- Não vá brincar muito longe Lissa! - dizia sua mãe enquanto Lissa, sentada sob sua cadeira, atirava um galho ao seu cachorro no gramado de casa.
(Trecho do livro Pequeno Guerreiro da Lua, grande valente terrestre, de Antonella Bella Valentini).
∞∞∞
Durante os passados dez dias após 'a decisão', eu me dediquei em enviar cartas e preparar tudo para que as coisas caminhassem na direção certa.
Sra. Augusta, quem me hospedaria, se preocupou em contratar uma dama de companhia e Romeu se comprometeu a me acompanhar sempre que pudesse e deixar Luigi a par da minha situação.
Já eram cinco horas da tarde e eu estava me arrumando de forma mais detalhada, pois minha família havia preparado uma festa de despedida para mim. Fazíamos isso frequentemente quando meu pai ou Luigi viajavam, mas para mim era a primeira vez.
Por se tratar de uma surpresa, não me deixaram sair do quarto durante o dia inteiro, entregando somente a comida nos horários das refeições.
Filomena entrou no quarto e preparou meu banho. Eu a agradeci e antes que ela saísse me olhou com um sorrisinho no rosto, como se quisesse dizer: “A senhorita não imagina o que te espera!" Aquilo só me deixou mais ansiosa. Então, decidi entrar o quanto antes na banheira para que aquele nervosismo não me consumisse.
Quando meu corpo ficou totalmente submerso na água quente, senti uma onda de paz e tranquilidade arrepiando o contorno da coluna e se irradiando até o couro cabeludo. Aquilo parecia retirar todas as preocupações dos dias anteriores e agora eu estava completamente relaxada, tanto, que meus olhos começaram a pesar.
Eu só percebi que estava dormindo quando engasguei com a água que invadiu minha garganta. Engoli tanta água, que os risos foram interrompidos pelas tosses.
Terminei de me ensaboar e lavar os cabelos cacheados antes que caísse no sono novamente e em meu velório narrassem o falecimento: "Morreu aos 23 anos afogada após adormecer durante o banho.”
Enxuguei-me rapidamente e procurei algum vestido apropriado para a ocasião. Escolhi por fim o último que meu pai me dera no ano anterior. Era de um tom rosa queimado que ficava muito bem ao meu tom de pele. Para complementar o visual, organizei os cachos para cima deixando alguns delicadamente caídos sobre os ombros.
Ouvi uma batida e a porta se abriu.
- Olá minha querida! - disse minha mãe admirando-me.
- Olá mama! - respondi com um sorriso torto.
- Você está quase perfeita. - comentou, me analisando com os olhos entreabertos.
- Como assim? - perguntei curiosa.
- Talvez ainda esteja faltando algo. - disse pensativa. - Vire para o espelho para que eu possa vê-la melhor. - disse fazendo um gesto com a mão indicando que eu me virasse para a superfície refletora.
Eu me virei, observando a minha imagem e vendo a de minha mãe se formar por trás como uma sombra. Suas mãos envolveram meu pescoço sutilmente e quando as retirou havia um colar de pérolas sobre ele.
Meus olhos saltaram das órbitas.
- Sua avó me deu este colar quando me casei com seu pai e está na nossa família há gerações. - fez uma pausa limpando a lágrima que escorria de seus olhos - Agora é a sua vez de usá-lo - disse orgulhosa - Por mais que não esteja se casando, sinto que está dando um novo passo em sua vida. Lembre-se de mim quando olhar para ele. - e me envolveu por trás com seu abraço acolhedor. - Nunca estará sozinha Ella. Saiba que você é a pessoa mais forte, decidida e inteligente que eu conheço. Talvez a que mais se parece com o seu pai, só não diga isso aos seus irmãos! - murmurou ela como se contasse um segredo, seguido de uma doce risada.
- Obrigada mama! Eu não tenho como agradecer. - disse enxugando uma das lágrimas que escorriam sobre minha face, ainda boquiaberta com o presente.
Ela deu tapinhas de consolo sobre minhas costas.
- Guarde estas lágrimas para os demais acontecimentos dessa noite. Agora vamos! Todos já estão à sua espera. - disse ela se recompondo.
Quando eu abri a porta muitas margaridas haviam sido gentilmente colocadas formando uma trilha para o andar de baixo. As segui e antes que abrisse a porta do jardim, minha mãe tapou meus olhos, os soltando apenas quando Ana gritou: "Pode abrir!".
Fiquei sem fôlego.
Nunca havia visto nada parecido.
O gramado estava cheio de velas posicionadas propositalmente, de forma que suas chamas refletiam sobre os vidros quadriculados da estufa, como se estivesse olhando para o céu estrelado.
Um lindo pôr do sol se formara aos fundos com tons de rosa e azul se mesclando. Sobre as paredes frias várias rosas vermelhas eram suspensas por finas linhas e outras eram ainda colocadas em vasos desiguais sobre as mesas.
Ana estava deslumbrante em um vestido azul escuro ao lado de Sra. Gatti e Romeu. Luca, meu pequeno e bravo cavalheiro, posicionou-se ao meu lado oferecendo-me seu pequeno lenço que tirara do bolso para enxugar a umidade dos meus olhos. Ele me conduziu até a mesa principal, onde Luigi já ansiava pela minha espera.
- Está perfeita Ella! - dizia ele mais olhando para mesa do que para mim.
A lei das festas dos Valentinis era que ninguém poderia comer antes do homenageado. O que para meu irmão mais velho era quase uma forma de tortura, visto que Filomena tinha se superado. A mesa estava tão farta que não sobrara nenhum espaço vago entre os pratos.
- Vamos! Ande logo com isso Antonella! Já está há dois minutos e trinta segundos escolhendo o que vai comer - dizia o impaciente do meu irmão.
- Não seja t**o Luigi, eu estou aproveitando das vantagens de ser uma homenageada. - expliquei lançando lhe um sorriso implicante.
- Não me faça me arrepender da minha decisão - falou o esfomeado, agora sendo sarcástico.
- Não sabia que uma palavra sua poderia ser desfeita tão facilmente. - declarei, divertindo-me com a discussão.
Luigi revirou os olhos.
- Vamos Antonella! Já consigo ouvir Srta. Ana batendo os talheres no prato em protesto a sua demora. - dizia ele com o objetivo de iniciar uma conversa com sua “amati”.
- Não estou não! - respondeu ela quase ofendida.
- Eu também ouvi. - acrescentei irônica.
Ela revirou os olhos.
- Tudo bem senhores! Eu confesso que estava mesmo batendo os talheres em protesto. Agora, se puderem acelerar esta discussão para que os outros convidados possam se servir, eu ficarei grata. - disse ela irritada.
- Ai! - murmurou Luigi colocando a mão no peito como se as palavras de Ana o tivessem atingido como um tiro.
Então, após a breve discussão, me servi com um pedaço da minha sobremesa favorita: Torta di mele.
Meu estômago comemorou ao sentir o caramelo sobre o crítico da maçã fatiada, formando um contorno de uma flor sobre o bolo. Era quase o paraíso. ... Por mais que a mesa estivesse com alimento suficiente para um pequeno exército, não sobrara nem mesmo os farelos do pão. Todos ficaram completamente satisfeitos.
Então, como um bom anfitrião, Luigi começou a animar a festa. Ele não era de tocar violino sempre, mas quando o pegava não o largava mais. Foi o que aconteceu. Seus dedos brincavam sobre as notas das cordas enquanto remexia todo o seu corpo entrando na alegre melodia italiana.
- Srta. Ella devo informar-lhe que sua beleza está ofuscante nesta noite. - disse Romeu entre os passos agitados da roda.
- Obrigada Dr. Gatti! O senhor... - parei o comentário para que Ana pudesse me intercalar com seus passos na dança, e voltei:- Está muito bonito! - disse alto.
”Socorro”, internalizei.
Eu nunca havia elogiado Romeu deste modo e muito menos tão alto. Todos me olharam e eu senti até a ponta das orelhas enrubescerem como uma pimenta.
Dançamos a noite toda. Nossos passos não eram nada coordenados, apenas pulávamos, batíamos palmas e movimentávamos as saias dentro do círculo de italianos sobre o gramado.
Logo depois foi minha vez de tocar, porém com uma dança mais organizada e casais emparelhados, enquanto Filomena entoava as estrofes rápidas da canção.
- Srta. Ana? - chamou meu irmão. - Poderia me conceder a honra de dançar… - Luigi não conseguiu terminar a frase, pois Ana já o puxava para a fila de casais, onde minha mãe dançava com Luca e Romeu com sua tia.
Fazia tempo que eu não me divertia tanto assim, mesmo quando meu pai ainda estava presente.
A noite fora perfeita.
…
Mais tarde, já no quarto, enquanto encostava a porta:
- Ella, - chamou-me Ana mexendo em sua pequena bolsa - tenho um presente para você...
A olhei com expectativa.
- Sabe que odeio me despedir, tanto que sempre saio um dia antes dos meus pais quando eles viajam. Mas dessa vez eu tenho que passar por isso. - abaixou a cabeça. - Trouxe isso para você se lembrar de mim enquanto estiver fora - ela retirou de dentro da bolsinha o leque azul que mais gostava.
- Ah, Ana eu não posso aceitar! É o seu preferido! - protestei.
- Aceite logo Antonella, antes que eu me arrependa! - e deu uma risadinha nervosa. - Além do mais, ouvi dizer que o Rio de Janeiro é muuito quente. Então tenho certeza que isso a ajudará.
Eu assenti, peguei o leque e a abracei.
- Obrigada Ana!- olhei para ela. - Agora que você falou sobre o calor, acha que eu deveria me preocupar? - e apontei para meu armário.
- Quantos vestidos de verão você tem? - perguntou ela.
- Acho que uns sete - supus.
São Paulo na maioria dos dias era frio e fresco, muito raramente se fazia calor. Então não havia necessidade de muitos vestidos frescos.
- Bom… - fez uma pausa. - Pelo menos terá um para cada dia da semana - disse ela, caindo na risada.
- Rá. Rá. Rá. Muito engraçada. - respondi com ironia.
Eu não tinha pensado sobre as minhas roupas até então. Mas de qualquer forma teria que me virar.
- Isso não deve ser um problema não é? - perguntei mais para mim mesma do que para Ana.
Ela olhou para o armário, agora pensativa.
- Acho que temos quase a mesma medida. Vou ver o que eu tenho na minha casa amanhã e te trago antes de você partir. - declarou satisfeita.
Ana sempre me salvava quando o assunto era vestuário, pois ela era muito vaidosa e sempre estava de acordo com as últimas tendências da moda. Já eu não estava de acordo com nada.
Enquanto ela era toda delicada e alinhada eu era totalmente o contrário, na realidade ali eram dois extremos opostos.
- Obrigada mais uma vez, Ana. - agora era minha hora para importuná-la - Hã… Ana, - chamei - poderia tirar-me uma dúvida?
Ela fez uma cara confusa sem imaginar onde aquela conversa iria dar e assentiu.
- Luigi dança bem? - e lancei uma piscadela para ela.
- Hã… O quê? - agora todo o seu sangue parecia ter se alojado em seu rosto. - Pare com isso Antonella! Sabe que considero Luigi como um amigo - empinou o queixo.
- Mas eu não estou insinuando nada. Apenas fiquei curiosa em saber se ele de fato dança bem - tentando não transparecer a ironia.
- É claro... É que eu p-pensei que ... Bem deixa pra lá - ela piscou varias vezes antes de dizer:- Sim, ele dança, muito bem na verdade.
- Bom eu não me oporia se você achasse que Luigi é mais que um amigo - declarei e ela engasgou.
- Antonella! – gritou - Pare com isso! Eu não vou me casar com Luigi e ponto. - declarou ruborizando até a alma.
- Não! - levantei às mãos em protesto. - O que eu queria dizer era mais que um amigo: um irmão - agora ela estava realmente constrangida e eu não aguentei, cai na gargalhada.
- Aaah é?! Agora é a minha vez de fazer uma pergunta. - disse ela empinando o queixo. - Quando será o casamento com Romeu Gatti?
- Ergrr! - engasguei.
E lá estavam duas adultas se comportando como duas adolescentes quando o assunto era "a vida amorosa", que evidentemente nenhuma de nós tínhamos.
- Enlouqueceu Ana?
- Não, ainda não, mas logo vou ficar se você ficar opinando sobre o meu inexistente relacionamento com seu irmão- cruzou os braços.
- Bem, é muito mais fácil opinar sobre a vida dos outros do que a nossa própria- dei de ombros.
Ela teve que concordar.
- Tem razão...- constatou se levantando abruptamente - Agora chega de devaneios, vamos arrumar logo suas malas. Amanhã começa a sua nova vida, não é?- e me deu um sorriso forçado, tentando esconder a tristeza.