França, Terra
1938
Ezra sentia-se esperançoso. Assim que a porta do alçapão que os guardava no trem foi aberta pelos aliados da Nachtkrapp e eles viram a luz de final de dia depois de quase treze horas de escuridão. Os homens ajudaram-nos a carregar as malas até um veículo, enquanto o casal levava os filhos dormindo nos braços – as pílulas que Luigi fornecera funcionaram lindamente.
Eles aceleraram pelas ruas de paralelepípedo, de casas belas e cafés simpáticos. Os comércios estavam aos poucos fechando sem nenhuma preocupação, como se o governo do país ao lado não estivesse despencando em ganância e orgulho, ameaçando a vida da Europa inteira como eles conheciam.
Os primos que viviam na capital francesa eram do lado de Ezra da família, apesar de não terem se visto muitas vezes nos últimos anos. Pararam diante de uma loja de chá a tempo de verem seu primo, Abba, trancando a porta da frente.
Um homem alto, quase uma cabeça e meia maior Ezra, com a barba preta e cheia, olhos de um profundo castanho atrás de um par de óculos e cabelos inexistentes. Abba virou-se assim que ouviu o carro parando; ele abriu um sorriso ao ver Ezra e sua família. Eles se abraçaram apertado, exceto pelas crianças – agora despertas – que ficaram tímidas. Ele disse para levarem as malas por uma porta lateral à loja, atrás da qual havia uma escada que subia até o andar superior.
Ali, eles foram recebidos pela esposa de Abba, Gisse, quem logo ofereceu um quarto para eles, além de um belo jantar judeu. Os agentes partiram depois de ajudar com as malas, partindo para alguma missão desconhecida. Durante o jantar, Ezra contou o que estava acontecendo na Áustria – deixando de fora suas habilidades ou o envolvimento de uma organização de espiões.
– Nós ouvimos coisas terríveis de alguns amigos da Alemanha. – Abba disse, enquanto devorava seu segundo prato de shakshouka; estava tão delicioso, que até mesmo os gêmeos repetiram. – Nós ouvimos histórias de que os alemães estão usando judeus para os mais diversos tipo de experimentos. Todos extremamente terríveis. – Ele não entrou em detalhes por causa das crianças.
Logo foi a hora de colocar os pequenos para dormir; depois, era a vez dos adultos sentarem-se para conversar, beber um bom vinho doce e especular sobre o futuro e as proporções que o conflito poderia tomar. A preocupação era onipresente nos judeus espalhados por toda Europa – Abba tinha conhecidos em Portugal, Espanha e Itália.
– Primo, devo pedir desculpas por surgir assim em sua porta. – Ezra disse, depois que as mulheres se recolheram e os dois preferiram acrescentar mais uma taça de vinho.
– Não se preocupe, Ezra. Ninguém poderia prever algo assim.
– Bem, não vamos viver com você de graça ou o resto da vida. Se conhecer alguém que está contratando e uma casa para alugar, ficarei muito agradecido. – Abba abriu um sorriso.
– Há uma ou duas ruas acima da nossa, conheço um apartamento que se esvaziou recentemente. Conversarei com o dono pela manhã. – Ele fez uma pausa para beber. – E conheço alguém precisando de ajuda: eu. Você construiu um negócio de sucesso na Áustria e eu estou tendo problemas aqui. Talvez você consiga me ajudar a economizar e prosperar, o que acha?
Ezra sorriu em resposta, duvidando que ele pudesse ser de uma ajuda tão grande assim. Apertaram as mãos e trocaram um abraço, como que para confirmar o contrato que estavam fazendo. Depois, cada um se retirou para um lugar diferente.
Abba foi gentil o bastante para apontar o quarto onde sua família estava, para o qual Ezra foi depois de tomar um banho rápido – também não queria trazer muitas despesas para seu primo. Assim cruzou a porta, notou que Eber se revirava no colchão que dividia com Elazar; ele ia de um lado para o outro brutalmente, se continuasse assim, ele machucaria o pescoço ou algum músculo.
Ezra sentou-se ao lado do filho; chamou-o algumas vezes em sussurros, mas apenas quando segurou seus dois ombros e apertou foi que ele despertou. Ofegante, assim que viu o rosto do pai, jogou seus braços em volta dele em desespero.
– Está tudo bem, Eber.
– O homem cinza, pai. O homem cinza está vindo me buscar. – Ele repetiu algumas vezes, até o pai finalmente acrescentar.
– Foi apenas um sonho. Não existem homens cinza. – Ezra disse, olhando fundo nos olhos do filho. – Sabe, quando eu tinha sua idade – Eber sentou-se no colo dele, sabendo que agora viria uma história – eu tinha muitos pesadelos com um urso azul de seis patas que queria dar-me de comer para seus filhotes. Não importasse o quanto eu corria, ele sempre me pegava e eu sempre acabava em uma caverna. E eu sempre acordava nesse momento.
– Ai que h******l! Odeio ursos! – Eber disse; Ezra sabia que ele, de fato, não odiava aqueles animais, ele apenas falava para simpatizar com o pai. Ezra sorriu.
– Então, minha mãe disse um dia que eu tudo que precisava fazer era dar um pote de mel para o urso e ele me deixaria em paz. – Explicou. – Então, ela me deu um pote que eu coloquei ao lado da minha cama. Quando eu dormi, eu tinha o pode na minha mão. Eu parei de correr, virei e fechei os olhos, ao mesmo tempo em que esticava o pote para o urso. Ele pegou o pote de mim, começou a comer e depois de terminar foi embora. Eu nunca mais sonhei com ele.
– Então, o que eu dou para o homem cinza? – O menino disse, confuso.
– Eu não sei. – O pai respondeu, ainda sorrindo. – Você precisa descobrir. Por que não pergunta para ele da próxima vez que ter pesadelos?
Eber concordou animadamente com a perspectiva de se livrar dos seus pesadelos. Entretanto, ainda levaria pouco mais de dois anos para que o menino sonhasse outra vez com aquele estranho homem. Ezra se lembraria para sempre do dia em que seu filho veio pedir-lhe para comprar uma miniatura da Torre Eiffel. Naquela mesma noite, ele dormiu com a estátua no criado ao lado de sua cama no apartamento que vinham morando apenas uma semana depois de chegarem a Paris.
– Ele se foi, pai! O homem cinza disse que nunca mais apareceria em meus sonhos! – Eber não poderia estar mais feliz.
Era um dia frio e chuvoso. Durante a manhã inteira uma chuva torrencial havia abalado toda a cidade. Quase nenhuma alma viva a passar, exceto, pelos soldados. Ezra havia notado que todos os dias patrulhas passavam de um lado para o outro; havia rumores de guerra chegando a Paris – o judeu, porém, havia contactado seu amigo Luigi, que negou qualquer possibilidade de nazistas conquistarem a cidade.
Sozinho na loja de chá, Ezra teve que deixar o conforto de seu escritório e de suas contas matemáticas para ir atender o cliente que se anunciara com o sininho preso a porta. Assim que seus olhos se encontraram, Ezra levou a mão até embaixo do balcão, onde havia escondido uma de suas pistolas para uma situação exatamente como aquela.
Apesar de tê-lo visto menos de dois anos antes, o Karmesin Vernivhtung parecia ter envelhecido dez. As sacolas embaixo de seus olhos rosados pareciam conter quilos de gordura. A cicatriz em volta de seu rosto estava mais proeminente, destacando-se com a luz da loja. Ele havia perdido bastante cabelo, tendo-o na cor de chamas pálidas apenas em volta de sua cabeça. Inocentemente, o Karmesin observava os chás que estavam nas estantes da loja.
– Posso ajudar? – Ezra disse, tentando manter a calma; talvez, fosse apenas uma coincidência que ele estava ali; talvez, nem se lembra-se do homem que o “capturou”.
– Sim, senhor Bassevi. É uma honra revê-lo! – O homem respondeu com sua voz rouca, coçando uma das bochechas, como se a barba malfeita o tivesse incomodando; o problema é que, além do cabelo, ele não tinha qualquer pelo no rosto. – Construiu uma boa vida para você. Não imagina o que os pais de sua querida esposa estão sofrendo. – Ezra sentiu a mão apertando a a**a, pronto para puxá-la. – Estão sob meus cuidados, é claro. – Havia um sutil tom de ameaça em sua voz.
– O que quer? – Ezra, que estava com problemas para se controlar, interrompeu-o.
– Mas nenhum dos dois foi capaz de suprir a necessidade que tenho. – Agora, o Karmesin vinha caminhando lentamente na direção de Ezra, que quase não se continha para sacar a a**a e atirar, entretanto, hesitava, pensando nas consequências para si, sua família e seu primo se matasse um oficial alemão dentro da loja. – Eu preciso de alguém especial, alguém com uma conexão especial aos sonhos. E eu encontrei.
O Karmesin tirou do bolso uma pequena réplica da Torre Eiffel, exatamente igual a que Ezra tinha comprado para Eber – apesar de que a dele ainda estava em sua cabeceira, ou não? Ezra pegou-se sem ter certeza da última vez que viu a estatueta.
– E seu filho é muito mais especial do que eu esperava. Pude sentir que alguém na base da Nachtkrapp o era, mas logo este se foi. Então deduzi que era um dos refugiados que eles guardavam. – O Karmesin explicava de uma maneira quase didática, professoral. – Eu vaguei bastante tempo em sonhos para encontrá-lo e, quando consegui, ele sumiu outra vez. Até alguns dias atrás, quando ele me deu isso. Depois, precisei apenas de um feiticeiro qualquer para me dar a exata localização sua, Ezra Bassevi.
Ofegante, irado, e praticamente perdendo a cabeça, Ezra sacou a p*****a e mirou no meio da testa do oficial; imediatamente, ele sentiu o cano de uma a**a em sua nuca – como os aliados dele haviam entrado, o judeu jamais saberia.
– Se quer manter sua família, incluindo o simpático Abba e seus sogros, eu sugiro que me entregue o menino de bom grado, ou você perderá toda sua família. – Ameaçou. Ezra não sabia como ou porque, mas podia sentir suas pernas tremendo. – Não se preocupe, sou um homem paciente. Contudo, não pense em sair da cidade, muito menos do país. E tenha minha resposta quando eu voltar.
Assim que o Karmesin saiu pela porta da frente, a a**a de sua nuca sumiu. Virou-se para trás, mas descobriu-se sozinho outra vez. Ofegante, seu cérebro acelerava, buscando respostas para aquela situação, como iria sair daquela situação. Sabia que estava sendo observado, ou jamais o oficial ameaçaria que ele escapasse do país.
Também pensava na estranheza, pois sabia que ele poderia tomar seu filho a força; entregar Eber livremente só poderia ser parte das condições para tê-lo. Ezra sentiu-se numa encruzilhada, num beco sem saída; não tinha a menor ideia do que poderia fazer. Apesar de que uma ideia surgiu em sua mente enquanto tomava banho no dia seguinte.
Já a noite do dia seguinte ele fez algo que nunca achou que faria em sua vida: entrar em um pub. O lugar era um dos poucos no estilo inglês em Paris, descendo algumas quadras apenas do Torre Eiffel. Chamado de Pub Anglais – um nome que não poderia deixar de ser mais claro a intenção do dono – reunia pessoas de toda cidade, principalmente ingleses com saudade de casa; e turistas, muitos turistas, o que era o lugar ideal para encontrar informações.
Ezra sentou-se em um banco no bar, esperando chegar a sua vez. Pediu uma Pétales de Romarin, uma bebida que não estava no menu. Seu pai havia explicado que a bebida era um código cujo significado era ele ter uma mensagem para a Nachtkrapp. Ele entregou uma nota de vinte para o barman – dentro da qual estava enrolada um pedaço de papel direcionado diretamente para Luigi. Sua única esperança.
Levou vários dias para obter uma resposta, entretanto, esta não veio da maneira que esperava.
A batida na porta de seu apartamento parecia querer derrubá-la. Ezra, cauteloso e com uma p*****a em mãos, parou antes da porta para ouvir; do outro lado, uma pessoa dolorosamente ofegante. Abriu-a lentamente, para descobrir um Luigi e***********o e ferido do outro lado.
Seus olhos eram dois roxos quase pretos; seu maxilar estava inchado do lado esquerdo, também com hematoma. Ele tinha a mão na altura da barriga, na lateral, onde um corte sangrava entre seus dedos. Ezra imediatamente ajudou-o a entrar e o deitou no sofá de sua sala – felizmente, ele estava coberto com plástico. O judeu precisou lembrar mais coisas que seu pai o tinha ensinado.
Ele correu até a cozinha, onde pegou uma caixa de fósforos. Voltou para sala, onde pegou sua p*****a e tirou uma bala do cartucho; forçou o chumbo para abrir o projetil e acessar a pólvora. Depositou-a dolorosamente no ferimento e acendeu-a. Luigi soltou um grito alto, que trouxe Mazal para fora de seu quarto; assim que trocaram olhares, Ezra sinalizou negativamente com a cabeça, o que a fez ir até o quarto das crianças para impedi-las de sair e ver todo aquele sangue. Precisou fazer uma segunda fez para cauterizar todo o ferimento.
– O que aconteceu com você? – Perguntou, enquanto limpava o ferimento com água e sabão, e enfaixava com alguns panos limpos.
– Karmesin. – Não precisou de mais explicações. – Eu tive que vir – ele ofegou em dor – para te avisar – as palavras saiam pausadamente, entre respirações – a Nachtkrapp caiu. Os nazistas estavam infiltrados há bastante tempo entre nossos homens. Foi um m******e. Vocês escaparam por muito, muito pouco. – Ele fisgou o ar sentindo uma pontada no corte quando Ezra apertou o curativo. – Não use nossos contatos, não procure nossos pontos de encontro. O contato do Pub Anglais foi morto ontem à noite. – Ele se levantou aos poucos, com ajuda de Ezra.
– O que devo fazer? O Karmesin quer meu filho. Ele está me vigiando – apontou para o ferimento – e o que você vai fazer?
– Eu não tenho os recursos para tirar você e sua família daqui. Sinto muito. – Ezra notou que ele ignorou a segunda pergunta, deixando o apartamento.
Sobrou a ele limpar o sangue de Luigi com o desespero aumentando em seu peito. Enquanto esfregava, tentava formar um plano, mas não importava o quanto ele era bom com uma a**a, ele jamais conseguiria salvar sua família.
Ele ouviu os aviões antes que terminasse de enxaguar os panos. Correu para o quarto dos filhos, de onde tinha uma visão melhor da rua e do céu. Apesar da noite escura, ele conseguiu ver a suástica na parte de baixo das asas dos aviões. Alguns deles abriram escotilhas em suas bases, das quais saíram bombas do tamanho de seus gêmeos. Ezra tinha certeza que, mesmo que tivesse um plano, jamais o concretizaria.
A família se abraçou, preparando-se para a batalha que ceifaria a vida deles, e mesmo que não o fizesse, o Karmesin estaria esperando por eles na próxima esquina. Ezra sussurrou que os amava; beijou sua esposa apaixonadamente uma última vez. Então, esperaram.
– Boa noite.
Ouviu a voz gélida, como palavras escritas em uma lápide. Ezra levantou os olhos para ver um homem trajando um terno preto fosco com listras brancas verticais. Ele não usava sapatos, deixando os pés de unhas podres a mostra. O homem sorriu; dentes tão podres quanto. Sua pele era cinza, manchada e cheia de rugas. E apesar de tudo isso, Ezra não conseguia desviar os olhos dos buracos onde deveriam estar os deles.
Ezra sentia que fitava dois abismos sem luz.