"As ampulhetas não param
os anos ingratos são crueis
no decorrer do tempo tudo
muda menos o desejo
A beleza decai
Helena
Meu primeiro dia numa vida nova, não consigo me conter de tanta felicidade, eu passei no vestibular, nem acredito! EU PASSEI!
Sou a primeira da minha família a entrar para uma universidade, não qualquer universidade dos meus sonhos.
Desde pequena eu sonhava com aquele lugar, a comunidade que eu moro tem uma visão privilegiada do prédio suas rampas e escada,
O interesse só aumentou quando aos 12 anos, minha avó começou a fazer bolos e doces e vender aos funcionários e professores. Eu passava de manhã recolhendo os pedidos e a tarde entregava, tudo fresquinho.
Eu, Neta da dona Maria, filha da dona Alice, conversava com professores e doutores da grande universidade, ali ganhei meus primeiros livros de filosofia e literatura, comecei a sonhar.
Quero ser professora, quero mudar vidas, comecei pela minha vó, ensinei uma senhora de 68 anos a escrever, foi a coisa mais linda quando eu a vi assinando seu nome pela primeira vez.
Aos poucos os vizinhos souberam que eu ensinava minha avó, e vieram com seus cadernos e lápis e logo eram mais de 15 pessoas rabiscando suas primeiras letras.
Quando finalmente aos 19 anos passei no vestibular me sentia flutuar num céu n***o com tons de amarelo dourado e azul como no na pintura de Van Gogh.
Minha vozinha contou para toda comunidade que agora sua neta era universitária.
Minha mãe fez uma festa, os parentes e os vizinhos vieram, sem querer eu virei uma celebridade.
A sociedade nunca vai entender o que é uma criança de comunidade entrar na universidade, cada mãe pobre que a viu crescer se sente orgulhosa pois aquele pedacinho de gente.
No meu primeiro dia de aula eu tinha tantas expectativas, tantos sonhos, eu queria sentir cada segundo.
Sorver de cada segundo de conhecimento que eu fosse capaz de assimilar até que eu o vi.
Era ele, o homem alto,bonito de olhos claros, que vagava meus sonhos. Sua imagem me trazia uma felicidade imensa e uma tristeza profunda.
Ele parecia confuso com um pedaço de papel na mão, era um pouco engraçado ver um homem tão grande confuso, eu comecei a segui -lo, por alguns minutos. Até que eu percebi o seu desespero e fui ao seu auxílio, e sorri.
Ele ficava olhando pra mim como se eu fosse a única coisa existente no mundo, pela primeira vez na vida deixei a timidez de lado e falei, Deus como eu falei, sem ter qualquer noção do que saia da minha boca.
Quando o deixei na porta do setor de história, meu coração doeu quando recusei seu convite para um café, aquilo que me puxava para ele me empurrava para longe com a mesma intensidade. Então eu corri para minha sala de aula, tendo em mente que ele provavelmente não me acharia.
Minha última aula era introdução à pedagogia, eu tinha minhas mãos cheias de livros da biblioteca e textos. Ainda me sentia muito empolgada com todo conhecimento que eu havia adquirido. Lá estava ele, sentado no hall do 12 andar, com dois copos de café para viagem nas mãos, com aquele olhar que me fazia me sentir nua ainda vestida.
Aquele homem seria meu abismo, eu podia sentir em meus ossos, ele era uma ida direto para o inferno sem direito a escalas. Ele abre um grande sorriso, Deus o que está havendo com as minhas pernas pelas não se mexem?
Ele se aproxima como um lobo que persegue sua caça, seus por que eu pensei em lobos e em caça?
-Te trouxe o café.
-Obrigado, mas não precisava.
-Nós gregos não gostamos de dever favores, principalmente a mulheres bonitas, ágape mou.
-Você não me deve nada, e o que significa essas palavras em grego?
-Um dia você vai saber.
-O abusado pega a minha mão sem minha permissão, seu toque é tão quente, eu passei frio por toda minha vida é finalmente havia encontrado calor.
-Eu jamais me perdoaria se não te agradecesse o morfiá mou.
Não faço a menor ideia de que omorfiá mou significa, mas é tão gostoso de ouvir.
-Venha se sente comigo. - Nos sentamos nos bancos do hall e ele continua falando com as mãos envoltas ao copo de café. - Eu sei que é um pouco tarde para isso mas, me chamo Argo, sou de Tessália, Grécia, eu sou professor, na verdade, pesquisador.
-Eu sou caloura.
-Você disse.
Um silêncio se instaurou enquanto bebíamos o café. Ele olhava pra mim com aqueles olhos do mais puro azul que eu já havia visto.
-Não vou poder demorar, trabalho até as 18:00
-Posso te levar para jantar depois?
-Eu dou aula depois.
-Aula?
-Eu sou voluntária, na igreja na alfabetização de jovens e adultos.
-Alfabetização?
-Isso, ensino a jovens e adultos a ler e a escrever
-Além de linda e altruísta, não é toda moça da sua idade que pensa tanto nos outros,chega ser admirável.
-Eu não sou nada disso, só tento fazer a minha parte.
Ele olha no fundo dos meus olhos e beija a ponta dos meus dedos, um arrepio passa por todo meu corpo se alojando bem no meio das minhas pernas.
-Você ainda não me disse seu nome?
-Helena, me chamo Helena? -Algo rosto dele mudou, Argo parecia que havia visto um fantasma ou algo assim.
-Um nome grego que significa reluzente, combina com você - Ele dá outro gole no café - Acredita em vidas passadas ou almas gêmeas ?
Respiro fundo, era de uma idiotice tremenda acreditar em vidas passadas, ainda mais nos anos de 2021, eu tinha sonhos recorrentes com aquele homem, ele me fazia sentir coisas que eu nunca senti só segurando minhas mãos, mas almas gêmeas e uma loucura.
Eu balanço minha cabeça que não.
-Bom, acho que temos muito que conversar me de seu número de celular.
Ele estende o celular para eu escrever meu número nele.
Eu só podia fazer o que qualquer i****a faria, escrevi meu número, na esperança que ele me ligasse. A mulher que nunca deu seu número a um completo desconhecido que atire a primeira pedra.
Eu devolvi o celular então ele levantou e desceu a rampa indo pro elevador.
Fiquei ali sentada por uns 15 minutos tentando entender aquilo tudo.
Sai da faculdade indo direto para casa da minha avó, seus docinhos haviam ganhado o mundo, tínhamos uma pequena loja e vendemos os doces para bares e algumas lugares na região, não era nada extraordinário, o dinheiro que fazíamos não dava para nós deixar milionárias, mas foi o suficiente para que minha mãe deixasse a casa de família que trabalhava desde bem antes de eu nascer. Na realidade eu nunca entendi o por que minha mãe trabalhou 22 anos para aquela mesma família, ela ia às segundas de madrugada e voltava para casa só aos sábados pela manhã, minha avó me criou, sempre fomos só nós três
Quando minha mãe se desligou do trabalho, lhe deram os parabéns e um tapinha nas costas, nada de leis trabalhistas, abono ou algo parecido, eu queria que ela fosse no sindicato das domésticas, mas ela se negou a entrar com qualquer ação contra eles.
Bem, meu nascimento sempre foi uma incógnita, nunca perguntei pra ela quem ele era, ou onde ele estava, ela nunca me esconderia, eu que nunca perguntei, nunca me fez falta.
No dia que ela se sentir a vontade de contar do meu pai para mim eu vou receber, mas não acho que tortura-la com algo que pra mim não faz diferença.
Eu trabalho na loja todas as tardes e as noites sou voluntária na alfabetização de adultos na paróquia N. Senhora da Conceição,O padre Felipe nos cedeu o espaço quando soube que eu dava aulas no quintal de casa, todo morador que quiser aprender a ler e só se inscrever e começar a assistir às aulas.
Minha avó e devota de nossa senhora da Aparecida, ela é das antigas daquelas que fazem chá de erva para tudo e reza *Espinhela caída.
Casou com meu avô cedo aos 16 anos, meu avô era caixeiro viajante e roubou ela da família, na verdade eles se viram numa festa de São João, depois de um beijo roubado ela já estava completamente apaixonada então quando ele bateu em sua janela na madrugada seguinte ela não pensou duas vezes ao pular a janela e subir na garupa do "homi de sorriso lindo"
Eles vieram para o Rio de Janeiro e construíram uma casinha, e é lá que moramos até hoje.
Meu avô era um bom homem, morreu calmamente deitado no sofá velho da sala depois de um jogo do Vasco.
Não lembro, mas minha avó sempre dizia que ele era um homem grande, me pegava com uma mão e me jogava para cima, e eu me dobrava em risos que enchiam a casa de felicidade.
Eu sempre sonhei em ter um amor assim, um homem que me fizesse pular a janela e fugir, mesmo sem dinheiro ou uma casa só o amor de nós dois bastaria,
Em meus sonhos eu sonhava com uma cabana perto de um rio, e pensar nesse lugar me fazia extremamente feliz, mesmo eu não sabendo onde esse lugar fica.