Creta, Grécia
– Eu realmente acabei de sobreviver a um combate contra Kifo? – Eu perguntei para Týr, enquanto empurrávamos a maca de Lael de volta para o quarto.
– Bem, eu acho que ele estava pegando leve com você. – Týr retrucou, com um sorriso zombeteiro; eu sabia que ela estava tentando zombar de mim, mas preferi ignorar. – Ele sempre lutou muito mais velozmente contra Miguel e os anjos.
– De qualquer forma, eu não deveria escapar. Mas essa espada... – Ela estava recostada a uma das paredes do quarto, um pouco longe de mim; eu estava meio receoso de empunhá-la. – A mesma coisa aconteceu durante a Batalha de Roma, lembra? Aquela Louryak, Selena ou Selene, não lembro direito. Ela também queimou quando pegou a espada e tentou quebrá-la.
– Tem razão. – Týr, agora sentada no braço do sofá ao meu lado, levantou-se; andando de um lado para o outro.
– Cuidado para não furar o estofado.
– Cala a boca, animal. – Retrucou, sarcástica, pisando agora mais pesadamente. – Eu sempre achei estranho que uma costureira aleatória, de Tel-Aviv diga-se de passagem, tinha uma espada a nossa disposição.
– Acha que alguém possa ter implantado a espada lá? – Perguntei.
– É possível. Talvez a Morte mesmo.
– Se fosse, por que ele não falaria nada em todas as vezes que nos encontramos? Não faz sentido. – Argumentei; a fada pareceu concordar comigo, porém acrescentou:
– A Morte é um ser estranho, Leo. Talvez não tenha visto o sentido de falar algo. É como os escolhidos. Ele apenas disse para nós que tínhamos que encontrá-los quando foi preciso. Isso vale para a adaga que estamos buscando agora. Você já tinha a espada quando nós fomos até o Castelo. Não deve ter visto a necessidade de falar.
Eu entendia bem a lógica de Týr, mas ao mesmo tempo, ela descia quadrada por minha garganta. Algo ainda não estava se encaixando.
O despertar de Lael interrompeu nossos argumentos. Ele grunhiu de dor, tentando se sentar. Antes que eu pudesse chegar perto dele para impedi-lo, ele notou que estava sem uma de suas asas. Desesperado pela descoberta, ele começou a bater sua única asa descontroladamente, jogando os livros, criado mudo, travesseiro e tudo o mais que estava próximo o bastante para o chão. Eu não consegui me aproximar, mas repeti diversas vezes para que se acalma-se.
Týr deu de ombros e revirou os olhos, voando para fora do quarto. Eu entendia sua reação, afinal, não havia enfermeiros no hospital para segurá-lo, muito menos um médico para injetar um calmante em sua veia – se é que esse procedimento funcionaria, afinal, ele era um anjo.
– LAEL! – Eu gritei com toda a força de meus pulmões, finalmente pareci chamar sua atenção. – Que d***a, cara. Eu sei que é uma bosta perder um m****o do corpo, mas você precisa se acalmar. – Percebi que ele, aos poucos, ia desacelerando sua respiração; sua asa, aos poucos, se retraindo até ficar na posição original.
– Onde... – Sua voz m*l saiu, raspando sua garganta; eu não conseguia imaginar que eles também precisavam beber água como os humanos, ao mesmo tempo, poderia ser por causa de sua condição fragilizada. Eu corri para pegar um copo de água na cozinha. – Onde estamos?
– Creta.
– É, eu realmente não intencionei nos trazer para cá. – Ele informou, bebendo mais do líquido. – Estamos seguros?
– Por enquanto. – Então, narrei para ele os encontros que tivemos, inclusive com Kifo; ele estranhou tanto quanto nós a reação da espada, mas tinha a menor ideia de como explicar o fenômeno. – Mas acho que Kifo voltará logo. Ele não parece ser do tipo que queima vivo e deixa barato.
– Não mesmo. – Lael, para minha surpresa, levantou como se nada tivesse acontecido nos últimos dias. – Chega de descanso. Onde está a fada?
– Fa... Fada? – Eu dei um sorriso falso e cocei a cabeça.
– Lana me contou. Mas nunca a vejo.
Týr surgiu pela porta, mas como ele não reagiu, deduzi que ela ainda mantinha seu feitiço de invisibilidade ativo. Ela se sentou em meu ombro, dizendo que não iria se revelar – os perigos de um anjo saber de sua presença já eram grandes, agora, se confirmasse que ela estava ali, com certeza ela seria pulverizada em segundos.
– Eu não faço ideia do que está falando.
Lael levantou os braços em desistência. Chamei a espada e a coloquei em meu cinto, a armadura já estava de volta na marca do meu pulso e a adaga de Godheim, às costas. Lael, ainda sem muitas forças, vestiu sua armadura com minha ajuda; além de mim mesmo, eu nunca o tinha feito a alguém, o que era uma experiência completamente estranha.
Quando chegamos no térreo de elevador – Lael jamais conseguiria usar as escadas – vi uma máquina de comidas industrializadas em um dos cantos, logo ao lado a uma de refrigerantes. Peguei um pouco de alimentos e coloquei em uma sacola de papel que encontrei ao lado de um banco de espera – eu adorei a coincidência, mas não conseguia começar a imaginar como ela tinha ido parar ali e porque, ainda mais vazia.
O anjo insistiu bastante para que nós fossemos para um aeroporto e pilotar um avião – do tamanho que fosse – de volta ao Egito. Secretamente por causa de Týr, mas dizendo o quão imprático seria tomar um avião considerando que não teríamos como parar na praia onde Miguel e Lana estavam; e afirmando que nenhum de nós dois sabia pilotar um avião. Eu o convenci a irmos de barco.
Encontramos em um dos estacionamentos um carro que parecia ser daquele ano, mas cujo modelo eu não conhecia – devia ser um exclusivo europeu ou algo do tipo. Como o lugar tinha serviço de valete, a chave havia sido colocada em uma caixa na entrada do estacionamento, onde a encontramos. Lael se sentou dolorosamente no banco traseiro; sua asa não caberia na frente.
– O problema agora é encontrar o caminho do porto. – Eu disse, ligando o veículo.
– Eu sei. – Lael informou, para minha surpresa. – Eu estive em muitos lugares do Paraíso, inclusive, trabalhei na guarda de Creta por quase cem anos antes de ser mandado para Roma.
Eu apenas concordei com a cabeça, seguindo as instruções do anjo. A todo momento, eu olhava para o lado de fora, procurando por olhos laranjas; também olhei para o céu, buscando a vingança de Kifo que viria a qualquer momento. Lael e Týr podiam ver minha apreensão, mas nada diziam; eles também procuravam Filhos. Nós os vimos, porém, quando estacionamos no píer que, crescendo da areia da praia, servia de porto para alguns barcos pequenos.
Abigail, com sua f**a cicatriz escondida e sozinha, esperava por eles. Ela estava com o semblante cansado, mas não o de alguém que correu muito ou fez muitas horas de academia; seu cansaço vinha de alguém que já tinha perdido a v*****e de viver.
– Você não tem noção de como eu gostei de ver Kifo queimando daquela maneira. – Ela disse, sorrindo maliciosamente.
– O que está fazendo aqui? Onde estão os outros? – Eu perguntei, sacando minha espada; Lael tentou fazer o mesmo, mas não tinha forças; eu acrescentei para que ele ficasse atrás do carro.
– Eu os mandei para Kifo, mas eu mesmo não fui. Não que ele fosse me aceitar, é claro. – Ela fez uma pausa, endireitando-se e abrindo os braços, como se se entregasse. – Tudo que eu qu...
Eu não permiti que ela terminasse a frase. Sem hesitar, praticamente sem pensar, eu lancei minha espada contra o peito dela; toda a raiva e dor acumulados de Paris naquele único golpe. Abigail sorria, enquanto se transformava em vagalumes prateados, começando do ferimento. Eu poderia até dizer que ela estava agradecida.
Minha espada foi ao chão, fincando-se na areia quase metade sua lâmina. Não a chamei, caminhei até ela para pegá-la. Týr, em meu ombro, não estava feliz nem triste; de fato, eu podia sentir que ela estava surpresa.
– Isso foi... Sombrio. – Ela disse; seu tom quase num sussurro, no entanto, as palavras eram tão altas quanto um grito.
– Eu sei. Eu só... A raiva que eu, que nós sentimos; toda a dor de Paris. Eu simplesmente...
– Mais do que ninguém, Leo, eu te entendo. – Guardei a espada de volta em minha bainha.
– Eu acho que você nunca me chamou disso antes. Leo. – Eu disse, tentado aliviar um pouco o clima tenso enquanto voltávamos para Lael, que estava escorado no carro; seu rosto em dor.
Apoiando-o em meu ombro, e Týr voando ao lado, nós cambaleamos até o barco mais próximo que parecia estar em condições de atravessar o Mediterrâneo. Eu não sabia a exata distância, mas Lael parecia conhecer bem o mar e as melhores maneiras de atravessá-lo.
Týr fez o rápido feitiço que controlava meu estômago, o que me permitia viajar na embarcação sem vomitar minhas tripas para fora. Tive certa dificuldade para descobrir como os controles funcionavam e como garantir que não afundaria o barco em uma rocha. Não demorou muito para finalmente sairmos de Creta e seguirmos na direção de Alexandria – Lael servindo muito mais de bússola do que a própria bússola no painel.
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Egito, Paraíso
Lana conseguiu levantar-se depois de um tempo que pareceu eterno. Seus passos, de fato, todos seus movimentos eram dolorosos; sentia os músculos queimar de esforço, tremiam como se estivessem sobre uma máquina de lavar. Nem mesmo viva ela se lembrava de ter ficado daquela maneira – ainda, porém, quando viva ela não treinou para dominar suas habilidades como havia feito desde que Leonard entrou no Paraíso e trouxe com ele as memórias dos Heartless e as dela mesma.
Ajoelhou ao lado de Miguel, grunhindo, usando o pouco de força que tinha para chacoalhá-lo, mas não foi o bastante para despertá-lo. Olhou em volta, buscando qualquer coisa que pudesse ajudá-la a tirar o querubim dali – não demoraria para que Kifo soubesse de seu estado e visse acabar com ele de uma vez por todas. Do outro lado da rua havia uma sorveteria, como era comum em regiões praianas. Foi até ela.
Procurou por ali qualquer coisa que tivesse rodas, mas não viu coisa alguma; nem mesmo um carrinho para levar caixas. O melhor que encontrou foram caixas de papelão; pelo menos, poderia arrastá-lo sem se preocupar em esfolá-lo vivo – ou será que os anjos tinham uma pele forte o bastante para serem arrastados por asfalto? Ela não sabia, e aquele não seria o dia para descobrir.
Voltou para o anjo, rasgando a caixa de tal modo que pudesse colocar Miguel sobre ela. Grunhindo, avançando centímetro a centímetro; metro a metro. Levou quase trinta minutos para conseguir avançar um quarteirão – ao mesmo tempo, mesmo com o esforço, a passagem do tempo ajudava seu corpo a se recuperar. Mais meia hora se passaram, e ela avançou cinco quadras.
Cansada demais para continuar caminhando, ela entrou em uma loja de sapatos que estava completamente bagunçada, com as estantes parcialmente destruídas, com sapatos caídos em todos os cantos. Alguns bancos que serviam os clientes sentarem-se e experimentar. Arrastou-o até atrás de um balcão, onde ela mesma se sentou, sem saber muito o que fazer. Recostou a cabeça, se perguntando onde Leo e Lael poderiam estar e quanto tempo demoraria para serem encontrados por Filhos do Abismo.
A pior parte, é que ela não tinha maneira alguma de pedir ajuda. Lana já sentira impotente várias vezes em sua vida – na morte, nem tanto, já que ela viveu a vida simples de uma garçonete em Roma desde que chegara no Paraíso e, de fato, nunca sentira falta de nada muito além disso. Chegou a visitar lugares, viajar até mesmo para a Disney, que sim, existia ali.
Dentre os Heartless de sua geração, ela nunca fora considerada talentosa. Treinava entre os seus iguais e entre de outros elementos, mas dificilmente vencia um combate. Quando o fazia, era contra alguém com pelo menos dois anos a menos que ela; e quando perdia para alguém mais novo, era quando a sensação era pior. Ela não percebeu a lágrima escorrendo em seu rosto, muito menos quando o Reino dos Sonhos a envolveu.
Aos seus doze anos de idade, Lana Ruggiere vivia no esconderijo Heartless no Uruguai – não havia um próximo ao seu lugar de nascença, São Paulo; ou ela iria para ali ou para o Acre – com outros setenta Heartless da mesma idade que ela. Dentre estes, porém, a pessoa que mais chamava sua atenção era a Savannah. Sendo uma manipuladora de vento, Savannah era a melhor daquele ano, já conseguindo até mesmo voar, o que era uma das técnicas mais avançadas.
As duas se esbarraram em uma ida ao banheiro, trocaram palavras rápidas de cortesia, comentaram sobre um instrutor que era particularmente difícil de lidar. Lana já não se lembrava exatamente o que levou uma coisa a outra, mas descobriu-se extremamente interessada por Savannah.
Ela a observava durante as aulas teóricas sobre os elementos; nos treinamentos práticos; nos combates esportivos, fosse usando ou não as habilidades. Durante quase um ano, Lana desejou que algum instrutor as colocasse para fazer qualquer uma das atividades em conjunto, mas isto não aconteceu. Savannah sempre caía com alguém diferente – Lana até mesmo chegou a calculas as possibilidades, descobrindo que o fato de não acontecer ia contra elas.
Todavia, no primeiro treinamento do segundo ano em que estava morando ali, finalmente aconteceu. Foi em um combate sem poderes. Lana conhecia muito bem as habilidades da outra e sabia que ela estava se segurando, agora, Lana não tinha ideia os motivos de Savannah para segurar seus socos. Ao mesmo tempo, a luta não durou muito mais do que as de costume.
– Sabe, eu acho que você pode lutar melhor do que agora se treinar um pouco mais. – Lana ouviu a voz de Savannah enquanto, distraída, terminava de colocar sua camiseta uma vez que estavam no vestiário; Lana terminou de colocar a roupa no mesmo segundo, sentindo seu rosto esquentar. – Me encontre no ringue hoje a noite, depois do toque de recolher.
Lana assim o fez. Não fora difícil sair escondida durante a noite; os Heartless não tinham uma segurança apertada nem ficavam vasculhando os corredores do esconderijo com frequência. Encontrou Savannah levitando há quase um metro do tatame, sentada de pernas cruzadas. Lana passou pelas cordas de p******o enquanto a outra passava a ficar de pé.
De repente, Lana sentiu algo molhado envolver seus pulsos; no segundo seguinte, a água congelou. Sem entender o que acontecia, ela viu os lábios carnudos de Savannah contorcerem-se em um sorriso perverso de ódio e inveja. Lana soube imediatamente que as duas não estavam sozinhas.
– Você acha que é tão linda, não é? – Savannah falou entre dentes, tomando cuidado para não falar alto demais para serem ouvidas. – Com essas roupas – enquanto falava, Savannah agarrou sua camiseta, rasgando-a em duas partes – e esse cabelo.
Graças ao seu alto controle sobre o vento, Savannah era capaz de afiar o ar, deixando-o tão perigoso quanto facas. Ela levantou os longos cabelos negros de Lana e, num singelo movimento de mão, ela os cortou. Lana sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto, mas não eram apenas de tristeza, mas de raiva; uma ira que surgiu na boca do seu estômago e foi tomando conta se seu corpo.
Savannah arregalou os olhos de surpresa e medo ao ver na pele de Lana algo que nunca tinha visto em Heartless algum antes.