Capítulo 2 - A rainha branca e o Rei preto

1139 Words
A Universidade de Oxford Nova respirava caos naquela manhã. Caliope Wesses chegou cedo, ainda carregando na mochila o cheiro de café barato e ansiedade fresca do albergue estudantil. m*l atravessara o portão principal quando viu o aglomerado de pessoas em frente à biblioteca. Corpos apertados, sussurros cortantes, celulares erguidos como oferendas aos deuses das redes sociais. No centro da multidão, uma maca coberta por um lençol branco manchado de vermelho. Caliope parou. Não por respeito aos mortos — ela já vira cadáveres suficientes na vida —, mas por causa da mão que escapara do lençol. Pálida, quase translúcida, com um anel de prata entalhado no dedo anelar. Um professor, pensou. Só acadêmicos usavam anéis tão pretenciosos. — Foi uma calamidade — disse uma mulher de blazer rosa, segurando um copo de café descartável como se fosse um terço. — Uma perda lamentável — murmurou outra, ajustando os óculos. — Ele era um bom professor de filologia românica — comentou um rapaz de moicano, mascando chiclete com força. Caliope observava os rostos, procurando por piscadelas de culpa, dedos trêmulos, qualquer coisa que denunciasse um assassino satisfeito. Nada. Até que ouviu, vindo do fundo da multidão, um sussurro áspero: — Já foi tarde. Virou-se rápido. Uma garota de cabelo curto e jaqueta de couro desbotado se afastava, cabeça baixa, mãos enfiadas nos bolsos. Caliope tentou alcançá-la, mas a multidão fechou-se como um músculo. Pulga atrás da orelha. Guardou o rosto da garota na memória: olhos verdes estreitos, nariz quebrado m*l cicatrizado. O sino da torre badalou. Primeira aula em dez minutos. Caliope deu meia-volta, ajustou a mochila nos ombros e mergulhou nos corredores da universidade. O dormitório dela ficava a cinco minutos de caminhada, mas Oxford Nova era um labirinto de pedra e arrogância. Corredores góticos que se ramificavam em escadarias espirais, vitrais coloridos jogando luzes fantasmagóricas no chão. A recepcionista do alojamento lhe dera um mapa rabiscado à mão, cheio de setas e círculos vermelhos que agora pareciam hieróglifos. — Sala 14-B... Onde diabos fica a 14-B? — resmungou, parando em frente a uma placa de bronze que indicava "Laboratório de Alquimia Medieval". Foi então que uma voz a fez estremecer. — Tá perdida, Rainha? Era uma voz grave, melíflua, com um sotaque italiano que enrolava as consoantes como massas frescas. Caliope virou-se devagar. Olhos azuis. Malditos olhos azuis, tão claros que pareciam translúcidos, encravados em um rosto esculpido por um deus com pressa.Ele era perfeito, um rei preto em um tabuleiro de xadrez. Angelo Salermo estava encostado na sua frente de braços cruzados, as mangas da camisa branca arregaçadas até os cotovelos, revelando tatuagens que serpenteavam pelos antebraços: dragões, caveiras, uma frase em latim. Memento mori. — Não é da sua conta — respondeu Caliope, apertando o mapa contra o peito. Ele sorriu, um sorriso que era meio convite, meio ameaça. — Tudo que acontece com você é da minha conta, koukla — disse, usando a palavra grega para "Minha rainha" como um insulto disfarçado de carícia. Antes que ela reagisse, ele se aproximou. Cheirava a tabaco e bergamota. Seus dedos — longos, cicatrizados — puxaram o mapa de sua mão. — Sala 14-B... — murmurou, estudando os rabiscos. — Tá no lugar errado, sabe por quê? Caliope tentou pegar o mapa de volta, mas ele ergueu-o acima da cabeça. — Porque a 14-B foi demolida ano passado. Virou um estacionamento. Ela pestanejou. — A recepcionista me deu esse mapa hoje! — A Sra. Whitaker tem demência vascular. Ano passado, ela me deu um mapa para encontrar a sala de astrologia egípcia. — Ele riu, o som ecoando nas paredes de pedra. — Vem. Te mostro o caminho. — Não preciso de ajuda — ela cuspiu, esticando o braço para agarrar o mapa. Angelo inclinou-se, seus lábios quase tocando sua orelha. — Mas eu vou ajudar, você pode fingir mas não pode se esconder, Caliope Wessex. Ela congelou. Antes que pudesse retrucar, ele já se afastava, caminhando com passos largos pelo corredor. — Vai perder a aula de Introdução à Mitologia Comparada, koukla. A professora Almeida é uma bruxa com os atrasados. Caliope hesitou. Odiava precisar dele, mas o relógio no pulso insistia: dois minutos. — Se me tocar, te arranco a mão — avisou, seguindo-o. Ele riu, uma risada quente que fez até as estátuas nos nichos parecerem corar. — Promete? O caminho até a sala 14-B (ou o ela achava que era a tal sala) era uma coreografia de provocações. Angelo apontava quadros de reitores mortos e dizia coisas como: — Esse aqui, Lorde Pembroke, morreu com uma prostituta no colo. Dizem que o fantasma dele ainda assombra os banheiros femininos. — Você é obcecado por mortos? Ou por pornografia?— ela revidou, evitando olhar para ele. — Só pelos vivos e por pornografia! — respondeu, os olhos azuis escaneando seu perfil. Quando finalmente chegaram a uma porta marcada com uma placa improvisada ("Sala 14-B — Temporariamente no Refeitório"), Caliope já estava com os dentes cerrados. — Aqui. — Ele abriu a porta com um floreio. — Sua aula sobre deuses na verdade sobre Zeus e suas amantes. Ela ignorou o comentário, mas ao passar por ele, sentiu sua mão escorregar rapidamente pela sua cintura. — Mãos. Fora. — rosnou, empurrando-o com o cotovelo. Angelo segurou o punho dela, gentil mas firme. — Cuidado, Minha rainha. Nem tudo aqui é o que parece. — Seus olhos perderam a brincadeira por um segundo. — Principalmente os mortos. Ele soltou-a e desapareceu no corredor, deixando para trás apenas o cheiro de bergamota e uma pergunta suspensa no ar. A aula foi um desastre. A professora Almeida — uma mulher de cinquenta anos com olhos de gavião — passou a hora inteira debatendo a "banalização de Dionísio na cultura pop". Caliope não ouviu uma palavra. Seus dedos tamborilavam no caderno, rabiscando "CALÍOPE" em letras góticas, repetindo a cena da biblioteca. Já foi tarde. A garota da jaqueta de couro. Quem era ela? E por que desdenhara da morte do professor? No intervalo, Caliope voltou à biblioteca. O corpo já fora removido, mas um cordão de isolamento amarelo dançava no vento. Ela se aproximou, fingindo amarrar o cadarço, enquanto observava os policiais. — Assassinato limpo — ouviu um deles dizer. — Degolado como um porco. Ela estremeceu. Degola. Algo pessoal, então. Ou simbólico. Ao se levantar, Caliope olhou para a placa na porta da Biblioteca "Veritas vos liberabit" — A verdade vos libertará. Ironia? Ou advertência? Quando se virou para ir embora, viu ele novamente. Angelo estava do outro lado do jardim, conversando com um homem de terno que ela reconheceu das notícias: o reitor da universidade. Seus gestos eram tensos, sérios. Nada do bad boy descontraído de antes. Antes que pudesse se esconder, ele a viu. Seus olhos azuis estreitaram. Um aviso? Uma ameaça? Jogo começado
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