Capítulo 3

2054 Words
Lissa observava de sua janela a lua resplandecente, imaginando como seria se pudesse ir para lá, se teria que continuar a usar sua cadeira sob rodas ou se ganharia novas pernas. (Trecho do livro Pequeno Guerreiro da Lua, grande valente terrestre, de Antonella Bella Valentini). ∞∞∞ Quase uma semana havia se passado desde "a manhã gloriosa". Eu já estava enlouquecendo olhando para a porta da entrada de casa esperando algum mensageiro ou a própria Sra.Gatti chegar. Nada estava decidido. Na verdade, eu esperava primeiro pela resposta da mulher que poderia me hospedar para então de fato decidir. Além disso, não dependia apenas de mim, pois eu precisaria convencer o meu irmão, que pensando bem, talvez fosse meu maior empecilho. De qualquer forma eu estava muito ansiosa, como uma criança esperando pelo presente de aniversário. Entretanto, eu era uma mulher adulta, e não poderia ficar agindo como uma criança desesperada. Então, peguei minha caixinha de pintura que ficava sob meu armário e minha última tela em branco recostada à parede, e segui sem rumo. Era setembro e estávamos na primavera, quase verão, mas São Paulo não parecia seguir as regras das estações e deixar o frio para o inverno. A ponta do meu nariz já estava petrificada e o vento gélido que afastava os fios do meu rosto se intensificava conforme eu me afastava. Eu parava algumas vezes durante o trajeto para admirar a bela vista que minha casa formava sob o pôr do sol. A pequena estufa do meu pai ficava do lado direito acompanhando a trilha de flores que se estendia por todo o gramado. Nossa família nunca teve posse de uma grande fortuna, mas tínhamos condições favoráveis e fazíamos parte das reuniões da alta sociedade, principalmente porque meu pai era botânico e requisitado no meio científico. Dessa forma, nossa casa era grande e tínhamos um bom terreno, totalmente afastado do centro da cidade, pois meu pai queria ficar o mais próximo da natureza. Nossos únicos vizinhos além dos Gatti, moravam a cinco quilômetros de distância e tudo que comíamos era plantado e colhido em nosso próprio terreno, o qual minha mãe decorava com flores por toda parte. Suas preferidas eram margaridas e jasmim que, conforme ela dissera, eram muito comuns na Itália e a fazia se sentir em casa. Gostei daquela visão, então me aconcheguei próximo a uma árvore robusta e preparei minhas ferramentas de pintura, posicionando a pequena tela à minha frente sem obstruir a paisagem. Pintar me fazia relaxar. Meus dedos seguravam delicadamente o cabo dos pincéis e as cerdas macias acariciavam a tela em branco. No início pinceladas em azul claro com tons amarelados se intercalando. Depois de algum tempo elas se tornaram mais firmes e rápidas, como um pianista executando as notas exigentes da partitura. Os dedos estavam em movimentos frenéticos sobre as teclas do piano. E de repente eu estava cantarolando sem notar: "Oh Dio del ciel che fai fiorir le rose, manda un marito a tutte queste tose." Comecei a ser levada pela melodia, de forma que a sola dos meus pés criava ritmo sob o solo. "La Marianna la va in campagna quando il sole tramonterà, tramonterà, tramonterà, chissà quando, chissà quando ritornerà." A harmonia da música me fez levantar e rodopiar, sentindo a brisa fria me envolver como em uma dança enquanto entoava as últimas estrofes. "Si, bella è la rosa, ma ancor di più è la viola, la mia mogliettina sarà una campagnola." Repetindo os versos me lembrando de como adorava dançar esta música com meus irmãos, enquanto meus pais ficavam nos observando prontos para entrarem no ritmo desordenado dos nossos passos. Um tempo depois, voltando onde eu estava sentada, agora com um ar divertido, admirava o retrato que se formara sobre a tela antes crua e branca. Fiquei satisfeita ao ver o resultado. -Parece que está contente hoje, Antonella Bella Valentini - disse Ana se aproximando. - Ana! - falei, pulando em cima dela. - Por que não veio me visitar esta semana? - abraçando-a. Ana era um ano mais velha do que eu, morava a quatro quilômetros dali e era minha melhor amiga, na verdade uma irmã que a vida me dera desde os 14 anos. Seus olhos escuros, agora me avaliavam com uma expressão de desgosto e o cabelo vermelho como fogo se agitava conforme balançava a cabeça em negação. - Você é a pior amiga que alguém poderia ter! - dizia ela com uma expressão raivosa sobre seu rosto que mais parecia um céu estrelado. Suas sardas me causavam inveja apesar dela odiá-las. - Haa Ana não fique brava comigo, eu esperava… - Esperava o quê?-interrompeu ela-Ir embora e não se despedir? - com seus olhos escuros se derretendo em lágrimas. - Ana! Eu nunca faria isso, como eu poderia ir sem me despedir? Ela parou incrédula. - Então é verdade? Você vai mesmo? Mas… eu vou ficar sozinha… e… ó céus eu não estou pronta para isso! - desabou ela, balançando a cabeça negativamente repetidas vezes. - Não chore Ana! Sabe que mesmo que você quisesse eu nunca deixaria você sozinha, pode acreditar.- fiz uma pausa no abraço agora a encarando. - E, além disso, eu não me decidi ainda. Existem muitas coisas que eu tenho que considerar - expliquei. - Justo quando meus pais irão viajar e me deixarão sozinha? Eu esperava passar esse tempo com você em sua casa, Ella - disse ela sem ouvir uma sílaba do que eu dissera. - Então não modifique os seus planos por minha causa! Fique na minha casa o tempo que desejar. Eu não sei se vou e mesmo se eu for sabe que é muito bem vinda aqui - declarei enfatizando novamente a parte sobre a incerteza. - Eu sei! Assim como todos vocês são bem vindos à minha casa - dizia ela, me apertando ainda mais em seu abraço. De repente ela me largou. - Se bem que eu planejava ficar mais por conta da Filomena e seus pratos deliciosos - declarou ela rindo da minha expressão. - Depois eu que sou a pior amiga do mundo! - falei cruzando os braços e lançando um olhar de reprovação. Ana Bakker era filha de holandeses e seu pai também era botânico. Quando meu pai desapareceu, ela foi um porto seguro para mim, me consolava, acalmava e cantarolava até eu dormir, pois tinha uma voz espetacular. Eu sempre desconfiei que Luigi a considerava como algo a mais que uma amiga, mas ele era um pouco tímido quando se tratava de relacionamentos amorosos, nunca dividira um só sentimento comigo. - Seu quadro ficou perfeito, Ella! - disse Ana enxugando as lágrimas e mudando de assunto. - Eu até pensei que estava com tontura ao me deparar com duas imagens idênticas. - Obrigada querida. Acabei me empolgando, mas na verdade não ficou tão bom, olhe alguns borrões aqui e ali – apontei. - Não seja uma koppige vrouw - disse ela em holandês - Ou em português: uma "mulher teimosa". Enrruguei o nariz para contradize-la. - Sei una donna testarda! Ou no português claro: “você é uma mulher teimosa”. - Agora você vai querer brigar em vários idiomas? Senhorita Rodrigues não nos castigou o bastante durante as aulas de latim quando crianças? Cai na gargalhada. Eu e ela sempre estudamos juntas e quando uma não comparecia à aula, a outra inventava alguma dor de barriga de última hora para faltar também. Éramos inseparáveis. - Ana, antes que eu me esqueça, quem te contou sobre a carta? - perguntei. Ela fingiu inocência. - Luigi- declarou baixinho- Encontrei com ele hoje cedo enquanto ele discutia com meu pai sobre alguns papéis. Seu irmão não parecia muito bem, então conversei com ele tentando fazê-lo se sentir melhor - ela riu. - No final, acabou me contando tudo. Acho que vou fazer isso mais vezes. - Tenho que vedar a boca do meu irmão nas próximas vezes que ele for à sua casa- falei devolvendo um riso falso para disfarçar a preocupação sobre ele não parecer muito bem. Luigi não dividia nada conosco, minha mãe e eu só sabíamos que não estávamos muito bem financeiramente, pois invadíamos seu escritório e analisávamos alguns documentos quando ele não estava em casa. - Nem pense nisso!- exclamou ela me ajudando a organizar as coisas e voltar para dentro de casa. Quando entramos, Filomena tinha terminado de preparar um "cafezinho da tarde" ou uma "la merenda", como costumávamos nos referir. Além do indispensável café puro, tinha bolo de fubá e suas famosas bruschettas. Mesmo não sendo italiana, ela aprendeu de modo rápido a culinária italiana e de alguma forma sempre deixava seu toque brasileiro nos pratos. Tínhamos tanta sorte em tê-la. - Olá senhoritas - disse Luigi levando outra bruschetta à boca, sem ter terminado a que engolia, enquanto Mena o lançava um olhar reprovador pela falta de etiqueta. - Luigi! Por que não nos esperou?- perguntei já me sentando a mesa e Ana fazendo o mesmo. - Por que meu estômago não é paciente e as bruschettas da Sra. Filomena quase me fazem chorar. Eu não duvidaria, pois meu irmão sempre estava comendo e quando não, ficava pensando no que comer. De repente dois furacões entraram na sala. - Vem me pegar Luca! - gritou Clarisse, irmã de Ana, ao meu irmãozinho enquanto eles corriam pela sala. - Cla-ris-se, pare de correr agora mesmo! - advertiu Ana - Você está descalça? Esqueceu que não estamos em casa? Vá se recompor agora mesmo! Sua irmã revirou os olhos em resposta. Clarisse sempre acompanhava Ana em suas visitas à minha casa, pois ela era a melhor amiga de Luca, assim como Ana era para mim. A irmã de Ana contribuiu muito para o desenvolvimento da escrita dele, visto que Luca amava brincar e precisava aprender formas diferentes de se comunicar. - Não se preocupe Srta. Bakker, quero que sinta-se em casa - disse minha mãe entrando na sala e nos lançando um sorriso que mesmo cansado era muito acolhedor. - Sra. Valentini, obrigada por nos receber mais uma vez! - disse Ana como se sua visita a minha casa fosse rara, o que evidentemente não era verdade. Minha mãe assentiu. Levei algumas bruschettas à boca e quando os sabores encontraram o meu paladar, meu cérebro desligou. Por um momento só existiam as pequenas torradinhas. Elas eram cobertas por lascas de queijo derretido que se misturavam com o leve toque cítrico dos tomates e o amargor do manjericão. Mais precisamente: O paraíso. - Ella, vamos fazer um dueto? - disse Ana me despertando dos últimos pedaços. - Você no violino e eu no canto. - Vamos. Só vou ter… - antes que eu pudesse terminar a frase ela já estava me puxando para a sala de música. Enquanto eu afinava o instrumento, nossa pequena plateia se acomodava no ambiente. Eu encaixei o violino no ombro esquerdo e deslizei o arco sobre as primeiras notas da clave de sol, enquanto Ana soltava a voz espetacular. Toda vez que ela cantava eu ficava arrepiada da nuca aos calcanhares e pelo que se podia ver isso não acontecia somente comigo. Luigi nem sequer piscava, a encarando sem nem se envergonhar caso ela o percebesse. Suas íris claras brilhavam como se fitasse as chamas de uma lareira. Neste momento eu me perguntei se Ana tinha consciência disso, então olhei de relance para ela e constatei que continuava com os olhos fechados apenas movimentando os lábios na canção. Luca, assim como Ana, estava com os olhos fechados e a palma de suas mãos grudadas ao chão. Ele sentia a música pelas vibrações que o som produzia, de forma que quanto mais rápida e forte os sons, mais ele gostava. A noite terminou. Ana e eu ficamos conversando em meu quarto enquanto Clarisse já dormia desajeitada sobre a cama. Permanecemos assim até minha mãe chamar nossa atenção, pois ainda estávamos acordadas. Então resolvemos obedecê-la. . . . . . Notas: "Oh Deus do céu que fazes florescer as rosas, manda um marido a todas estas meninas. A Marianna vai para a campanha quando o sol desaparecerá, desaparecerá, desaparecerá, quiçá quando, quiçá quando voltará. Sim, bela é a rosa, mas ainda mais és a violeta, a minha esposinha será uma camponesa. (Estrofes retiradas da canção La Marianna la va in campagna)”
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