Capítulo 1

2273 Words
Algumas amigas minhas acham que o fato de ser n***a e morar na periferia me faz uma coitada, ja pra mim nada disso importa, não importa a cor, nem onde você mora, se suas convicções são erradas você vai dar errado, mas não é o meu caso, acho mesmo que pra viver nesse mundo e vencer é preciso ter raça. _Procurando emprego de novo?_ pergunta Carlos o meu vizinho fofoqueiro _Você deveria fazer o mesmo não acha?_ falo sem sequer parar minha caminhada Eu sabia que ficar desempregada mais de um mês estava começando a pesar nas costas da minha mãe, que tinha um bico de diarista. Ela vivia dizendo que eu devia parar de procurar emprego na minha área e aceitar o que viesse afinal não estava fácil pra ninguém, mas eu estava no último período de administração na faculdade e eu não estava estudando a toa. Chego no ponto de ônibus e começo a me analisar, ver se a minha roupa estava boa, se meu cabelo estava no lugar, pra mim estava tudo ok, mas pelo que parecia não pra mulher que me entrevistou. Ela me olhava de cima abaixo como se tivesse algo de errado comigo, eu conhecia aquele olhar e sabia que estava perdendo mais uma ótima vaga de emprego. Aquela não era a primeira vez que eu perdia uma vaga de emprego por ser n***a ou não estar "vestida adequadamente". Minhas roupas não eram de marca, mas eu tentava andar o mais apresentável possível, mesmo assim, a menina branca do meu lado sempre era aceita. Mesmo me obrigando a não olhar por esse lado, era quase sempre assim que as coisas aconteceram. _Cheguei!_ falo batendo a porta de casa desanimada _Não conseguiu não é?_ minha mãe aparece e se senta ao meu lado _Dessa vez eu realmente achei que ia conseguir, eu não entendo eu fiz tudo certo mas... _ falo decepcionada comigo mesma _Minha filha, entenda uma coisa... _Não mãe, esse papo de racismo hoje não, por favor!_ falo irritada Eu sabia que minha mãe já tinha sofrido bem mais que eu nessa vida. Uma mulher n***a, sozinha com os filhos e tendo que trabalhar pra criar os dois como podia, de alguma forma em algum momento ela passou a aceitar, e dizer que as coisas eram assim mesmo. _Ok, só cogite a idéia de trabalhar comigo, pelo menos pra ganhar uma graninha extra. Sequer respondo, estava chateada demais pra isso. Entro no meu quarto, me jogo na cama e começo a pensar na última vez em que sai pra trabalhar com a minha mãe, eu devia ter uns 15 anos, estava de férias da escola e minha mãe não gostava de me deixar sozinha então pediu a "madame" se podia me levar. 7ANOS ATRÁS _Ana, por favor, senta ai e não mexe em nada._ minha mãe disse enquanto passava as roupas _Ta_ falo entediada sentada em uma cadeira enquanto esperava ela terminar Me levantei, arrastei minha cadeira até a janela e me distrai olhando pra praia, o prédio ficava em frente. Fiquei olhando todas aquelas pessoas ricas e bonitas passando se divertindo e eu sabia que um dia eu seria uma delas e nunca mais minha mãe trabalharia de empregada pra ninguém. Todos pareciam tão felizes, andando em suas bicicletas na orla da praia, outros fazendo sua caminhada matinal, exceto um menino loiro sentado na areia com seu cachorro, ele parecia desanimado. É claro que de longe eu não conseguia ver o rosto, mas o jeito como os ombros dele estava arriados e como as vezes ele olhava pro alto e parecia suspirar, parecia realmente triste, ali percebi que só dinheiro não era o suficiente pra felicidade, era preciso ter algo dentro de si e eu acho que isso eu tinha de sobra. _Bonito não é?_ minha mãe me assusta _É sim, um dia vamos morar em um lugar assim_ falo sorrindo _Claro_ ela fala meio cansada _Mãe descansa um pouco, eu termino de passar pra você_ falo me levantando Ela se senta na cadeira, e enquanto eu passava conversávamos sobre o meu futuro como diretora de uma multinacional, somos interrompidas pelo barulho da porta. _Anda senta_ minha mãe corre e arranca o ferro da minha mão Corro pra cadeira e faço cara de inocente, a porta se abre e o cara loiro entra com o seu cachorro, ele era muito bonito mas não parecia feliz. Dessa vez, eu conseguia ver o rosto dele que aparentava cansaço, mesmo assim foi simpático... _Desculpe Tereza, assustei vocês?_ ele fala com um sorriso sem graça _Que nada senhor Carlos_ ela fala sem graça_ eu que já devia ter acabado. _ Sem pressa, ninguém vai usar essas roupas hoje_ sorriu _ Ok_ minha mãe soltou uma risada discreta como se estivesse aliviada _Sua filha?_ ele aponta pra mim _É sim. _Prazer_ ele se aproxima de mim e estende a mão_ Carlos Eduardo, ou Cadu, clame como quiser _ abriu um sorriso lindo _Prazer_ respondo tímida _Vou pro meu quarto_ disse jogando as chaves em cima da mesa _ não quero atrapalhar. Ele foi embora e eu se quer conseguia raciocinar, ele era tão bonito e eu nunca tinha visto um cara tão bonito, não como ele. _Bonito não é?_ minha mãe fala rindo da minha cara de brisa _Sim_ respondo meio sem pensar _Ele vai estudar no exterior daqui a dois meses, pelo que parece ele vai herdar a empresa do pai. _É tem gente que já nasce destinado a ser rico_ falo respirando fundo_ mas eu vou fazer a minha própria história e vai ver que nunca mais você vai trabalhar pra ninguém Minha mãe ria da minha vontade de vencer, ela achava que uma menina n***a da periferia jamais conseguiria um lugar de destaque, mas eu não queria me aprisionar a minha cor eu queria ir além disso por que eu era muito mais. Passei as minhas férias trabalhando com a minha mãe e até que era legal ficar lá, as vezes minha mãe deixava eu ir a praia e em uma dessas vezes eu estava sentada até que vi aquele menino loiro saindo da água, tentei fingir que não estava vendo eu não queria que ele achasse que eu era uma oferecida então coloquei meus fones nos ouvidos e me concentrei no meu livro. Ouvi um barulho alguém tinha se sentado ao meu lado, olho pro lado e lá estava o menino sorrindo pra mim... _A viagem?_ ele aponta para o livro_ é uma ótima leitura. _É, eu gosto_ respondo tímida _Desculpe se te assustei_ ele sorriu_ vou deixar você continuar sua leitura Eu apenas aceno com a cabeça e ele sai sorrindo de volta pra água. Naquele momento me pergunto se era possível que ele tenha ido ali somente pra falar comigo, só podia ser loucura não éramos amigos, só tínhamos nos visto uma vez. Algumas semanas depois eu estava sentada na varanda enquanto minha mãe arrumava os quartos , eu gostava de olhar a praia mesmo quando o tempo não estava tão bonito. A sensação de olhar as ondas eram algum tipo de terapia pra mim, por isso meu sonho era ter uma casa de frente pra praia, amava olhar as ondas. _É uma bela vista _ o menino loiro se aproxima _Você deve estar acostumado_ falo rindo _Na verdade não_ ele se encosta na beira da varanda_ parece que todo dia aparece alguma coisa diferente _Deve ser bom morar aqui_ falo respirando fundo olhando a linda vista _Na verdade não é tão bom quanto parece_ ele abaixa cabeça e balança os pés_ as pessoas aqui são meio distantes, as vezes você se sente meio sozinho. _Te garanto que é bem melhor de onde eu moro_ falo rindo_ lá as pessoas são tão próximas que acham que podem cuidar da tua vida. _Deve ser engraçado_ ele ri _Viver na periferia não é fácil_ falo respirando fundo_ mas eu não vou viver lá pra sempre. Ficamos algum tempo em silêncio olhando a paisagem e de repente ele me olha. _Pelo menos sua mãe passa um tempo com você_ ele volta a olhar pra paisagem_ você tem sorte. Só então percebi que nunca tinha visto a mãe dele, todas as vezes que eu fui lá nunca a vi, sequer um telefonema, as vezes parecia que ele morava sozinho naquele apartamento enorme. _Deve ser legal não ter o pais em casa, imagine nas festas que você pode dar_ falo rindo_ você pode chamar os amigos e fazer uma festa. Ele achou graça da idéia e caiu na risada, embora me pareceu que ele tinha achado mais graça da minha cara imaginando uma festa naquela casa linda do que da idéia em si. _Eu nunca tinha pensado nisso_ ele ri_ mas é uma boa idéia, assim que organizar uma, você será a primeira convidada. _Eu sempre imaginei isso, como nos filmes americanos _ falo rindo_ com direito a ponche batizado e tudo. _Você é engraçada_ ele diz Eu sequer me lembro como, mas depois desse dia acabamos virando grandes amigos. Saíamos juntos e ele até me apresentou alguns amigos dele e embora fossem todos ricos eram pessoas legais, nada nariz em pé, eu conhecia pobres mais metidos que eles. A minha amizade com o Cadu ia bem e estava começando a rolar um clima e então a familia dele finalmente voltou de viagem justo no dia em que estávamos assistindo um filme juntos na sala da casa dele enquanto minha mãe arrumava a cozinha. A porta se abriu e uma mulher extremamente branca e cabelos platinados entrou e não disfarçou a cara de horror ao nos ver juntos no sofá. _Mãe?_ ele se levanta rapidamente sorrindo e vai na direção dela, mas a mãe dele direcionou o olhar pra mim e aqueles olhos azuis gigantes estavam me assustando. _O que é isso? _ ela aponta para o chão que tinha algumas pipocas espalhadas _Estávamos vendo um filme_ ele parecia nervoso _E quem é essa mocinha que eu não conheço?_ disse me olhando de cima pra baixo sem nenhum disfarce _ É a filha da Tereza, o nome dela é Ana Clara. Eu não me atrevia a pronunciar nenhuma palavra ela era intimidadora, apenas balancei a cabeça e dei um sorriso sem graça, eu até pensei em me desculpar mas minha mãe apareceu do nada e me puxou com pressa, eu só ouvi ela dizer alguma coisa parecida com um pedido de desculpas e quando percebi já estava no corredor. _O que foi?_ pergunto _Essa mulher Ana, nunca vai querer o filho dela de amizade com pobre, amanhã você fica na Sheila até eu chegar. _Mãe espera!_ grito _O que foi?_ ela estava nervosa _Meu celular deixei lá no chão _ falo correndo Eu estava prestes a bater na porta quando ouvi um barulho, parecia uma briga ouvi a voz da mãe do Cadu ela parecia nervosa. _O que você está pensando?_ ela gritou_ o que as pessoas vão dizer? _ Mãe, ela é só minha amiga_ ele disse _Carlos Eduardo as pessoas não querem saber, não quero você andando com essa menina da periferia por ai. _Mas... A Ana é muito legal. _Já estamos conversados não quero mais você com ela, e acho melhor adiantarmos sua ida pro exterior assim vai ser melhor. Tudo se silenciou então respirei fundo e bati na porta, Cadu abriu e ficou pálido ao me ver, eu sorri como se não tivesse ouvido nada.. _Esqueci meu celular_ falo sorrindo _Ah!_ ele disse sem graça_ eu vou pegar_ estava nervoso. Claramente ele estava com medo de a mãe dele me ver e por isso fechou a porta, naquele momento me senti uma i****a por ainda estar ali , ele abriu a porta e me entregou o celular _Então..._ falo olhando pro chão_ eu já vou. Me virei e apertei o botão do elevador.. _Espera!_ ele grita Olho pra trás e vejo Cadu fechando a porta e vindo em minha direção, minhas pernas tremiam. _Talvez não nos vejamos mais... eu queria que você lembrasse de mim_ ele tira a pulseira que parecia de ouro do pulso e coloca na minha mão. _Eu não posso aceitar cadu_ falo surpresa _Aceita, por favor. Eu balancei a cabeça e a porta do elevador abriu, ele deu um sorriso triste e acenou com a mão se despedindo, fiquei olhando pra ele tirei o pingente de trevo que estava no meu cordão e joguei... _Também não quero ser esquecida_ falo com os olhos cheios d'água _Nunca será_ ele disse sorrindo A porta do elevador fechou e eu sabia que nunca mais entraria naquela casa, eu sabia também que por minha causa minha mãe perderia o emprego. _Nossa que demora_ minha mãe diz_ vamos pra casa. Andamos em silêncio por um tempo, nenhuma das duas queria tocar no assunto mas eu precisava falar.. _Ela demitiu você não é? _Eu me demiti_ ela disse séria _Achei que estava pedindo desculpas_ eu estava surpresa _E pedi, por levar você pro trabalho, mas não trabalho pra racistas. _Racista? acho que ela não gosta de pobre, talvez ela nem ligue pra minha cor e... _Escuta Ana_ minha mãe para na minha frente e segura nos meus ombros_ eu quero que você aprenda uma coisa, ela pode até não gostar da nossa pobreza mas ela te olhou como se você fosse um cachorro, e talvez ela ache que somos, é assim que são algumas pessoas que você vai encontrar na vida, mas nunca deixe elas pisarem em você pela sua cor, ser n***o não é doença você pode tanto quanto eles. Naquele dia eu descobri que sim, o racismo existia, mas eu não seria escrava dele, eu era bem mais que uma menina n***a da favela. DIAS ATUAIS Não que eu estivesse me rendendo, mas no fim decidi aceitar a oferta da minha mãe, não por minha causa, mas por que tínhamos que pagar as contas. _Tudo bem, eu aceito trabalhar na casa dessa mulher mas será só um tempo enquanto eu não arrumo outra coisa_ falo contrariada _Lá o trabalho é fácil ela vive sozinha e passa mais tempo na casa do noivo do que na dela.
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