O sorriso forçado começa a pesar. Não sei como reagir a memórias que não são minhas, mas preciso manter a fachada.
— Éramos, sim. — Concordo, desviando o olhar para a mesa, tentando parecer ocupado observando os detalhes do lugar.
— O que houve com vocês?
Jéssica percebe minha tensão e muda o tom da conversa.
— Mamãe, o almoço vai esfriar. Vamos nos sentar?
Ester concorda.
—Claro, isso deve ser algum tipo de assunto delicado.
— A vida seguiu caminhos diferentes para nós dois, só isso —respondo.
Ester parece surpresa, mas não insiste.
— Que pena. Ela gostava muito de você, sabia? Eu sempre achei que vocês eram um casal tão bonito.
Jéssica pigarreia levemente, atraindo a atenção da mãe.
— Vamos comer? — Ela sugere novamente, como quem quer encerrar o assunto.
—Claro, sente-se Jason.
Ela acena para que eu tome meu lugar à mesa. Sento-me entre ela e Jéssica, sentindo o peso de um passado que todos parecem conhecer, menos eu.
Enquanto os pratos são servidos, Jéssica fala sobre coisas triviais: o mercado local, os visitantes da temporada e os eventos da cidade. Tento me concentrar no que ela diz, mas cada palavra parece carregada de algo mais profundo.
Ester me olha de vez em quando, como se esperasse que eu completasse uma história ou trouxesse à tona algo que deveria ser natural para mim.
O aroma da comida é convidativo, contudo mexo no arroz, na carne e nos legumes no meu prato, pensando nas palavras de Ester: "A última vez foi com Sara." O nome dela traz um peso que eu não consigo decifrar completamente, como se carregasse um mundo que não pertence mais a mim.
— Você parece diferente, Jason. — A voz de Ester corta meus pensamentos. Levanto o olhar e vejo que ela está me observando com curiosidade. — Mais sério... mais quieto.
Sinto o coração acelerar, mas tento disfarçar com um sorriso.
— É o cansaço, dona Ester. A vida em Londres tem seu preço. Na do tão esvaído que se eu pudesse dormiria o dia inteiro. — respondo, usando o tom mais casual que consigo.
Ela sorriu. Jéssica olha para mim novamente com aqueles grandes olhos verdes, ingênuos.
—Estou admirada. Quem diria, eu esperava isso de Jake, não de você.
Sim, com certeza mudei. A amnésia foi responsável por isso, talvez por começar do zero.
—O acidente forçou meu amadurecimento. —digo simplesmente.
—O que faz para relaxar? Costuma sair?
Jéssica se empertigou na cadeira.
—Mamãe!
Eu sorri para elas.
—Tudo bem. —Falar do meu presente atual era fácil.
—Tenho uma vida social muito ativa por causa do meu trabalho, mas se eu pudesse eu a evitaria. Sou muito caseiro.
Eu relanceei meus olhos para Jéssica que me encarava estranha. O rosto dela refletia confusão. Seus olhos me fitavam sombrios. Com dificuldade eu desviei meus olhos para a senhora Williams.
—Mamãe, me passa a salada. E por favor, agora vamos comer em silêncio.
—Claro.
Comemos num clima ameno, contudo eu me sentia observado pelas duas. Quando finalizei meu prato eu disse com um sorriso.
—A comida estava maravilhosa. Gostei muito da carne com batatas.
Fitei Jéssica, mas ela se levantou sem olhar para mim.
—Vou pegar a sobremesa —disse e se afastou.
Eu a segui com os olhos e fitei a senhora Williams que me observava.
—Essa era a comida preferida de Jake.
Eu senti um baque no coração com a informação.
—Verdade? Ele tinha bom gosto. —Respondi pensativo.
Jéssica nessa hora entrou com uma bandeja com a sobremesa. Ela afastou a carne e a colocou na mesa, pegando uma. Eu me estiquei e fiz o mesmo.
Assim que a colher encostou em meus lábios, o mundo ao meu redor desapareceu. O doce calor do mel deslizou por minha língua, despertando algo profundo, algo familiar, como se eu estivesse sendo abraçado por alguém que não lembrava mais quem era. A canela e a noz-moscada vieram logo depois, suaves, como notas de uma melodia esquecida, trazendo flashes de tardes ensolaradas e risadas que eu não sabia de onde vinham. Então, o frescor da laranja surgiu, quase como um sussurro, delicado, mas inconfundível.
Fechei os olhos por um instante, como se pudesse prender aquele momento entre as mãos, mas ele escapava como fumaça. Não era apenas sabor. Era memória. Um eco distante de quem eu fui, de algo que eu não sabia nomear, mas que me fazia falta.
A senhora Williams quebrou meus pensamentos.
— Agora me esclareça sobre mais um ponto. Você deve estar com uns quarenta anos agora?
Eu concordei.
—Sim, completei no último mês.
— E você ainda não se casou por quê?
Eu a fitei sem ação por um momento. Essa era uma pergunta sem resposta. Eu admiti que a dúvida levantada por ela tinha fundamento, pois eu trabalhava para quê?
Um castelo vazio, onde eu não compartilhava vitórias, conquistas. Eu não queria soar como um cara boêmio, comedor de mulheres, pois eu não era.
E tentei dar uma resposta plausível.
— A verdade senhora Williams, é que depois do acidente, eu me afundei no trabalho. Cheguei a sair com algumas garotas, mas acabou não dando certo. Nunca entendi o porquê. Adoraria vivenciar o amor, adoraria me apaixonar, mas não acontece. Então, para estar com alguém sem gostar, prefiro ficar só.
Fitei Jéssica, que me encarava com um misto de perplexidade e curiosidade, como se tentasse decifrar um quebra-cabeça impossível. Eu não sou apenas um enigma — eu sou o próprio enigma, pensei, deixando um sorriso quase imperceptível escapar.
De forma nenhuma queria que ela visse meu interior, de como vazio eu era. Como minha alma era escura. E como confusa era a minha vida.
Percebi um leve tremor nas mãos de Jéssica quando ela depositou a taça da sobremesa na mesa.