Capítulo 08: Passado e Presente

2662 Words
Áustria, Terra 1938 Ao abraçar seu antigo amigo, Ezra teve lembranças da infância, quando eles jogavam bola em um campo de terra que tinha na rua de baixo de sua casa. Luigi sempre fora um menino excluído, já que não tinha a mesma pele morena das outras crianças; apesar de que esse mesmo fator o fazia desejado pelas menininhas – o que só aumentava a raiva que os garotos sentiam dele. Não era o caso de Ezra. Eram inseparáveis, sempre andando juntos. Os únicos momentos que passavam longe um do outro eram durante os treinos de Ezra – que começaram aos doze anos de idade. Isto é, até Luigi Giannini perder o pai judeu, quando ele e a mãe foram para Roma, viver com os avós. Trocaram cartas durante um tempo, mas as cartas tornaram-se escassas durante a guerra, até não se falarem mais. A família subiu os degraus e passaram pela porta gigantesca de aço, que se fechou em seguida. Eles estavam em uma antessala cujas paredes eram amaciadas por colchonetes e o chão era coberto por um tapete macio – o que foi um alívio em comparação ao chão de concreto que vinham caminhando até então. Os dois homens que estavam com Luigi colocaram suas armas penduradas de lado para fecharem e trancarem a porta. Apenas então, o caminho de saída abriu-se diante deles. Do outro lado da porta havia um escritório, parecido com o de um jornal. Havia dezenas de mesas de madeira unidas aos pares, nos quais homens e mulheres trabalhavam com as mais diversas máquinas de comunicação – rádio, código Morse e outros métodos que Ezra não conhecia. As paredes formavam um quadrado quase perfeito; nelas, portas de aço e madeira que levavam para lugares diferentes e desconhecidos. Ezra tentou lembrar-se de quando seu pai havia falado daquele lugar, mas não conseguiu, chegando a conclusão que ele nunca tinha falado, o que indicava que ele nunca tinha ido ali. No entanto, Ezra imaginava que todos as bases da Nachtkrapp deveriam ser daquela maneira. Fundada antes da Grande Guerra, a Nachtkrapp era uma organização de espionagem judia que costumava ser contratada para trabalhar por algum país ou aliança específica, mas nunca com dois países em lados opostos de um conflito. Alguns também faziam trabalho de detetive particular em tempos de paz. Ezra via claramente o conflito daquela organização, já que informações poderiam vazar facilmente – mas, se fosse o caso, eles não conseguiriam trabalho, já que tudo dependia da reputação que eles construíram. – Como você veio parar aqui? – Ezra questionou enquanto caminhavam. – Você nunca foi discreto para ser um espião. – Devo concordar. Mas quando se está no meio de milhões de pessoas que se parecem com você, é muito mais fácil se misturar. – Brincou. – Eu trabalhei por um tempo na polícia de Roma. Fiz parte de uma investigação sobre alguns assassinatos que estavam conectados com o senhor Elkind, que é o fundador da Nachtkrapp como você deve saber, e ele me chamou para treinar e trabalhar aqui. Isso já faz uns quinze anos, eu acho. E como era a sua vida antes dos nazistas? – Como sabe que estamos fugindo de nazistas? Parecia que Luigi havia programado aquela pergunta, pois assim que Ezra a fez, ele abriu uma porta de madeira que levava a uma espécie de bunker. Ali, centenas de famílias estavam abrigadas em beliches e colchonetes no chão. A maioria tinha a pele morena dos judeus, mas havia pessoas de todas as cores; todos estrangeiros. Todos caçados pelos soldados nazistas. – Vocês não são a única família de espiões judeus que tiveram a ideia de vir para cá. – Luigi explicou. – Não se preocupe, temos comida e água o suficiente para sustentar milhares de pessoas por meses. – E tenho a sensação de que mais virão em breve. – Ezra disse. – Qual é o seu plano a longo prazo? Nós, ou eles até, não poderemos ficar aqui até o fim da guerra, já que essas poderem durar muito mais tempo do que meses. – Estamos formando planos para mandá-los para países seguros na África, América e Ásia, mas não é fácil. – E quanto a Europa? – Ezra disse. – É possível nos levar até a França? Temos família lá que poderá nos ajudar. – Quem? – Estranhou. – Não lembro de você ter parentes por lá. – Alguns primos distantes. E então? – Sim, eu consigo te colocar em um trem até lá, mas não será fácil. – Explicou. – Ou barato. Bem, se ajeitem aqui, conversem com as pessoas. Quando eu conseguir uma passagem segura para vocês, eu venho falar com você, Ezra. – Luigi sorriu e colocou a mão no ombro de Ezra. – Foi bom revê-lo. Uma vez sozinhos, a família encontrou um banheiro para banharem-se, tirar toda a sujeira acumulada da viagem. Enquanto mãe e filhos estavam longe, Ezra procurou uma maneira de esconder as armas que carregava – ficara surpreso que Luigi não as pedira; mas sabia que ele as tinha notado. Decidiu colocar embaixo de seu beliche, que ficava colada em uma das paredes. Depois de um jantar reforçado – todos eles comeram muito mais do que o fariam se não tivessem passado horas e horas com apenas uma refeição e um pouco de pão – eles se deitaram. Os gêmeos tomaram a parte de baixo de um beliche ao lado do pai, enquanto este ficava em outra na parte de cima e Mazal embaixo com a pequena Ester. Nenhum deles estava confortável como estariam em casa, mas era melhor do que tornarem-se prisioneiros nazistas. Ezra sonhava com seu pai outra vez, mais especificamente com o momento em que soube de sua morte, apesar de no segundo anterior ele estar sentado em sua cadeira lendo jornal – ele até se virou para garantir que não estava perdendo a cabeça, mas na poltrona havia apenas o jornal agora –, quando sentiu uma mão infantil apertando seu ombro para que despertasse. Relutou a princípio, mas logo abriu os olhos. Reconheceu Eber por causa de uma pequena cicatriz que tinha no queixo, resultado de um acidente quando Mazal estava amamentando. – Teve um sonho r**m? – Ezra sussurrou; o menino apenas concordou com a cabeça, subindo na cama do pai sem esperar pela permissão. – O homem de pele cinza de novo. – Explicou, enquanto se aconchegava em um dos ombros do pai. – Ele quase me pegou dessa vez. – E o que você fez? – Ezra podia sentir que sua mente escorregava para o Reino dos Sonhos. – Corri. – Respondeu de forma simples; Eber dormiu logo em seguida.   Apesar de ter explorado o esconderijo da melhor maneira que pôde – a maior parte das salas e acessos eram proibidos para não-membros – Ezra não cruzou com Luigi nenhuma vez, isto é, até o dia que o espião veio conversar com Ezra sobre a fuga para França. Luigi Giannini avisou todos os perigos que a família iria correr. Explicou que a viagem seria longa e nem um pouco confortável, já que eles viajariam junto, ou melhor, abaixo de bagagens em um compartimento secreto; caberia os cinco, mas não haveria luz e não poderiam descer em paradas. Seriam de doze a treze horas praticamente sem espaço para se mexer. Mas eles chegariam lá sãos e salvos. Ezra perguntou se ele tinha pílulas para dormir. Luigi logo soube do plano, alertando que seria difícil dosar as crianças de maneira correta. – Deixe que eu me preocupe com isso. – Retrucou; ele tinha experiência com aquele tipo de medicamento, já que Elazar tivera problemas para dormir desde os quatro anos de idade. Luigi levantou as mãos, em sinal de defesa. – Você disse que não seria barato. – Ezra acrescentou, lembrando-se das palavras. – E o trem só parte daqui a dois dias. O que tenho de fazer? – Por que acha que eu quero algo de você? – Luigi falou com uma seriedade falsa; ambos sabiam bem das habilidades de Ezra, mesmo que ele não as praticasse com frequência. – Não brinque comigo, Luigi. É a vida de minha família que está em perigo. – Você tem razão. – O amigo respondeu; dessa vez, a seriedade era verdadeira. – Nós estamos caçando um homem, um tenente, mas cujo nome não sabemos. Ninguém, nem mesmo os nazistas, o conhecem. Todos o chamam de Karmesin Vernivhtung, a Destruição Carmesim. As histórias sobre ele vêm desde antes da Grande Guerra sobre os mais diversos experimentos, coisas terríveis como pessoas tendo seus órgãos arrancados e manipulação elétricas no cérebro com as pessoas ainda vivas. – Achei que a Nachtkrapp trabalhava exclusivamente com informações. – Ezra retrucou, lembrando-se das poucas vezes que seu pai falou sobre a organização. – O Karmesin está buscando um livro perigoso. O único problema é que ninguém quis comprar a informação ou fazer algo contra ele. O que significa que a liderança não permite que nós intervenhamos. – Luigi sorriu, mostrando seus dentes brancos. – Mas você não é um de nós e, portanto, pode ir atrás do Karmesin. Eles permaneceram em silêncio por alguns minutos. Ezra avaliava seu velho amigo, procurando por qualquer coisa que pudesse indicar que ele estava mentindo ou armando alguma coisa; não é porque se conheciam há anos que Ezra confiava em Luigi. – A missão é simples: entrar sozinho, tirar alguns obstáculos do caminho e sair com o alvo. Você deverá levá-lo para um local seguro. – Explicou. – Qual o nível de segurança? – O Karmesin viaja apenas com uma dupla de seguranças. Eu aconselho matá-los primeiro, já que uma luta contra eles vai te custar algumas costelas quebradas. – Explicou. – Quanto ao vendedor, é difícil dizer. O importante é que você impeça que a venda aconteça. – Ezra pensou por alguns segundos, mas concordou. – Ótimo. Você parte em uma hora. Logo em seguida, uma mulher entrou na sala em que estavam andando sensualmente, com o quadril indo da direita para esquerda; a saia apertada não parecia atrapalhar nem um pouco. Seu rosto branco, cachos castanhos e olhos escuros podiam levar qualquer homem ao delírio. Luigi pediu para acompanhá-la, já que ela iria equipá-lo para a missão.   Ezra estava sentado no banco de um bar a frente do prédio onde o Karmesin faria a compra do livro que Luigi tanto temia. Por três horas após o horário supostamente combinado, Ezra esperou, mas nada acontecia. Ele chegou a se perguntar se a informação da Nachtkrapp estava correta. Pela janela, ele viu um veículo parando diante do prédio. O primeiro homem a descer era um ariano com dois metros e meio de altura; seus músculos eram tão intensos que ele não conseguia fechá-los junto ao corpo. A pele era pálida, quase cinzenta, e cheia de cicatrizes no rosto e pescoço; o resto de sua pele estava coberta por um terno de aparência cara. Careca e com os olhos praticamente brancos. Ele abriu a porta de trás do carro para o segundo homem. Este um pouco mais baixo que o primeiro, tendo pelo menos dois metros. Ele vestia um terno prateado com uma camiseta vinho de seda, sem gravada. Seu cabelo era de um vermelho intenso, como fogo, e comprido até um pouco abaixo dos ombros e estavam penteados para trás. Ezra não conseguia ver seu rosto. O terceiro homem a sair era quase igual o primeiro, mas ele tinha cabelo loiro cortado rente. O primeiro e o segundo homem entraram, deixando o terceiro para guardar a porta do lado de fora, o que funcionava perfeitamente para Ezra. Ele se levantou, jogando algumas notas no balcão e deixando sua cerveja pela metade no copo. Antes mesmo que a porta do bar fechasse completamente, Ezra já havia disparado na cabeça do primeiro homem; sangue explodiu de sua nuca, manchando toda a parede. Graças ao silenciador em sua p*****a, ninguém ouviu o disparo. Ezra respirou fundo antes de abrir a porta – e puxar o corpo para dento, assim ninguém o veria. O lugar era antigo, um prédio de apartamentos, mas ninguém mais vivia ali. O hall tinha duas portas, uma de cada lado, uma escada que subia para o segundo andar; atrás dele, ao lado direito na porta, havia uma caixa de correios com oito buracos para cartas. Parou para ouvir, tentando perceber onde havia movimento; escutou passos no andar superior. Silenciosamente, ele subiu os degraus, fazendo o possível para manter-se fora da visão de possíveis inimigos; consegui ver que dois homens estavam parados à uma porta no fim do corredor. Ambos tinham revolveres automáticos em mãos. Nenhum deles, porém, era o pálido das cicatrizes. Ele respirou fundo, tendo o futuro de sua família em mente, ele saiu de seu esconderijo. Ezra disparou rapidamente, acertando os dois entre os olhos antes que eles pudessem reagir. Avançou, passando por cima dos cadáveres. Parou com a mão na maçaneta, controlando-se para não a mexer involuntariamente e alertar sua presença. Encostou o ouvido na porta e se concentrou. Seu pai costumava dizer que os ouvidos eram mais importantes do que os olhos; que ele poderia detectar inimigos pelo movimento de suas roupas ou, até mesmo, pela respiração se o lugar estivesse silencioso o bastante – o que não era o caso, pois a rua em que estavam eram bem movimentadas. Ezra, porém, não ouviu coisa alguma. Ele entrou com a a**a mirando alto para acertar o pálido-das-cicatrizes. No entanto, ele já não estava ali, nem mesmo o suposto vendedor estava. O Karmesin estava sentado na única cadeira do cômodo, que estava no centro. Ele tinha o olhar esperto, vidrado em Ezra, como se o conhecesse; o judeu, porém, nunca tinha visto homem mais f**o. Sendo um pouco mais velho que Ezra, o Karmesin tinha a pele branca, acinzentada até, com os olhos em um estranho tom rosado. Ele tinha uma cicatriz que fazia o contorno inteiro de seu rosto, como se em algum momento ele tivesse trocado de face – Ezra jamais imaginaria o motivo de uma pessoa fazer isso, se é que era possível, mas para aquele homem com certeza não fora uma questão de beleza, já que ele ainda parecia ter sido reconstruído. Sua boca estava contorcida no que parecia um sorriso. – Você deve ser o enviado da Nachtkrapp. Muito bom. Vamos indo. – Ele se levantou ao mesmo tempo em que abotoava seu terno. Em nenhum momento, Ezra deixava de apontar a a**a. – Onde está o vendedor? E seu outro guarda? – Ah, sim, eles fugiram, é claro. Se não tiver mais perguntas, creio que seus companheiros nos aguardam em outra localização, não? O Karmesin esticou as duas mãos para frente, esperando pelas algemas. Ezra simplesmente sinalizou que não com a cabeça e os dois saíram do prédio – o inimigo, é claro, com a a**a colada em suas costas. Tomando cuidado para que a p*****a não fosse vista, eles caminharam dois blocos de prédios, entrando em um beco entre dois. Luigi estava no fundo daquele beco, aguardando. Dois homens e uma mulher estavam com ele. Ela veio a frente, seguida pelos dois. Sem hesitar, ela injetou uma agulha no pescoço do Karmesin, que logo apagou. Ezra aproximou-se de seu velho amigo para informar: – Algo não está certo aqui. Um dos capangas dele escapou com o livro e ele se entregou sem luta. – Você não precisa se preocupar com isso, Ezra. Você e sua família logo partirão para França. Você não terá mais nada a ver com isso. – Luigi retrucou, com um sorriso.   A noite em que se infiltrariam no trem chegou rápida. Ezra cruzava entre as mesas dos trabalhadores com Ester nos braços e Eber caminhando ao seu lado. Eles cruzaram com o Karmesin, que estava sendo escoltado mais uma vez para sala de interrogação. Ele olhou para a família, seus olhos se arregalaram de surpresa por um segundo, mas logo em seguida seus dentes amarelos surgiram em um sorriso malicioso.
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