Poderia me explicar o que aconteceu, papai? - perguntava Luno a seu pai.
- Certo dia, enquanto ela brincava pela caverna proibida, uma forte chuva atingiu nosso planeta. Depois disso nunca mais foi vista - disse ele triste ao se lembrar da filha desaparecida.
(Trecho do livro Pequeno Guerreiro da Lua, grande valente terrestre, de Antonella Bella Valentini).
∞∞∞
Fazia muito tempo que eu não dormia tão bem, isto é, acordando com as energias renovadas. Ana ainda estava dormindo quando me levantei da cama. Naquela manhã eu sentia uma paz muito agradável e notei também que minha aparência já não estava tão pesada como antes.
Terminei de me arrumar quando Ana finalmente acordara.
- Bom dia Ella Bella - dizia ela se espreguiçando, tremendo os braços e esticando as pernas.
- Bom dia Bela Ana - devolvi o sorriso à minha irmã do coração e sai do quarto.
…
Assim que cheguei às escadas, vi a figura de Romeu na entrada de casa com o chapéu embaixo dos braços. Nunca desejei tanto vê-lo como nos últimos dias, mas agora que ele estava materializado bem na minha frente, tive que me segurar diante do impulso de atacá-lo para saber as novidades, se é que ele as tinha.
- Olá Srta. Ella - com um breve sorriso sob os lábios, ele balançou uma carta, indicando a mim como se fosse uma isca.
- Sr. Gattiii! - meu corpo agiu inconscientemente, pois estava desesperada por notícias.
Não resisti e sai pulando os degraus até escorregar antes dos últimos três.
Quando as verdadeiras damas caíam eram como penas delicadas escorregando sobre o ar, já eu parecia uma tábua de madeira indo bruta ao chão.
- Antoneeella! Eu senti os dedos de Romeu encostarem sobre os meus cotovelos, mas não conseguiram me impedir de colidir ao chão.
Quando abri os olhos só consegui ver as botas dele, enquanto sentia uma leve pontada nos joelhos. Já podia sentir o esverdeado nascer e também um g**o na cabeça.
“Ótimo!”
- Eu estou bem - me apressei em dizer ao ver o horror passar sobre o semblante dele.
Romeu não conseguiu dizer nada, apenas foi apalpando minha cabeça, meus braços e meu tornozelo. Ele era médico, então já devia estar acostumado com isso.
- Eu estou bem Sr. Gatti! - disse eu já me levantando antes que ele continuasse com aqueles toques pouco apropriados.
- Você está bem mesmo? - levantando as mãos sob minha vista. -quantos dedos você vê?
“Agora ele já está ficando louco”
- Três! - respondi impaciente. “A propósito, eram três mesmo?” - Eu. Estou. Bem Dr. Gatti! Quantas vezes terei que dizer para o senhor acreditar em mim?
Ele se afastou imediatamente.
- Claro!- assentiu desconcertado- Apenas precisei me certificar, sinto muito...- e lembrou o que viera fazer ali- Preciso falar com a senhorita - disse ele com os cantos dos lábios voltados para cima.
-Vamos para a sala de música - sugeri.
…
- O que gostaria de dizer? - perguntei fechando a porta e indicando que ele se sentasse.
- A amiga de minha mãe lhe enviou isto - disse ele, me entregando a carta. - Leia antes para que eu possa prosseguir.
Abri a carta.
∞∞∞
Setembro de 1904, Rio de Janeiro.
Cara Srta. Antonella Bella Valentini, Eu me chamo Augusta Montes e recebi a carta da Sra. Gatti me explicando sua situação. Visto isso, quero lhe oferecer minha casa e meu total acolhimento. Será minha hóspede pelo tempo que precisar. Mesmo não a conhecendo ainda, tem minha confiança, pois minha cara amiga tem grande apreço pela senhorita. Dessa maneira, é querida por mim também. Se decidir aceitar a proposta do Jornal, saiba que será muito bem vinda em minha casa e em minha família.
Espero vê-la em breve!
Sua admiradora,
Augusta Montes
∞∞∞
Meu coração parecia ser bombeado fora de mim, pois eu sentia como se estivesse observando a situação fora do meu corpo. Graças a Deus a Sra. Montes havia aceitado me acolher em sua casa e a sensação era inexplicável. Pela minha reação percebi que eu já tinha tomado a decisão há muito tempo.
- Ella - chamou Romeu levantando de forma abrupta do sofá. - Fui convocado a participar de um conselho de medicina no Rio de Janeiro - agora ele estava andando de um lado para o outro. -Não sei por quanto tempo será, mas pelo que pude entender durará pouco mais de dois meses e...- parou e me fitou. - Eu decidi ir!- fez uma pausa - Sei o quanto é difícil se manter longe da família e de conhecidos, então se me permitir, gostaria de acompanhá-la caso sua decisão seja afirmativa à proposta do jornal - terminou como um tiro.
Pisquei tanto que minha visão aparecia vários flashes de imagens. Essa proposta era realmente muito boa, pois a ideia de me mudar para um lugar onde eu não conhecia ninguém era aterrorizante.
Então, gaguejei tentando formular algo coerente depois de digerir todas aquelas palavras:
- Ha… Eu acho muito bom! Quero dizer… Excelente! – pigarreei. - Se minha família assentir é claro...
- Sim, sim, certamente! - disse ele levando seu olhar à porta que agora se abria.
Era Luigi terminando de engolir um pedaço inteiro de bolo com uma expressão interrogativa nada feliz. Provavelmente devido ao fato de eu estar sozinha numa sala com um homem, mesmo que este seja Romeu.
Ele fechou as mãos na lateral do corpo e olhou irritado para o Sr. Gatti. Não sabia se Luigi havia pensado direito sobre o assunto de me deixar ir trabalhar, mas caso eu fosse, provavelmente teria que lidar com homens no mesmo ambiente que eu. De qualquer forma, ele não parecia levar essa história a sério.
- Errg. - pigarreou fazendo ecoar a voz grave pela sala. - Dr. Gatti, Antonella. – cumprimentou de forma nada amigável. - Imagino que seja melhor continuarem o assunto durante o café da manhã. O que acham?
-Tudo bem irmão, já estamos indo. - disse a ele enquanto Romeu me oferecia o braço para que eu pudesse me levantar do sofá, e assim seguimos até a mesa do café da manhã com todos de casa já nos esperando.
Luca olhou de mim para Romeu e fechou a cara. “Até ele?”- pensei. Como eu gostaria de ter irmãs neste momento.
Eu precisava falar com minha família e deveria ser naquele exato momento, pois se eu ficasse esperando o momento certo para me pronunciar, nunca falaria.
- Mamãe, Luigi e Ana- comecei. - tenho que deixá-los a par das novidades que o Sr. Gatti nos trouxe.
- Diga querida. - disse minha mãe, enquanto todos me fitavam com expectativa.
Eu expliquei sobre a carta acrescentando a parte que Romeu me acompanharia.
- Como disse? - Luigi quase engasgou quando eu falei que estava inclinada em aceitar a proposta de emprego de Ernesto.
- Luigi você sabe o quanto papai se esforçou para que eu tivesse a possibilidade de publicar meus trabalhos. Sei que ainda não é certo, mas eu preciso lutar. Pelo menos em memória de nosso pai! - engoli em seco tentando sugar as lágrimas que se empossaram entre minhas pálpebras.
- Eu compreendo Antonella! Acontece que para uma mulher trabalhar é muito perigoso! - ele passou os dedos no cabelo demoradamente.
- Eu nunca me perdoaria se algo r**m acontecesse com você, ainda mais agora que me torno responsável por você e Luca, já que nosso pai não está mais aqui. - concluiu aturdido.
Um silêncio dominou a sala.
- Luigi você não pode aprisionar Ella, uma hora ela terá que sair e escrever sua própria história. Pense bem nisso! - disse minha mãe, enquanto o resto da sala intercalava os olhares entre mim e meu irmão.
Luigi bufou.
Eu podia compreender meu irmão, até porque eu também tinha medo que algo r**m acontecesse comigo. Afinal de contas, não era comum ver mulheres no mercado de trabalho.
Além disso, eu ainda não tinha voltado a escrever nada além de cartas nos últimos meses, o que de certa forma também me assustava, pois eu havia feito apenas dois livros e um deles tinha sido levado pelo meu pai, tentando torná-lo visível ao público.
Porém, se eu não arriscasse talvez nunca me perdoasse por não ter honrado os esforços que meu pai tivera, e também por não ter acreditado em mim mesma.
- Sr. Gatti, o senhor ficará hospedado próximo a Ella? - perguntou Luigi.
- Sim Sr. Valentini, minha pensão fica a uma quadra de distância.
- Entendo...- fez uma pausa e olhou fixamente para o chão, então prosseguiu: - Ella você poderá ir. - disse ele decidido. - desde que nunca saia desacompanhada. NUNCA. Você ouviu?
- Hããn… Quer dizer que... Claro, tudo bem Luigi, vou providenciar isso! - disse não acreditando no que acabara de ouvir, já que estava pronta para fazer uma peça teatral melancólica e dramática se fosse necessário para que ele permitisse que fosse.
- Antonella, preciso que me prometa que nunca sairá desacompanhada. Você pode achar bobagem, mas faça isso por nós, por favor! Já perdemos muito nos últimos tempos e não queremos sofrer mais- disse ele me olhando com intensidade.
- Eu prometo Luigi! Dou-te a minha palavra e esta não será descumprida.
- Muito bem então! Estamos resolvidos.
De alguma forma ele parecia desapontado consigo mesmo, como se estivesse sendo indigno de ser o chefe da família prevendo que algo de errado pudesse acontecer e esta ser a pior decisão que já tomara na vida.
Entretanto, o que ele poderia fazer?
Tudo já estava destinado desde a primeira carta.