Kitami, Paraíso
Em toda sua vida e morte, Thais Walker usara uma espada apenas uma vez – em Paris, quando Leo havia sido raptado pelos Filhos que dominavam a cidade. Entretanto, os dias que passou no esconderijo dos Heartless provaram-se tão entediantes que ela não viu outro meio mais interessante de passar os dias do que tomar aulas de kendo com Minato; durante as quais ele provara-se muito falador, contando para ela histórias de sua vida. Ela particularmente ela gostava daquela em que ele conhecia a Dama da Máscara.
A katana de madeira em sua mão era pesada, apesar de ela já ter acostumado; até aquele momento, os dois não tinham treinado um contra o outro. Minato apenas mostrava para ela os movimentos mais básicos, indo de um lado para o outro, de cima para baixo, e assim por diante. Thais não queria ser uma expert naquilo, então não se importava quanto tempo levaria para aprender.
Minato foi parou diante dela, posicionando-se de uma maneira que ela nunca tinha visto antes – ambas suas mãos estavam no punho de madeira; a lâmina estava na horizontal, acima de sua cabeça; seus pés descalços estavam afastados. Disse para que ela assumisse a mesma posição.
Lentamente, ele atacou com a espada pela lateral alta, dizendo para ela como bloquear. Em seguida, fez o mesmo do lado oposto. Repetiu os movimentos até que a postura e os movimentos da própria Thais estivessem satisfatórios. Ele acelerou um pouco a pouco, mais o mesmo ciclo. De repente, ele mudou, atacando por cima; por puro instinto, Thais levantou sua espada para bloquear. Minato sorria.
– A maior parte da luta acontece na sua mente. – O japonês disse; de alguma maneira, ele tinha sotaque pesado falando o inglês materno para Thais. – Seu corpo precisa lutar sozinho, como obriga o feitiço que existe na espada do tal Leonard. Ele não pensa para lutar. Apenas o faz. Você deve ser o mesmo.
Assim Thais o fez, tentando evitar pensar nos movimentos que fizera ou que faria a seguir, mas não obteve muito sucesso, recebendo alguns golpes fortes nas costelas, pernas, braço e uma vez na cabeça. Ela nunca tinha se sentindo tão frustrada em sua morte.
Eles pararam mais ou menos na hora do almoço, quando a luz estava intensa no céu. Saíram da praça em que treinavam e caminharam pela pequena cidade até encontrar um pequeno restaurante, entrando pela cozinha. Thais usou suas habilidades culinárias adquiridas nos setenta anos que viveu no Paraíso – e um pouco antes disso quando viveu sozinha, mas no Paraíso, dificilmente a comida queimava.
A dupla comeu praticamente em silêncio. Thais contava um pouco sobre o futuro da Terra, sobre a História de guerras e batalhas, acordos feitos, sobre a descoberta das Américas e tudo o mais. Desde que morrera, Minato vivera no Japão, vendo o lugar se desenvolver século a século, mas não sabia exatamente o que havia acontecido na Terra para tal estrutura surgir ou tal prédio desaparecer – ele odiou quando o Castelo de Kyoto foi destruído, e estranhou que fora reconstruído quase exatamente igual ao anterior.
Thais, infelizmente, não conhecia os detalhes daquela parte da História; de fato, não tinha aprendido muito da História de nenhum lugar que não fora os Estados Unidos – se Minato estivesse interessado na Guerra Civil Americana, ela conhecia muitos detalhes que não estavam nos livros das escolas, mas o samurai não se importava muito com o ocidente.
– Eu me pergunto se minha família está aqui no Paraíso. – Minato disse de repente, sem tirar os olhos de seu prato.
– Para ser sincera, eu acho que não. – O semblante de Minato foi de uma leve surpresa para tristeza. – Desculpe. – Thais acrescentou rapidamente. – Você está aqui por causa da Morte. Mas Sua família não teve o mesmo acordo. E eles não eram cristãos, então, não acho que eles estejam aqui.
Thais notou que ele estava claramente triste, muito mais do que ela tinha visto alguém no Paraíso antes; nem mesmo Leo que tinha suas memórias desde que entrara no Paraíso. Minato parecia uma das almas que escolhia não comer o Fruto da Vida.
– Mas, posso tentar encontrá-los. – Ela acrescentou, já pensando no feitiço que poderia conjurar para descobrir se alguma alma conectada com ele estava no Paraíso. – Mas é um tiro no escuro. Feitiços de localização como este costumam ser feito com sangue, mas além de nós, nenhum outro humano possui sangue.
– Entendo, mas quero tentar mesmo assim. – Minato finalmente disse. – O que precisa?
– Um mapa. Algumas velas feitas com pele de cobra. E seu sangue.
Não foi difícil encontrar as velas, já que o Japão e sua cultura muito conectada com os ancestrais criavam um mercado intenso para aquele material – mesmo no Paraíso, apesar de que Thais não conseguia entender para que precisavam das velas, já que estavam mortos e, alguns deles, já conviviam com seus ancestrais. O mapa, os próprios Heartless tinham; o problema mesmo era a pele de cobra.
Na Terra, poderia facilmente encontrar em uma loja de artigos místicos ou com algum traficante do submundo mágico, caso precisasse de uma espécie específica, o que não era o caso. A melhor chance deles era a Fazenda Shiroikitsune, que ficava um pouco afastado do lugar em que estavam. Avisaram Jared, através de um rápido feitiço que Thais conjurou com água, que viajariam por algumas horas; ele decidiu ficar no complexo dos Heartless, fazendo sabe-se lá o que.
Thais preparou-se para a curta viagem com alguns ingredientes que serviriam para conjurar feitiços de defesa enquanto Minato pegava duas katanas – sendo uma mais curta que a outra – e vestia-se com roupas confortáveis e largas, como as dos samurais de sua época. Ela encontrou-o parado junto ao carro que usariam; ele tinha um sorriso esperançoso no rosto. Abrindo a porta do passageiro, ele a deixou entrar, seguindo para o lado do motorista; então, partiram.
Apesar de ser focada na criação de raposas – mas cujo propósito exato Thais jugou completamente sem sentido no Paraíso –, a Shiroikitsune também criava alguns animais diferentes, como pássaros, alguns lobos, tartarugas terrestres e, para felicidade de ambos, cobras.
Um portão de madeira separava o lugar do resto do mundo. Ao cruzarem-no, uma estrada de terra entre a floresta nativa seguia por quase um quilometro até chegarem a casa principal e administrativa, onde viveram as pessoas que cuidavam do lugar – na presente, assim como o resto do Japão, estava vazio de almas; nem mesmo Heartless.
No entanto, o lugar não parecia abandonado, pelo contrário. Plantas e animais estavam em seus lugares devidos; a porta estava em sua posição certa; nenhuma janela estava quebrada e, ainda, não viam qualquer sinal de sujeira ou de **. Talvez fosse parte dos milagres do Paraíso, Thais não tinha certeza como as coisas funcionavam por ali, ainda mais depois da guerra.
Entraram pela porta da frente, procurando qualquer coisa que pudesse indicar onde eles encontrariam uma cobra, de preferência, uma que estivesse trocando de pele – Thais odiaria ter que m***r um bichinho, mesmo que fosse peçonhento. Perguntou-se como funcionaria a logística daquilo, se caso matasse a cobra; ela permanecia com corpo ou não, voltaria para o Éden, como acontece com as almas humanas, ou simplesmente deixaria de existir. Sua cabeça doeu só de pensar.
Descobriram em um mapa que ficava na parede atrás de uma mesa grande – que devia pertencer ao dono do local – que a Fazenda tinha uma área especial para raposas, mas que os outros mamíferos ficavam juntos, assim como os répteis.
A fazenda era composta por vários prédios diferentes, todos unidos por estradas que chegavam a um centro comum, onde havia a Fonte Shiroikitsune, que dava o nome a fazenda. Tal fonte, pelo menos na Terra, havia sido um presente para a filha do dono daquelas terras que vivia ali por um príncipe imperial há mais de cinco mil anos; era uma das estruturas mais antigas de todo o Japão – talvez até mesmo do mundo; ambos.
A casa principal, onde estavam naquele momento, havia sido destruída algumas vezes durante os séculos, mas sempre sendo reconstruída ou reformada; sempre com algo de mais novo e moderno, sendo a última vez durante a Segunda Guerra Mundial – o peito de Thais doeu só de pensar no conflito que tirou sua vida.
– Pelo jeito, nós andamos agora. – Minato disse, mais animado.
Encontraram a saída de trás, que ligava a casa principal a conexão da fonte que, por sua vez, levava a todos os outros prédios onde animais e plantas estavam. Thais tentava explicar os pormenores do feitiço enquanto andavam, mas estava tendo dificuldades de encontrar as palavras; muito de sua magia era sentimentos e vontades, e isto era difícil de explicar para não praticantes.
Na encruzilhada, porém, notaram que não estavam sozinhos como previamente pensaram. Uma mulher ocidental vinha caminhando do prédio em que estavam as raposas. Ela tinha um balde de ferro preso na junta de sua mão. Ela não olhava para frente; estava distraída limpando algo em seu avental. Assim que levantou os olhos, porém, ela parou, encarando os visitantes. Felizmente, seus olhos não eram laranja e pretos.
– Eu não esperava visitas tão cedo! – Ela falou quando estava perto o bastante para ser ouvida; Minato estava com a mão no punho de sua katana longa. A mulher tinha um sorriso largo no rosto; esticando a mão para que um deles pegasse; Thais o fez. – Sou Re'ut, muito prazer.
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Egito, Paraíso
Lana viu Lael decolar atrás de Leonard sob comando de Miguel, o que forçou o querubim a segurar as pedras do Kayryak com as duas mãos; faltava muito pouco para que eles fossem completamente esmagados. Ao mesmo tempo, a Heartless estava tendo cada vez mais dificuldades para conseguir desviar os ataques do Thunroryak e protegê-los. Ambos, porém, sabiam que tinham que fazer algo antes que fossem completamente destruídos.
O terrível homem de terno preto e gravata vermelha e preta decidiu envolver-se na luta. Ele levantou os braços semi-flexionados para frente; suas mãos se acenderam em chamas intensas de um laranja escuro, mortal, sem nem mesmo um reflexo da beleza que existia no Fogo Celestial.
– Defendría. – O querubim disse.
Um círculo de Fogo os circundava, quase como um líquido que caía em micro-cascatas ao redor, formando uma esfera. Do lado de fora, os ataques dos três Ryaks vinham com intensidade contra a defesa. Lana olhou para trás; logo viu no rosto de Miguel que não duraria muito tempo. Ela sabia que, para escapar daquela enrascada, precisaria fazer algo grande – algo que ela tinha feito apenas uma vez antes.
Fincou a espada no chão para ficar com as mãos livres. Levantou as palmas para cima, não mais alto do que seus ombros e fechou os olhos. O que pretendia fazer era uma das técnicas mais avançadas que um Heartless de raio poderia fazer – e que poucas vezes na vida, ou morte, eles faziam.
O dia, antes aberto e transbordando com a luz, deu lugar a nuvens cinzas de tempestades. Os Filhos cessaram seu ataque para verem o que acontecia por um instante; logo perceberam que a melhor chance deles era destruir o escudo que protegia Lana.
Os primeiros raios foram vistos cruzando as nuvens, seguidos um tempo depois pelo intenso som de trovões; os Ryaks aumentaram a intensidade de seus ataques, em vão. Miguel ainda estava firme e forte em sua defesa, sabendo bem o que aconteceria a seguir – afinal, milhares de anos de vida davam a alguém a oportunidade de ver quase de tudo.
Treze raios vieram de todas as direções na nuvem, acumulando-se em uma esfera no centro, logo acima da cabeça de Lana. O som de trovão era constante e uma chuva intensa, quase como uma tempestade de verão, começou a cair sobre eles – as gotas evaporando ao entrarem em contato com o Fogo Celestial de Miguel ou com o fogo abismal do Filho. Então, com um movimento bruto de braços de cima para baixo, ela deixou que um raio poderosíssimo caísse sobre seus inimigos – que estupidamente, estavam juntos.
O Thunroryak levantou os braços para cima, criando uma p******o elétrica sobre eles; ao mesmo tempo, os outros deixavam de atacar e Miguel desfazia o escudo de Fogo Celestial. A defesa dos Filhos não durou muito tempo tamanho era o poder que Lana tinha invocado para sobrepujá-los. Assim que o raio atravessou o escudo, ele atingiu em chio o Thunroryak, dando aos outros meros segundos para escapar.
Miguel, logo em seguida, avançou contra os dois Ryaks restantes, atingido o Kayryak primeiro. A luta entre os dois foi breve por causa da surpresa do golpe de Lana quanto o avançar rápido do querubim. Ele foi selado sem nem mesmo Lana chegar a saber seu nome.
Seu coração disparou ao ver o Heyroryak caminhar na sua direção com as mãos acessas em chamas – queimando as mangas de seu terno. Tentou levantar-se, mas seu golpe havia tirado toda a força de seus músculos; estava praticamente paralisada. Levou a mão para o punho de sua espada; conseguiu, as não teve força para retirá-la do chão. Tentou invocar mais raios, mas sua conexão com o solo e a eletricidade natural do Paraíso não responderam.
No entanto, sabia que não seria seu fim. Ela era uma alma apenas e, como tal, era eterna. Tudo que o Filho do Abismo podia fazer era torturá-la – mesmo que não deixasse marcas duradoura em seu corpo – e levá-la para seu senhor, Kifo, quem iria comê-la como fez com milhares de outras almas do Paraíso. Ainda assim, ela estava com um medo que não sentia desde a sua morte.
O Heyroryak virou-se de repente, soltando uma rajada de fogo contra Miguel, que bloqueou com sua espada, praticamente absorvendo as chamas inimigas. A luta entre os dois, porém, demorou. Lana, apreensiva e se sentindo cada segundo mais inútil, via os golpes sendo trocados – a lâmina de Sídero Theía chocando-se contra o braço transformado em facão do Filho.
O inimigo invocava fogo nos lugares mais estranhos quando queria aumentar a intensidade de seus golpes. Do cotovelo quando queria socar com mais força; das solas dos pés quando queria dar um salto mais alto para tentar acertar o querubim de cima; da boca, simplesmente para pegá-lo de surpresa. Todavia, Miguel sabia como responder a todos os golpes, bloqueando ou desviando da melhor maneira.
Lana viu o Thunroryak despertando lentamente. Ela tentou avisar, mas sua voz estava cansada e não saiu mais do que um sussurro. Tentou apontar com o rosto, mas Miguel estava concentrado no combate. Outro Filho surgiu ao lado deste caído do nada – um Pnamryak. Antes que ele levasse o Filho, ele lançou uma descarga elétrica rente ao chão que atingiu Miguel.
Pego de surpresa, o querubim deu uma a******a grande o bastante para que o Heyroryak se colocasse à suas costas, agarrasse as asas centrais e a acendesse nas terríveis chamas. Miguel urrou de dor; antes que o dano fosse ainda maior, ele tentou perfurar o Filho com sua espada, que desviou com um pulo para trás. O Pnamryak retornou e levou o outro Filho.
Os olhos dos dois se encontram. Lana, ainda sem conseguir se mexer, viu o querubim cair na calçada semidestruída e desmaiar. Nunca ela imaginou que o lendário Miguel tinha seu limite; felizmente, a chuva não demorou em apagar o fogo de suas asas.