l. Mia

1709 Words
Buffalo Grove - 2010 Meus olhos ardem pela falta de algumas horas de sono enquanto observo mais um dia nascer através da janela do meu quarto. É fim de verão e tem apenas algumas poucas nuvens a pintarem os céus o que significa que o dia será fresco. Logo o outono chega e dias como esses não aconteceram com tanta frequência. Gosto dos dias de sol, mas prefiro os dias frios assim não pareço uma esquisitona quando preciso usar meu velho moletom do Star Wars para incobrir os hematomas deixados por Bill sempre que tem seus acesso de raiva quando, segundo ele, não me comporto como uma boa garota. Ainda carrego as marcas de seu último ataque de fúria na semana passada quando chegou bêbado e mamãe não estava na sala para recebe-lo porque não se sentia muito bem e como não deixei que a incomodasse ele descontou toda a sua raiva em mim. Balanço a cabeça afastando as lembranças e deixo a janela para me preparar. Hoje é dia de jogo o que significa que tenho que me apressar em cumprir as minhas tarefas de casa para poder sair sem grandes problemas. Encontro com mamãe na cozinha preparando o café da manhã quando deixo meu quarto. _ Acordada tão cedo, filha. - Comenta vindo me beijar a testa. - Pensei que aproveitaria o sábado para dormir mais um pouco. _ Não consigo dormir muito em dia de jogo. - Digo e não é de tudo mentira. Sempre fico ansiosa antes das partidas e perco o sono. Mas também venho evitando dormir desde que os pesadelos ficaram mais intensos. - Vou começar com a limpeza assim termino cedo e não corro o risco de me atrasar e perder a chance de entrar em campo por falta de pontualidade. _ Come alguma coisa antes. - Pede voltando a remexer os ovos na frigideira. _ Estou sem fome agora, mãe. - Digo pegando os materiais de limpeza na pequena lavanderia que divide espaço com a cozinha. - Prometo comer alguma coisa quando terminar. - Falo me afastando sem lhe dar espaço para protestar. Começo tirando a poeira dos móveis com um paninho e coloco a sala em ordem evitando ao máximo fazer barulho para não acordar o desocupado do meu padrasto. Quando termino com a sala sigo para o meu quarto e por último o banheiro. Não chego perto do quarto do casal. Essa é uma zona proibida da casa. Apenas mamãe tem permissão para limpar e no fundo até gosto de não ter contato com as coisas daquele homem. Quando volto a sala Bill já está todo espalhado no sofá com uma latinha de cerveja na mão e mamãe lhe serve um prato com algumas azeitonas verdes e pequenos cupos de um queijo que estava escanteado na geladeira à quase três semanas. Passo direto em direção a cozinha para guardar o material que usei na limpeza e ver o que sobrou do café da manhã para mim. Encontro um sanduiche de manteiga de amendoim e um copo de suco de laranja sobre a bancada que, com certeza, foram deixados aqui pela minha mãe. Depois de comer sigo para o meu quarto e guardo as chuteiras, caneleiras, meias e uniforme na minha velha mochila. Também guardo a minha única foto do meu pai comigo para me dar sorte e para que sinta que ao menos ele estará assistindo ao jogo e torcendo por mim como vejo os pais das outras garotas fazerem. Saio de casa por volta das 1h35min depois de lavar a louççça do almoço e colocar tudo na secadora. Não dá para ir caminhando calmamente como pensei mais cedo. Quando chego ao campo todas as garotas já começaram a aquecer e preciso me apressar em trocar de roupa e fazer o mesmo. A treinadora não fala nada quando me junto as meninas quinze minutos depois, mas sei que notou o meu atraso e está esperando o momento certo para me chamar a atenção. Depois do aquecimento tem toda aquela cerimônia pré-jogo e então a bola rola em campo. Mesmo cansada pela correria não deixo que meu rendimento caia em campo e aos vinte minutos do primeiro tempo recebo uma boa bola e a mando direto para o fundo do gol. As garotas comemoram, mas logo o outro time empata mostrando a que veio. Toda a partida é acirrada, mas ao final conseguimos virar o jogo e garantir a vitória. As minha pernas tremem e doem quando sento no banco na lateral do campo para tirar as chuteiras e calçar os tênis. Seco o suor que escorre por minha testa com as costas da mão antes de atirar as chuteiras e caneleiras dentro da mochila novamente. _ Fez um super jogo, Mia. - Conta Izzy, capitã do time, ao se aproximar de onde estou junto com algumas garotas do time. Assinto com um meio sorriso. - A gente vai comemorar a vitória no Dunne's e pensei que você iria gostar de ir também. _ Eu não posso. - Digo arrumando melhor a muchila nos ombros. _ Que pena. - Fala simpática. _ Eu disse que ela não ia aceitar. - Uma das garotas fala para a outra sem se importar se estou ou não ouvindo. - É melhor irmos ou vamos perder a carona, Izzy. - Diz com um ar de tédio de quem está onde não queria. _ Já vamos. - Pontua tentando manter o tom simpático. - Parabéns pelo jogo mais uma vez. A gente se vê no próximo treino. O grupo se afasta falando alto e rindo. Por um momento penso em como seria bom ter um dia comum como uma dessas garotas. Sair com as amigas e passar o resto da tarde jogando conversa fora sem ter que voltar correndo para casa. Seria um sonho, mas agora não tenho tempo para sonhar. Preciso correr se não quiser lidar com um Bill furioso porque a minha demora atrasou toda a sua preciosa agenda de pessoa desocupada. Na metade do caminho sinto uma leve fisgada na coxa direita que me obriga a diminuir o ritmo. Quando chego a minha rua percebo uma movimentação estranha de viaturas e me desespero ao notar que elas estão se acumulando em frente a minha casa. Esqueço a dor em minha perna enquanto corro até minha casa para saber o que está acontecendo. _ Ninguém passa por aqui. - Um polical fala barrando os curiosos atrás de uma fita amarela como acontece nessas séries policiais que passam na televisão. O ignoro e tento ultrapassar a fita, mas ele entra na minha frente como se fosse uma enorme parede. - Você não pode passar, mocinha. Aqui não é um parque de diversão. _ Eu preciso entrar. - Digo tentando entrar novamente e sentindo a dor na coxa se espalhar por toda a perna quando ele volta a me barrar. - Essa é minha casa. - Aponto a velha construção. _ O que está havendo aqui? - Questiona um homem usando um colete preto e tem o distintivo pendurado no pescoço. _ A garota está falando que mora aqui. - Diz como se eu fosse incapaz de falar. _ Isso é verdade. - Me pergunta e afirmo com um rápido movimento de cabeça. - Deixa a menina passar. - Manda e o policial obedece erguendo a fita liberando minha passagem. Manco um pouco enquanto caminho ao lado do cara de colete. - Tudo bem? _ Sim. - Minto angustiada olhando a movimentação a minha volta. - O que aconteceu? Onde está a minha mãe? Foi o Bill outra vez? - Pergunto temendo a resposta. _ Os vizinhos nos chamaram depois de ouvirem gritos e som de briga vindos da sua casa. Quando chegamos a sua mãe estava sozinha com vários ferimentos por faca na altura do abdomen e desacordada no chão da sala. _ Ela morreu? - Pergunto com a voz trêmula. _ Não. - Diz e sinto um alívio percorrer todo meu corpo. - Ela foi levada para um hospital que fica aqui perto. Se quiser ir até lá posso pedir que uma viatura te leve. _ Eu quero. Ele acena para um par de policiais e pede que me acompanhem até o hospital para onde levaram a minha mãe. Eu os sigo de perto ignorando a dor que aumenta a cada passo e me esforço para não mancar. Sento no banco traseiro da viatura e logo ganhamos as ruas tranquilas da cidade. A medida que nos aproximamos do hospital o ar parece encontrar dificuldade em entrar nos pulmões e o coração bate em um ritmo alucinado. A sensação é que acabei de correr mais de vinte voltas em torno do campo sem descanço. Pressiono os lábios reprimindo um grito quando salto do carro em frente ao hospital. Caminho mancando até a entrada sem esperar pelos policiais e paro apenas quando chego a recepção. _ Em que posso ajudar? - A moça perguntou com um tom calmo que deve ser treinado. _ Estou procurando a minha mãe. - Me apoio no balcão para me manter de pé. - Eles trouxeram ela para cá. _ Como é o nome da sua mãe? _ Karen Moore. - Sinto nojo ao pronunciar o sobrenome daquele homem. _ Ela deu entrada em estado grave e foi encaminhada direto para a cirurgia. - Diz depois de checar as informações no computador e sinto o chão abrir sob meus pés. Troco o peso da perna esquerda para a direita esquecendo a dor e quase caio no chão. - Uma cadeira aqui! Uma cadeira de rodas surge do nada e logo sou levada até um dos leitos da emergência. Então um dos médicos de plantão vem me atender e uma enfermeira trata de pegar um acesso na minha veia enquanto os policiais aguardam próximos ao balcão da enfermaria. _ Eu preciso ver a minha mãe. - Tento sair da cama, mas sou impedida por eles. _ Você precisa se acalmar e me dizer o que está sentindo. - O médico diz em um tom estudado me fazendo olhar em seus olhos. _ A minha perna direita. - Confesso com uma careta de dor. - Começou com uma fisgada quando estava voltando para casa depois do jogo e agora está doendo tudo. _ Certo. - Fala apalpando a minha coxa e não consigo evitar o gemido de dor. - Acho que é alguma lesão muscular. Traga o aparelho de ultrassom para termos certeza. - Pede a enfermeira que prontamente faz que me pediu. O exame é rápido e pela cara do médico sei que as coisas não estão bem. - É de fato uma lesão grau 2 no músculo da coxa. Vai precisar fazer repousos, medicamentos que vou receitar e fisioterapia. - Volta sua atenção para a enfermeira. - Já pode administrar os analgésicos para a dor e iniciar os antibióticos e providencie uma tala. Onde estão os seus responsáveis? - Pergunta tornando a me encarar. Explico novamente a situação da minha mãe e o olhar de pena que o médico me lança faz um sentimento de raiva brotar em meu peito. A enfermeira força um sorriso enquanto injeta um líquido transparente na bolsa do soro pendurada ao lado da minha cama e logo as gotas correm um pouco mais rápidas. O médico se afasta para conversar com os policiais que me trouxeram e a enfermeira me deixa para atender ao paciente do leito no meu lado esquerdo. Não demoro a sentir os olhos pesados e quase não sinto dor. Provavelmente são os remédios fazendo efeito. Mesmo me esforçando para os manter abertos acabo adormecendo e acho que é a primeira vez em anos que durmo horas sem ter um único pesadelo. Levo um tempo até reconhecer onde estou e lembrar o que aconteceu quando acordo. Tenho uma tala preta em imobilizando a perna e quase não sinto dor. O som de gemidos e sussurros me angustiam e sinto a necessidade de me afastar. Tento deixar a cama, mas a perna machucada me deixa com pouca mobilidade e a altura da cama dificulta ainda mais minha tarefa. Ainda assim não desisto. Uso um par de muletas que estão ao lado da cama e consigo ficar de pé com o auxílio das mesmas, desconecto o soro do meu braço e caminho de forma cautelosa para fora do meu leito. A enfermaria está vazia, os policiais que me trouxeram estão distraídos e não encontro problema em andar pelo longo corredor e pegar o elevador para o andar onde ficam os pacientes que passam por cirurgia. Ouço quando algumas enfermeiras falam sobre a mulher esfaqueada que trouxeram no fim da tarde e que creio ser a minha mãe. Por uma espécie de parede de vidro consigo vê-la rodeada por aparelhos e parece estar dormindo. Sem pensar muito abro a porta e entro no quarto frio cheio de aparelhos barulhentos. De perto a consigo ver melhor. Ela tem uma faixa em da testa, uma máscara de oxigênio em seu rosto e pequenos cortes em seu lábio inferior e no canto do seu olho direito. _ Mãe. - Chamo com a voz embargada e vejo seus olhos abrirem lentamente. _ Filha. - Diz com a voz falha e um fraco sorriso que parece lhe doer. - Você... está... bem? - Afirmo com um movimento de cabeça. - Ele... fez... alguma... coisa... com... você? _ O Bill? - O terror em seu olhar é a confirmação da minha pergunta. - Por que ele fez isso? - Pergunto segurando sua mão. _ Seu... pai. - Diz apertando minha mão. - Tem... que... encontrar... seu pai. - Sua respiração se torna mais ofegante e os aparelhos apitam de forma alucinada. - Bill... está... louco... - Aperta forte minha mão em sinal de desespero e então o aperto se afrouxa e seu olhar fica desfocado até que se fecham. Em questão de segundos sou afastada dela por uma enfermeira que invade o quarto. _ O que está fazendo aqui? - Pergunta apertando um botão na parede e começa uma massagem em seu peito ao mesmo tempo que mais um batalhão de pessoas invadem o pequeno cubículo. Eles começam a falar em códigos que não entendo agitados em volta da minha mãe. Sinto medo, raiva e dor ao mesmo tempo. Tento me aproximar para ver o que estão fazendo com ela, mas sou tirada de lá por um dos enfermeiros. Vejo quando eles começam a dar choques para fazê-la despertar e me assusto cada vez que o seu corpo se ergue e depois voltar a cair na cama a cada choque até que eles param e deixam a sala um a um cansados e frustrados. Um deles, que deve ser o médico, para diante de mim e não preciso que fale para saber o que acabou de acontecer. Ela se foi e me deixou aqui sozinha. Todo o mundo fica em silêncio, as horas parecem não passar, o chão some sob meus pés novamente e então sou engolida pela dor.
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