Capítulo 2

2796 Words
Por que aquele planeta tem mais alegria do que aqui na lua, papai? - perguntava o príncipe Luno ao seu pai enquanto observava a Terra. - A lua também já foi assim, antes da princesa ser perdida - respondeu o rei ao seu filho. (Trecho do livro Pequeno Guerreiro da Lua, grande valente terrestre, de Antonella Bella Valentini). ∞∞∞ Lorenzo Henrico Valentini era meu pai, meu melhor amigo e também meu maior admirador. Era botânico assim como meu avô Giuseppe que, segundo ele, veio ao Brasil junto a Arquiduquesa Leopoldina da Áustria, noiva do Imperador Dom Pedro I. No intuito de explorar as terras brasileiras, meu avô deixara um importante legado para nossa família. Ele havia executado importantes estudos e intitulado mais de quatro mil amostras específicas da flora. Além disso, ele também era escritor e fora um dos primeiros a relatar com exatidão as suas experiências nesse território. Minha mãe sempre dizia que meu pai era literalmente a materialização do meu avô até mesmo na forma como amarrava o cabelo loiro para trás. E meu pai amava ser comparado a ele, dizia que morreria feliz se pudesse ser dez por cento do que seu pai fora para ele, só que para nós. E de fato, ele cumpriu muito além do seu objetivo. Lorenzo era moderno e ousado em suas pesquisas, mas também um pai amoroso e extremamente dedicado à família. Ficava dez dias fora e quando voltava fazia questão de recompensar todo o tempo perdido. Fora isso, ele era inovador e adorava ideias modernas e avanços científicos, não para ver os ricos se tornando mais ricos, mas para saber que sua família viveria em um mundo melhor. Minha mãe dissera que o seu maior sonho era ter uma menina, diferentemente dos outros homens que esperavam logo um herdeiro para perdurar o nome da família. Outros pais queriam ver suas filhas bem casadas enquanto ele só queria ver-me livre das regras sociais. Ele tentava me deixar a par dos negócios da família e também me inserir no mercado de trabalho, o que evidentemente era quase impossível, visto que, uma mulher trabalhando era tenebroso até para meu irmão mais velho encarar. Porém, meu pai não se importava com o que os outros pensavam. Quando perguntavam a ele o porquê do objetivo em me pôr a trabalhar, ele apenas respondia: “Oras, e porque não? Antonella tem dois braços duas pernas e uma cabeça que funciona perfeitamente bem!" Não suportava a ideia de ver-me casando-se para ter dinheiro ou propriedades, e dizia que só daria a sua benção se houvesse amor em meu relacionamento. Dessa forma, ele investiu quase toda sua renda em nossa educação. Luigi se formara em direito há pouco tempo e Luca ainda era criança, portanto não tinha muito que fazer. Entretanto, comigo era diferente... Ele tentara colocar-me em diversos cursos universitários para que eu tivesse a oportunidade de trabalhar em cargos distintos e assim me tornar independente. O único problema era que eu não encontrava nenhuma paixão por área alguma do conhecimento, e isso porque eu poderia dizer com todas as palavras que já havia experimentado de tudo para chegar àquela constatação. Eu tinha vontade de me estrangular quando meu pai apresentava novas opções de atividades universitárias, pois enquanto algumas mulheres tinham dificuldades em convencer os pais a lhes deixarem ir para as universidades, eu tinha tudo e não queria nada. Tinha a oportunidade de me formar não para executar as tarefas de uma esposa letrada, mas para de fato desfrutar daquela profissão. Além disso, saber ler e escrever não era realidade em todos os lares, sendo ainda menos presente em circunstâncias de miséria. Então, pode-se dizer que eu era tão privilegiada como nenhuma outra mulher antes fora e, mesmo assim, fui ingrata o suficiente para não desfrutar dessa imensurável benção. Eu simplesmente não encontrava nada que segurasse minha atenção por muito tempo, nada que me fizesse querer levantar todas as manhãs apaixonada pelo que estava fazendo. A não ser uma coisa... A leitura. “Oh!” Só de pensar em pegar um livro nunca lido e sentir aquele cheiro de tinta e cola, meu corpo inteiro estremecia como se estivesse de frente para a sobremesa mais saborosa do mundo. Como eu amava ler! Não filosofia ou sociologia, artes ou biografias, mas romances. O quanto eu amava passar tardes e noites acordada lendo e relendo minhas obras favoritas, chorando e rindo distraída com aqueles amontoados de letras em linhas. Até que então, em um belo dia, uma história muito sem sentido ecoou pelas margens do meu cérebro. Eu estava vendo Luca brincar com sua amiga no jardim e comecei a pensar nas limitações que ele enfrentava por ser uma criança com deficiência auditiva. De repente uma narrativa começou a ser escrita na minha visão, era tão surreal que eu precisei colocar em palavras. Eu tinha dezenove anos e estava quase me matriculando no curso de Artes plásticas, pois não ia deixar de fazer algo e, muito menos, decepcionar meu pai. Entretanto, a vida tomou um percurso totalmente inimaginável e em menos de um mês nascera meu primeiro livro. Demorei semanas para tomar coragem e apresentar a obra à minha família. Quando enfim mostrei, meu pai ficou perplexamente maravilhado, como se o que eu lhe mostrara fosse uma raridade nunca antes vista. Ele ficou tão enlouquecido que tentara de todas e incessantes formas possíveis publicar meu livro, havia inclusive, esquecido a ideia de me mandar para a universidade. O problema era que para uma mulher solteira publicar uma obra era muito difícil, ainda mais por se tratar de uma literatura infantil e fictícia. O pacote perfeito para as gráficas e editoras não acharem nem que aquilo valesse os papéis e os tubos de tintas gastos. No entanto, meu pai não desistiu, havia procurado até mesmo me empregar em jornais de linha editorial, pois dessa forma eu poderia publicar a obra de uma maneira mais indireta. Ele inclusive almejou me colocar num cargo de importância, o que evidentemente era impossível. De qualquer forma, todos os seus esforços foram sem sucesso, pois nenhum dos jornais quisera me contratar. Assim voltamos a levantar novas alternativas, e todas elas pareciam não chegar a lugar algum. Na única vez que eu consegui receber uma proposta de publicação, ele só faltara incendiar a casa após ler, entre parênteses no contrato, que a obra só seria publicada caso fosse em seu nome. O nome de um homem. Meu pai se revoltara de tal forma que ficou longe de casa por dias para espairecer a cabeça. Ele era perfeito. Porém... Nada que é tão bom parece durar muito tempo neste mundo. Assim, há seis meses, ele fora apresentar suas descobertas para a sociedade científica italiana. Antes de ir, separou um dos meus livros para tentar publicá-los por lá, o que era pouco provável, visto que eu escrevia em português e continuava sendo uma mulher. De qualquer forma, quem conseguiria tirar uma ideia da mente daquele italiano cabeça dura? Foi então que ele embarcou no primeiro navio que partia de Santos em destino ao porto de Génova, mas não chegou a concluir a viagem, pois o navio não foi encontrado e pelo que a Guarda disse, não havia sido identificado nenhum sobrevivente. Nós ainda tínhamos esperanças que ele retornasse a qualquer hora, abrindo a porta da entrada e dizendo o que sempre dizia com sua voz rouca quando chegava de suas viagens: "Pensaram que tinham se livrado de mim non è? (não é?) Sinto informá-los que não foi dessa vez!” Porém, os dias foram passando e se tornaram meses. Meses de angústias e pesadelos imaginando o que poderia ter ocorrido. Até que um dia, a Guarda nos informou que alguns objetos que poderiam ter sido do navio, tinham sido encontrados em uma praia próxima ao porto do suposto desembarque. Nós três fomos averiguar se algum dos objetos pertencia ao meu pai e para nossa total infelicidade, encontramos a capa de um livro com o título “Pequeno guerreiro da lua, grande valente terrestre” seguido pelo meu nome destacado. Aquilo me devastou. Toda vez que eu pensava em meu pai, uma cobra parecia se enrolar ao meu pescoço, sufocando-me. De certa forma, eu me sentia culpada, e uma parte de mim parecia ter desaparecido junto com ele. Justamente a parte que me fazia escrever até o amanhecer até a tontura e o sono me vencerem. Eu nunca mais voltei a escrever como antes e o medo parecia me consumir agora. Afinal, como eu faria se aceitasse a proposta de trabalho no jornal? Além disso, eu nunca achara possível que um jornal que eu nunca vira na vida pudesse me contratar para um cargo importante como aquele. Ainda em choque, minhas mãos tremiam fazendo aquela folha se agitar freneticamente entre os meus dedos. Só percebi que estava chorando quando senti os dedinhos frios de Luca limparem as lágrimas quentes que escorregaram dos meus olhos. - O que foi Antonella? - perguntou minha mãe já tomando a folha das minhas mãos sem eu perceber. Eu ainda fitava o nada sem entender por onde começar a explicar. - Oh mio! - dizia ela em espanto ao ler a correspondência. – Ella - segurando minhas mãos prosseguiu. - seu pai ficaria tão feliz! Você deve ir minha menina. Já fazia tanto tempo que não a via sorrindo daquele jeito. - Mas e se não tiverem enviado à pessoa certa? - perguntei. - Claro que enviaram! – pigarreou - Quer dizer, a menos que a senhorita não seja Antonella Bella Valentini - dizia ela divertindo-se com meu estado. - Mas ele não garantiu que publicaria os livros. Além disso, eu sou uma mulher e não é comum mulheres trabalharem, muito menos em um lugar tão distante. E se... Como... - eu não conseguia formular nada coerente na cabeça. - Pare com isso ragazza! Você deve correr atrás dos seus sonhos - dizia ela enquanto Luca não entendia nada do que estava acontecendo. Minha mãe explicou a ele falando com as mãos de forma que ele compreendesse em parte. - Mas e se eu não souber o que escrever… E se não gostarem… E se... Ela repousou seu dedo indicador em meus lábios fazendo me parar de falar. - Acima de tudo, você mais do que ninguém sabe o quanto é difícil conseguir que simplesmente vejam o seu trabalho, muito mais que te ofereçam um cargo tão bom - erguendo as mãos como agradecimento aos céus. - Oh mio! Tuo padre ficaria tão contente! - disse ela enquanto Luca batia palmas e ria feliz mesmo, sem compreender o que tudo aquilo significava. - Este homem poderia saber o que traz tanta felicidade a estas duas lindas damas e este forte cavalheiro italiano? - dizia Romeu todo galanteador entrando na sala. Romeu Gatti era nosso vizinho desde sempre. Foi criado pela tia que era dona de muitas posses e também quase nossa aparentada de tão próxima da família. Sr.Gatti era alto e muito desenvolto, tinha cabelos cor de ouro e um sorriso de amolecer até os corações mais duros, ou simplificando, un bell'uomo, como dizia minha mãe com um cutucão na minha costela. Romeu tinha vinte e sete anos e estava começando a carreira de médico. Minha mãe e a Sra. Gatti já estava praticamente organizando o meu casamento, mesmo eu negando sempre que tocavam no assunto, pois ele não parecia gostar de mim como nada além de uma amiga. - Bongiorno Sr. Gatti - disse eu limpando as lágrimas e tentando me recompor rapidamente. Minha mãe acabou explicando a situação a ele com uma alegria infinita. Logo eu estava tão feliz que eu podia sair gritando aos quatro cantos da terra que a alegria existia de fato. - Oh mio! E a senhorita irá aceitar? - perguntou-me Romeu. - Quem aceitará o quê? - interrompeu meu irmão mais velho entrando na sala, com um sorriso travesso no rosto, acompanhando a tia de Romeu. - Sra. Gatti, como é bom vê-la nesta manhã tão gloriosa - cumprimentou minha mãe. - Eu digo o mesmo minha querida amiga Aurora - disse Sra. Gatti soltando-se do braço de Luigi. - Luigi, voltou mais cedo? - perguntou mamãe. - Sim Mama...- respondeu. Ele não tinha uma expressão muito boa, mas se esforçou ao máximo para transparecer que tudo estava bem. Ambos se acomodaram na mesa junto a Romeu, enquanto minha mãe voltara a recontar a história como se fosse a primeira vez. As lágrimas que antes escorreram sob meu rosto, agora avermelhado, haviam dado lugar a várias ruguinhas de felicidade decorando o meu sorriso. Apesar de achar que aquela loucura não daria certo, algo em mim parecia ter se despertado. - Oh minha querida! Você deve ir! Não tenha dúvidas - Sra. Gatti exclamou estendendo os braços para me abraçar. - É muito cedo ainda para dizer, pois acabei de receber a correspondência - respondi enquanto pensava na possibilidade de realmente aceitar. “Eu estava enlouquecendo? Uma mulher trabalhando em um jornal rodeado por homens sem nenhum parentesco ou amizades? Eu não poderia aceitar aquilo.” Após o desaparecimento do meu pai, os negócios da família não iam nada bem. Luigi estava se esforçando muito para que não sofrêssemos tanto financeiramente em longo prazo, mas todos nós sabíamos que teríamos que tomar alguma providência. Meu irmão era advogado e buscava por clientes incansavelmente. O problema era que a maioria dos senhores não queria apostar em um advogado recém-formado para defender suas terras. Além disso, a renda da nossa família era paga pela Itália e como meu pai não prestava mais serviços, foram cortados todos os pagamentos. Estávamos à beira da falência e nem fazia seis meses que meu pai havia desaparecido. Eu já tinha pensado até na possibilidade de retornarmos a Itália e ficarmos com nossos parentes, mas seria uma mudança drástica e talvez não estivéssemos prontos para isso. Então, talvez esse trabalho realmente nos ajudasse se eu conseguisse de fato ir até o Rio de Janeiro. "Minha nossa!"- pensei. Eu não tinha me dado conta até aquele momento que o Rio de Janeiro ficava a muitas milhas dali. Eu teria que morar sozinha em uma cidade desconhecida e ainda por cima, nem era certo que eu publicasse o livro, o que o tal de Ernesto deixou bem claro. Mas que outras oportunidades de realizar o sonho do meu pai eu havia recebido? - Não se preocupe Srta. Valentini - disse Sra. Gatti parecendo ler meus pensamentos - Caso a senhorita aceite a oferta, talvez eu possa ajudá-la com sua estadia, pois tenho uma grande amiga que mora confortavelmente no Rio de Janeiro. Ela ficou viúva faz pouco tempo, e acredito que ficará muito feliz em recebê-la. Posso contatá-la e resolver tudo. Não se preocupe! - Muito obrigada Sra. Gatti! Parecia ser uma boa ideia, já que pelo que eu entendi não precisaria pagar nada. Mas será que a mulher de fato estaria de acordo em hospedar alguém que pouco a ajudaria? Além disso, eu ainda era uma desconhecida e ela estava de luto, será que realmente concordaria com isso? - Mas não se incomode Sra.Gatti- apressou-se meu irmão, ainda incrédulo, e pelo que se podia notar, Luigi não era a favor da ideia de me ver fora de casa e muito menos trabalhando- Nós podemos manter Antonella confortavelmente lá, “caso” ela vá. Luigi não quis ofendê-la, mas como um Italiano dos Valentini cabeça dura que era não deixaria transparecer que estávamos precisando de ajuda. - Eu compreendo querido - disse ela tocando no ombro de Luigi, parecendo de fato entender a situação. - Mas farei isso de qualquer forma - decidida. Sra. Gatti era viúva de um cafeicultor italiano. Eles nunca tiveram filhos, mas cuidaram de Romeu como se fosse um. Pelo que sabíamos a única irmã da Sra. Gatti não era de se preocupar com sua reputação, tinha se envolvido com muitos homens na Itália e veio ao Brasil já grávida de um desconhecido. Ela morreu durante o parto prematuro de Romeu. O que deixou Sra. Gatti traumatizada com a possibilidade de alguém engravidar e ter um parto ali. Provavelmente ela desmaiaria senão tivesse um ataque cardíaco antes, o que de fato quase aconteceu quando minha mãe deu à luz a Luca. - Ella não se preocupe querida. Se aceitar esta oportunidade, nós te ajudaremos. Fique tranquila, pois não está sozinha - declarou Sra. Gatti. - Obrigada Senhora! - disse eu enquanto a abraçava. E lá estávamos todos comendo e rindo alto. Para muitos aquilo parecia ser normal em uma família de italianos, mas para mim aquele momento parecia ser tão precioso que tive medo que acabasse. Naquele dia eu teria muito a agradecer nas minhas orações e m*l podia esperar pelo que estava por vir.
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