Capítulo 2: O Quartel

855 Words
O dia das grandes mudanças chegou, e com ele trouxe o caos típico depois de uma noite tempestuosa. O caminho estava lamacento, e por todo lado se viam galhos caídos e folhas espalhadas, sem dúvidas, consequência dos ventos fortes. Aqui e ali se viam árvores no chão, derrubadas pelos raios. A beleza do caos, quase sempre despercebida por olhos comuns, atentamente absorvida pela garota de cabelos negros como as asas do corvo. Melissa observava, extasiada, o efeito da chuva da noite anterior. Nem mesmo Amara, e seu humor terrível tiraram dela o prazer da tão ansiada viagem para longe da mãe e de seu controle sufocante. Muito embora, tal viagem também significava voar para longe do amor incondicional e do carinho infinito do amado pai. O pensamento de se apartar de Theodore a deixava melancólica na mesma proporção que se afastar de Amara a deixava feliz. Mas não havia escolha. Era treinar e lutar, ou ser obrigada a se casar e deixar o próprio destino nas mãos maldosas da astuta e manipuladora mãe. Dez longas horas passadas na carruagem não produziram muito efeito no bom humor de Melissa, ou no de Theodore. Mas Amara, que se ressentia da desobediência da filha, ficou ainda mais arrogante e taciturna do que de costume depois das horas intermináveis de travessia entre a cidade o quartel localizado no alto das montanhas. De modo que quando chegaram, o resultado foi uma ordem cuspida para o marido fazer uma vistoria no quartel, ou ir plantar batatas, contanto que sumisse e não se metesse em seu caminho. A outra ordem, proferida com a mesma rispidez, era de que a filha a acompanhasse até o escritório do chefe do quartel. Melissa Richard narrando Acompanho mamãe pelos corredores do quartel, absorvendo cada detalhe da minha nova casa. A postura dela é elegante e autoritária, a postura de alguém que transmite sua autoridade até mesmo na maneira de caminhar. mas é visível um pequeno tremor em suas mãos, um breve e quase imperceptível indicativo da raiva que ela sente pela escolha que eu fiz. Amara se vira para mim e capta meu olhar atento aos detalhes, então dá um riso de escárnio e fala: -Olhe bem. Você está trocando todo o luxo e o conforto do palacete do governo pela vida de um soldado de classe baixa nessa espelunca.- Meus olhos se focam nos de minha mãe e meu rosto copia perfeitamente a expressão desenhada em seu rosto, o desdém puro. Respondo em tom doce: -Eu não sei. O quartel não se parece em nada com uma espelunca, e também parece bastante confortável pra mim.- Finalizo com um sorriso brilhante. Os olhos dela se estreitam. E meu sorriso se alarga. Mas ela não cede à raiva pela minha contestação explícita. Amara se vira e continua andando, com isso só me resta acompanhá-la e observar o local. Chegamos a uma sala de espera e somos orientadas a aguardar que o comandante David Kayth nos chame. Mamãe se senta em uma grande poltrona de couro, enquanto eu opto por ficar de pé, caminhando de um lado para outro, num gesto de inquietação que, eu esperava ansiosamente, irritaria Amara profundamente. Estou voltando para a posição inicial, ao que me parece pela vigésima vez quando ela fala, com acidez: -Por favor pare de inquietação. Sente-se e aguarde como a dama que eu te criei para ser.- Continuo andando, ignorando deliberadamente suas palavras. Ela dá um suspiro audível e continua: -Eu vou entrar primeiro e conversar com David sobre a sua situação. Depois você pode entrar, se apresentar ou fazer o que quer que seja exigido de você.- As palavras ditas em tom frio e cortante, o aviso implícito de que faria minha vida aqui ser insuportável, até que eu voltasse para casa e aceitasse o destino que ela traçara para mim. Me recostei em uma pilastra, mantendo uma postura casual e respondi em tom baixo, mas carregado de acidez: -Pode falar com Kayth. Pode pedir para ele me infernizar, para tornar minha vida aqui o mais difícil possível. Sei que é isso que pretende. Isso não me fará voltar ao palacete e aceitar a sua idéia ridícula de casamento arranjado.- Quando terminei de falar, meu sorriso era grande e brilhante. Amara, cuja tremedeira antes passava despercebida a um espectador mais alheio, agora era perceptível até ao mais tonto dos observadores. Seu rosto assumindo uma tonalidade rubra, suas pupilas dilatadas, a boca comprimida numa linha fina, o corpo inconscientemente entrando em posição de combate. Me deleitei com a reação dela, e sorri mais uma vez antes de falar: -Tsc tsc tsc. Olha só pra você. Não controla nem o próprio corpo, e quer me controlar. Não vai acontecer, Amara. Você não vai estragar a minha vida como fez com a vida do meu irmão. Faça o que quiser. Eu ainda vou estar aqui até ser promovida ao Conselho Real de Guerra.- O controle precário que Amara mantinha sobre si mesma se esvai e ela está prestes a me atacar fisicamente. No entanto a porta do escritório se abre, e o Comandante David sai de lá com uma postura levemente entediada.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD