidar de almas natimortas. Precisei caçar uns panos limpos, que molhei com um pouco de álcool e limpei toda a areia no corte de Lael – o qual parecia ter sido cauterizado e não sangrava mais, o que me pegou de surpresa, afinal, ninguém tinha feito coisa alguma com ele. A reação, pelo que Týr explicou em seguida, acontecia pela conexão que aqueles seres alados tinham com o Fogo Celestial. Lael estava tão profundo em seu subconsciente, que ele não se mexeu enquanto eu mexia em seu ferimento. Encontrei gases e esparadrapo, que serviram para fazer a primeira p******o ao ferimento. A todo momento me perguntava se os anjos poderiam pegar infecção; ou se existia infecções no Paraíso, mas imaginei que não, já que também não havia corpos de fato – exceto por mim e meus companheiros que comeram do Fruto p******o. Por fim, usei algumas faixas que estavam em um armário há cinco salas de distância da que estávamos para cobrir o ferimento. Difícil, porém, foi achar roupas que serviriam a ele – até mesmo tirar a armadura e dar banho, para tirar o sangue, suor e areia dele, foram tarefas menos complexas. Quando finalmente consegui vesti-lo em uma calça de moletom e uma camiseta de algodão – eu mudei de ideia quando tive que passar a asa pelo buraco que fiz com uma tesoura. Apenas com a ajuda de Týr consegui deitá-lo em uma cama. Foi então a minha vez de tomar banho, me livrar do sangue do anjo que estava por toda a minha roupa, enquanto Týr se encarregava mais uma vez de limpar e restaurar meu casaco. – Como está se sentindo? – A fada disse, entrando no banheiro depois de terminar seu serviço, o qual eu tinha certeza que ela amava fazer. – Não é muito fácil enfrentar provavelmente a pior pessoa que passou na sua vida, e morte, no caso. – Na verdade, bem. Ela teve o que mereceu. – Eu tentei colocar raiva em minha voz, mas a imagem da queimadura em Abigail assombrava minha mente. Pelo menos, eu não tinha ficado com nenhuma cicatriz permanente graças a magia de Týr e o feitiço que nos tornara Druga Dushi. – Eu tenho que concordar. – Eu tom não era muito melhor do que o meu. – O que acha que aconteceu com Lana e Miguel? – Minha voz era de genuína preocupação, sabendo que nós os tínhamos deixado enfrentando três Soulryaks. – Tenho certeza de que estão bem. – No entanto, notei que ela não se ofereceu para usar a magia e descobrir o que havia acontecido com eles. – Você não gosta muito de Lana, não? Desde que a encontramos em Roma, você nunca foi com a cara dela. – Meu problema não é exatamente com ela, mas o que ela representa para... – Ela se interrompeu, mas eu sabia exatamente de quem era o nome que ela não disse. Thais. A primeira companheira a juntar-se a mim nesta bizarra missão em que estávamos agora. Eu sempre soube de seus sentimentos – e não me orgulho de dizer que me aproveitei deles quando estávamos em Londres – e sabia que a presença de Lana, minha primeira namorada que fora terrivelmente tirada de mim e por quem eu claramente ainda tinha sentimentos, não fazia bem para Thais. E Týr era cem por cento team Thais. – Acha que eles chegaram a Kitami? – Mais e mais, eu percebia que estava longe das pessoas com quem deveria estar. – Sim. Eles chegaram por lá dois, três dias atrás, enquanto estávamos em Nova Jerusalém. – Ela informou, para minha surpresa. – Eu contatei Thais algumas vezes através de magia. É muito mais fácil quando a outra pessoa também é uma maga. – Por que não me disse? – Eu finalmente falei, depois de alguns minutos em silêncio, enquanto eu me enxugava e decidia se colocava uma roupa macia para passar a noite ou algo que me ajudava para sair e conseguir mantimentos. – Eu achei que você não iria querer saber. – Imediatamente, eu soube que era uma mentira; e eu nem precisava da nossa conexão Druga Dushi. – Essa a primeira vez que mente para mim, Týr. – Coloquei toda a mágoa que sentia naquele momento nestas palavras. – Mas não importa. Tenho certeza que você tem uma razão para não me falar. Decidi vasculhar o hospital sozinho por qualquer coisa que pudesse nos ajudar a passar a noite. Encontrei uma cozinha alguns almoços pré-prontos dentro de uma geladeira, que milagrosamente ainda estava com eletricidade. Esquentei uma refeição feita de batatas e carne cozidas, com alguns vegetais defumados e um pouco de salada que encontrei em potes separados. Imediatamente pensei no Brasil e no arroz e feijão que sempre tinha nas refeições – eu não me lembrava de ter sentido falta do país de metade da minha família antes. Comi ali mesmo, sozinho, já que Týr havia ficado sozinha – notando que eu precisava da solidão para colocar pensamentos em ordem. Minha mente vagou pela guerra que acontecia ao nosso redor, foi para Elena e o terrível caminho que ela tinha traçado por minha causa; a culpa já estava me corroendo a bastante tempo. Pensei em Lana e em tudo que ela estivera fazendo por mim, mesmo nas sombras, desde que nos reencontramos em Roma. Também gostaria de entender o motivo de Miguel – já que o de Lael era bem óbvio – para estar nos seguindo até o Egito. Sim, eu sabia do sonho que ele tivera com o Criador, mas eu não conseguia entender como ele poderia ter uma fé e confiança tão grande em um Ser que, mesmo superior a eles, ainda é vago e não interfere para impedir o sofrimento dos outros. Eu estava extremamente curioso para saber o que o querubim iria encontrar em Alexandria – e qual era diferença entre o Fogo Celestial que eles já podiam invocar a qualquer momento e o que ele supostamente encontraria dentro da cidade; sim, era o primeiro Fogo Celestial, mas me perguntava qual era a diferença prática entre eles. Um barulho vindo do final do corredor me trouxe de volta ao presente. Levantei-me, apenas então percebendo que não tinha levado nem minha adaga comigo. Cautelosamente, fui até a porta para entreabri-la e olhar para o lado de fora. O corredor terminava em uma porta de saída de emergência, enquanto do outro lado tinha um elevador. Ambos estavam fechados e sem qualquer sinal de movimento. De repente, senti uma intensa agitação, sabendo que não pertencia a mim, mas a Týr. Corri pelo corredor, indo para as escadas, sendo que descer dois andares de elevador seria muito mais rápido. Assim que saí para o andar, vi uma dupla de Filhos do Abismo empurrando uma maca com Lael. Um deles seguiu em frente enquanto o outro se interpôs entre mim e o anjo. Fiz surgir a armadura dos Heartless enquanto eu corria contra ele – apenas imaginando o quão badass eu estava. Bloquei a lâmina de lava na qual sua mão tinha se transformado, ao mesmo tempo, socando-o com um gancho de direita; percebi que ele não esperava aquilo, o que o desiquilibrou. Um chute em seu joelho derrubou-o. Chamei por minha espada em seguida, vendo-a voar, fazendo uma curva pela porta de saída do quarto; no mesmo segundo, transformei aquele Filho em vagalumes. Notei, então, que Týr usava um feitiço para manter a porta do elevador aberta. O Filho, confuso ali dentro, não conseguia descobrir o motivo de ainda não ter escapado. – Abigail te mandou? – Eu vociferei, apontando minha lâmina para ele; eu nunca tinha visto um Filho do Abismo com medo antes, mas não vi outra maneira de descrever o olhar que ele tinha. – Não, eu mandei. – Ouvi uma voz conhecida, mas a qual tinha ouvido apenas uma vez antes em um acesso de fúria na Batalha de Roma. Virei-me para descobrir Kifo parado ali. Como ele havia entrado, eu não tinha ideia; se ele estava ali desde meu combate com o primeiro Filho, eu não tinha ideia. Senti meu coração acelerar ao ver aqueles olhos laranjas; ainda mais quando ele abriu suas asas oleosas e laranjas, como se ele quisesse me amedrontar. Ele conseguiu com aquele mínimo esforço; de qualquer forma, eu levantei minha espada. – Você tem sido um calo no pé, como vocês humanos disse, desde o momento que meu pai te colocou neste maldito mundo. – Eu nunca tinha visto alguém ameaçador como ele. – E agora que os Filhos do Abismo são meus, você não poderá se esconder mais de mim. Desista, Leonard Ross – enquanto ele falava, eu vi o punho de uma espada surgir em seu peito; ele agarrou a a**a com o braço direito e a puxou de uma única vez; tal lâmina, de prata, tinha as pontas alaranjadas, Týr já havia me falado que Kifo detinha a a**a do antigo Anjo de Prata e que, portanto, usava o Fogo Celestial como os anjos – antes que eu coma sua alma. Eu respirei fundo, tentando controlar meu pulso e não deixar que as palavras deles me intimidassem; tentei afastar o pensamento que ele era milhares de vezes mais forte do que eu, inclusive fisicamente. Kifo avançou para um golpe rápido do alto, o qual eu desviei milagrosamente. O Filho da Morte atacou mais algumas vezes, mas eu consegui escapar por um fio; isto pareceu deixá-lo furioso por alguma razão. Seus ataques aumentaram, forçando-me a usar a espada para me defender. Contudo, logo no primeiro bloqueio eu notei duas coisas muito importantes: Primeiro: que a força brutal de Kifo não dilacerou os ossos de meu braço de uma única vez, como ambos achamos que aconteceria – apesar, de que a dor que eu sentia era intensa. Segundo: cada vez que tinha espada tocava a dele, ela brilhava; e tal brilho aumentava a cada encontro. Estranhei, mas continuamos trocando golpes. Os primeiros milagrosos segundos do combate passaram inexplicavelmente em nível igualitário, o que deixou a ambos de nós confusos. Ao fim deste tempo, minha lâmina estava branca e brilhante, como se fosse feita de diamantes sob o sol. Levantei o braço para um golpe alto – o que para Kifo era mais ou menos na altura de seu peito. O Filho da Morte não parecia mais interessado em defender, então deu um salto para trás com a ajuda de suas asas. Minha espada foi direto contra o chão e, assim que bateu contra o piso, uma luz branca e intensa dominou todo o ambiente, quase me cegando. Em meio a luz houve gritos. Eles vinham de Kifo e do Filho que estava no elevador. Eles urravam de dor, como se alguém estivesse arrancando suas peles. Não demorou muito para que o cheiro de carne assada dominasse o ambiente – e era um terrível cheiro de podre. A luz finalmente deu uma trégua e permitiu-me ver. O Filho da Morte queimava em chamas laranjas lindas, porém fatais. Ele deu passos para trás, um tanto na diagonal, indo na direção da janela pela qual tinha entrado. Eu aproveitei o momento. Corri para ele, saltei, e acertei-o com os dois pés no peito e toda a força que eu tinha. Ele desequilibrou-se e caiu pela janela, quebrando-a. Fui até ela para vê-lo, ainda pegando fogo, voar pelo céu em recuo. Virei-me para o elevador, descobrindo que o Filho havia se tornado **, deixando apenas uma alma circular em seu lugar – esta, veio na minha direção, saiu pela janela e ganhou os céus. Os olhos de Týr encontraram os meus com a mesma indagação: o que tinha acabado de acontecer?
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